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O debate sobre a interdição do véu integral islâmico em França entra, ?na próxima semana, na sua fase crucial. A polémica é acompanhada de perto na Bélgica, Espanha, Itália e Alemanha. Esta discussão não é religiosa? - é de cidadania, diz Malek Chabel, tradutor do Corão. As palavras ?"burqa" e "niqab" não existem no livro sagrado dos muçulmanos. E "hijab" desapareceu do dicionário de árabe moderno.
1. A polémica
Na próxima semana, a rentrée política francesa promete amalgamar em 48 horas o debate sobre a interdição legal do véu integral islâmico - o niqab -, o fim do Ramadão e o aniversário dos atentados da Al-Qaeda em Nova Iorque. "Não é nada bom", resume M"hammed Henniche, responsável de um conselho muçulmano que reúne trinta mesquitas em Seine-Saint-Denis, na periferia norte de Paris, no coração da França islâmica.
"Chegámos aqui depois de um ano rico em ataques políticos aos muçulmanos franceses", acusa Henniche, contando pelos dedos as várias "ofensivas". "Começou em Junho de 2009, com a abertura da missão parlamentar sobre o véu. Depois foi o debate sobre a identidade nacional, que foi o que se viu. Depois discutiu-se os minaretes por causa do referendo na Suíça. A seguir começaram a falar da poligamia. Agora é a ameaça de retirar a nacionalidade aos de origem estrangeira. Às vezes pensamos: será que fazem de propósito?"
A coincidência incendiária de agenda entre política francesa, calendário islâmico e efeméride terrorista escancara, afinal, toda a complexidade de um debate que vai muito além do véu muçulmano: o lugar da religião num Estado laico, o lugar da mulher no islão, o lugar dos muçulmanos em França, o lugar do islão na Europa. A reboque, e por se tratar de França, surge o mal-estar adicional da Argélia, "uma guerra e uma descolonização que continuam por resolver, com consequências terríveis até hoje", como sintetiza o poeta e ensaísta de origem tunisina Abdelwahab Meddeb.
Cerca de cinco milhões de muçulmanos entre 64 milhões de franceses fazem de França o país com a maior população islâmica da Europa e tornaram o islão na segunda maior religião do país, depois do catolicismo. A polémica sobre a interdição do véu integral feminino, ou niqab, motivou a abertura de uma missão da Assembleia Nacional, que realizou dezenas de audiências, algumas ao rubro e no limite da agressão física entre participantes e deputados.
O relatório da missão, com alterações ao sabor das discussões no seio dos maiores partidos, foi votado em Conselho de Ministros em Maio e aprovado pela Assembleia Nacional em Julho, que ignorou uma derrota de percurso: o Conselho de Estado chumbou o projecto de lei. Catorze meses depois, o processo atinge agora a fase crucial de discussão na câmara alta do parlamento francês. Se for aprovada, a lei de interdição geral do niqab terá provavelmente que enfrentar o Conselho Constitucional e as instâncias de justiça europeia, conforme prometem as organizações de defesa de direitos humanos.
O Presidente da República francês, Nicolas Sarkozy, lançou a discussão sobre a interdição do niqab ao declarar, num discurso em Junho de 2009, que "o véu integral não será bem-vindo em França". O debate é acompanhado de perto em países como a Bélgica, a Espanha, a Itália e a Alemanha, onde interdições totais ou parciais do véu islâmico ao nível federal ou regional foram aprovadas nos últimos meses. A polémica é também seguida a levante - e não apenas pelos integristas. O niqab foi recentemente proibido em universidades do Egipto e da Síria.
Segundo o Ministério do Interior francês, o niqab é usado por "cerca de duas mil mulheres" em França, ou seja, três por cada cem mil habitantes, embora outras fontes citem um número ainda menor, de não mais que 600 mulheres. Noventa por cento dos casos recenseados pelo Ministério do Interior têm menos de 40 anos e um quarto são "novas convertidas". As muçulmanas que cobrem totalmente o rosto vivem, sobretudo, nas grandes cidades e periferias de Paris, Lyon e Marselha, segundo o mesmo estudo oficial.
Qualquer que seja o resultado do debate do niqab - uma lei ou um projecto derrotado no parlamento ou nos tribunais -, a França terá sempre muito mais um acordo mínimo e muito menos uma solução abrangente para uma situação que toca e questiona os fundamentos do "viver em comum" republicano e laico. O título do relatório da missão parlamentar sobre o niqab, "A recusa da República", resume numa ambiguidade semântica o radicalismo com que o país vive a questão. "A República recusa o véu integral e o véu integral é uma recusa da República", explica o deputado André Gerin, um dos intervenientes directos na polémica ouvidos directamente pela Pública em Paris e em Lyon.2. A cruzada
Provando que a questão atravessa as clivagens partidárias clássicas entre esquerda (na oposição) e a direita republicana (actualmente no poder), foi o deputado comunista André Gerin quem presidiu à Missão de Informação Sobre o Uso do Véu Integral no Território Nacional. Gerin fez sua a "cruzada" - o termo é dele - contra a shariah em solo francês.
André Gerin, cujo lema é "o amor do vermelho no respeito do branco e do azul", fala exaltado da ameaça colocada à república laica francesa pelos "gurus" e pelos "taliban" nos bairros difíceis das grandes cidades, "mas também no meio rural, onde o integrismo e o comunitarismo ganham rapidamente terreno".
No modelo francês, onde igualdade e cidadania são os pilares da sociedade, o "comunitarismo" é o oposto de desejável integração.
"O uso do véu integral muçulmano é a árvore que esconde a floresta", afirma Gerin com preocupação perante o recrudescimento do "comunitarismo". "A shariah, a lei islâmica, existe na prática em certos bairros periféricos (banlieues) de Lyon ou de Paris". O deputado, que é presidente da Câmara de Vénissieux, uma periferia "quente" de Lyon, diz conhecer bem esta situação no seu próprio município.
"O mais grave não é o véu integral. É o conflito cada vez mais frequente nos serviços civis do Estado. Na nova maternidade de Lyon há, em média, cinco situações de ameaça e conflito por semana, provocadas pelos "gurus" que acompanham as mulheres" veladas, diz o deputado e autarca.
André Gerin reclama "um islão republicanamente compatível" e assegura defender "os princípios da laicidade e a interdição do véu integral por razões de ordem pública". O problema vem de longe, em primeiro lugar da Argélia e dos seus dois grandes conflitos armados, o dos anos 50 com a guerra pela independência, e a guerra civil nos anos noventa. As duas guerras radicalizaram duas gerações de magrebinos em França, nota o deputado comunista, que recorda em simultâneo a influência da Guerra do Golfo de 1991 junto dos jovens muçulmanos franceses.
"O essencial dos problemas da França está ligado ao Magrebe e sobretudo à Argélia", diz Gerin. "Não tenho dúvidas de que, nos anos 90, elementos do GIA [Grupo Islâmico Armado, integrista] vieram habitar nos nossos bairros". O deputado fala de uma "indiferença ou cegueira da classe política nos últimos 15 anos".
"Os professores das escolas dos bairros populares [banlieues] foram os primeiros a perceber a mudança porque, de repente, tinham adolescentes de 13 ou 14 anos a contestar as aulas de Biologia, de Ciências Naturais ou de História", recorda Gerin, sublinhando que a radicalização das comunidades muçulmanas em França "acentuou-se depois do 11 de Setembro".
No seu percurso, o autarca de Vénissieux salienta "dois acontecimentos principais" que o obrigaram "a ver as coisas mais de perto". O primeiro caso foi o de dois jovens da sua comuna que "apareceram como contactos da Al-Qaeda no Afeganistão em 2001 e foram parar a Guantánamo". Gerin conhecia pessoalmente o pai e o tio de um deles, ambos emigrantes argelinos, operários na mesma fábrica de automóveis, em França.
O outro caso foi o processo de expulsão para a Argélia, pelo Ministério do Interior francês e a pedido do autarca, de um imã integrista salafista. A missão parlamentar sobre o niqab respondeu a um pedido do deputado, iniciativa que a esquerda, "mesmo os comunistas", não apoiou.Para André Gerin, "o verdadeiro problema de fundo, estratégico, para a França, é que os "os muçulmanos, devem encontrar condições de dignidade que não têm hoje", recordando que "noventa por cento vivem nos bairros populares, em condições de pauperização graves". Sentem-se "excluídos e os integristas usam este sentimento de pessoas que não têm futuro", afirma o autarca, que espera também dos líderes muçulmanos franceses "atitudes públicas mais corajosas" do que as demonstradas durante as audiências da missão parlamentar sobre o niqab.
"A laicidade é a república. Está resolvida por lei desde 1905. Não há razão para não resolvermos com os muçulmanos o que foi resolvido com os católicos, os protestantes e os judeus", resume André Gerin.
3. O véu
Malek Chebel olha para as suas palmas abertas, com o mesmo gesto de quem olha para as escrituras sagradas: conhece umas e outras de cor. "O Corão é toda a minha vida nos últimos dez anos e conheço o texto como conheço as minhas mãos. Posso dizer que a palavra burqa e a palavra niqab não aparecem em lado nenhum do livro uma única vez."
Chebel, o antropólogo e filósofo argelino que cunhou a expressão Islão das Luzes num dos seus livros mais conhecidos, é o tradutor francês do Corão, tarefa que o obrigou a aprofundar a semântica e a história dos versículos sagrados.
"No Corão há a palavra "véu", hijab, que desapareceu ela própria do dicionário do árabe moderno, e que é uma palavra polissémica", explica Malek Chebel. Hijab designa algo que "pode esconder ou com que podemos esconder-nos. Tem um sentido de protecção. E o "véu" pode ser signo de distinção social, não forçosamente de imposição", acrescentou o tradutor do Corão.
Isso era no século VII, prossegue Chebel, que recorda o apogeu islâmico do al-Andaluz e a época em que poetas como Ibn Hazm podiam ver mulheres e, "mais ainda", escrever sobre o seu espanto, "coisas do género "eu vi uma loura"..."
"Entretanto, o islão regrediu. Estamos hoje num islão regressivo, que faz com que o véu se imponha à mulher, embora não saibamos o que é, porque hijab pode ser uma écharpe, um xaile, uma mantilha, um niqab". Em rigor, niqab designa apenas o tecido ou gaze que a mulher coloca sobre o nariz.
No actual debate sobre a interdição legal do véu, "o que está em causa é, apenas, o lugar do islão em França, na Europa e no mundo", diz Malek Chebel, que abordou o tema em diferentes ocasiões no programa de temas religiosos "Filhos de Abraão" num canal televisivo francês - um talk-show em que os outros dois "filhos" são um grande rabi e um teólogo católico.
"A mulher que põe a burqa não reage em relação ao islão, reage em relação ao lugar do islão na sociedade ocidental ou ao lugar dela na constelação familiar", sublinha Malek Chebel.
"O islão causa medo e posso compreender porquê: é uma religião jovem, em renascimento. O futuro é do islão. O islão é uma religião masculina, em que valores como a força, a guerra, a riqueza, o patriarcado não são postos em causa. Em contraste, o cristianismo é uma religião de compaixão, que no Oriente é uma virtude por excelência feminina", acrescenta Chebel sobre o contexto da polémica.
O véu integral, nota o tradutor do Corão, "diz respeito a apenas 650 mulheres em França, na maior parte convertidas", a quem Malek Chebel atribui "excesso de zelo".
"A intenção de suprimir o véu do espaço público convém-me perfeitamente, mas o método não é correcto. Legislar é má ideia", sublinha este filósofo do islão, exemplificando que "não se legisla para proibir o topless mas legisla-se por causa de 650 mulheres" numa população de 64 milhões de pessoas."Não é sério fazer tal lei. É uma lei pontual e isso é muito violento para o islão. A lei deve ser universal e ter vocação de unidade e harmonia", diz Chebel, que defende outro tipo de acções, como "uma campanha de pedagogia e de incitamento junto das mulheres para levantar o véu e explicar que o espaço público francês não lhe permite usar o véu integral".
"A questão é dupla. Será que o islão pede que se proteja a mulher e será que a mulher - quando o islão se torna exíguo, fundamentalista, reaccionário, estreito e ambíguo - deve ser protegida do islão e dela própria?"
Malek Chebel sublinha que "não podemos imaginar a condição feminina isolada: se as mulheres são regressivas, se não têm o seu espaço, é porque os homens também são". A discussão não é religiosa. "É de cidadania."
4. O rosto
Também para o poeta tunisino Abdelwahab Meddeb há um arcaísmo semântico na palavra burqa, que no arábico medieval designava "cobrir integralmente". Meddeb encontrou a palavra num dicionário do século XIV, que condensa os primeiros cinco séculos de lexicografia árabe. Burqa significava o pano que cobre o enorme cubo da Kaaba em Meca. Mais irónico: "É uma palavra provavelmente de origem não semítica, estrangeira, talvez persa. Só surgiu na linguagem contemporânea no uso afegão", nota Meddeb. "Em árabe usa-se niqab".
Abdelwahab Meddeb acrescenta uma leitura metafísica e filosófica à polémica do niqab, sublinhando que o rosto humano, e, de entre todos, o rosto feminino, "é um espelho de deus". Para Meddeb, o véu - burqa ou niqab, "extensões do hijab" - "é um crime que mata a face, barrando o acesso perpétuo ao outro".
"O eclipse da face oculta a luz do rosto, onde se reconhece a epifania divina que inspirou o espírito e o coração do islão", sintetiza Meddeb. O rosto é sobretudo importante na tradição sufi, reconhece o autor tunisino, "mas os sufis trabalham apenas com materiais corânicos e tradicionais. Há versículos corânicos que descrevem a bem-aventurança do dia do julgamento e a descrição insiste marcadamente em rostos radiosos: "rostos radiosos, de homens e de mulheres, plenos de luz".
"Os sufis viam um sinal divino no milagre da face humana, sobretudo quando adornada de beleza feminina", recorda Abdelwahab. "Elevamo-nos assim, de rosto em rosto, do visível ao invisível, do humano ao divino, segundo a palavra profética, a hadith (retomada pela Bíblia) que diz que o homem foi criado à imagem de Deus".
Meddeb recorre a uma passagem do Corão (LV, 26-27): "Tudo é transitório, nada perdura além da face do Teu senhor". Deste modo, "a perenidade da face divina enquanto absoluto reflecte a sua marca sobre o suporte que lhe oferecem todos os rostos humanos".
Abdelwahab Meddeb refere "um versículo muito belo" em que, por um jogo de palavras semelhantes, se contrapõem em "homofonia" a palavra árabe que quer dizer "radioso pleno de luz" e a palavra para dizer "contemplando a Deus". O mesmo fonema "designa a luminosidade do rosto e o facto de esse rosto olhar a Deus. Como se a luz de Deus resplandecesse nos rostos humanos de quem o olha", explica o grande poeta tunisino.
O poeta e místico sufi Ibn Arabi, diz Meddeb, "vai mais longe porque diz que o rosto é o lugar por excelência da teofania. O rosto humano torna-se o espelho onde se reflecte o rosto de Deus. Ibn Arabi diz até que Deus é belo e, por isso, os rostos perfeitos para reflectir o rosto divino são os rostos de maior beleza, que são os das mulheres e os dos efebos".
"Para um muçulmano espiritual como Ibn Arabi, em polémica com os cristãos, é claro que não há monaquismo ou celibato no islão. A relação corpo a corpo entre mulher e homem seria essencialmente vulgar se não existisse a constatação de que é no momento extremo do gozo feminino que aparece a maior epifania divina. Sob todos os pontos de vista, o rosto torna-se o lugar da teofania. É um pouco tântrico, porque o sexo torna-se espiritual", sublinha Abdelwahab Meddeb.Tal como Malek Chebel, também Abdelwahab Meddeb recua a pensadores como Ibn Arabi e ao al-Andaluz para invocar um mundo muçulmano bem diferente da radicalização política de final do milénio, oferecida hoje como uma suposta alternativa à hegemonia ocidental. Este integrismo esconde no islão "o desconsolo da sua destituição" como cultura de referência - aquilo a que Meddeb chamou, no rescaldo do 11 de Setembro de 2001, A Doença do Islão.
"As coisas tomaram estas proporções devido a uma operação polémica", acusa também o poeta tunisino. "Já não estamos na tradição. Nem sequer na corrente da universidade Al-Azhar, no Cairo, a maior autoridade do mundo islâmico, que tomou posição contra o véu, lembrando que o niqab não é uma obrigação divina, uma farid"a, nem uma disposição cultural, uma ibâda, mas uma ada, ou costume. O mufti do Egipto, Ali Juma, confirmou esta declaração: trata-se de um costume arábico pré-islâmico que o islão está em condições de dissolver".
"Em oposição à cultura ocidental, que é uma cultura de desnudamento, joga-se uma cultura da arquivirtude até às últimas consequências. A cultura do pudor joga-se contra a cultura do despudor", acrescenta o poeta tunisino sobre o choque cultural entre islão e Ocidente.
"Vivemos no meio de uma guerra de imagens, à escala mundial, uma guerra pela conquista de imaginários e dos espíritos, em que as organizações integristas pretendem atingir o poder a todo o custo. Até agora, os integristas falharam, porque não há estados integristas, ou há apenas dois ou três. Mesmo na Arábia Saudita wahhabita, o regime desencadeou uma guerra sem tréguas, militar e policial, contra os bin-ladistas. O problema, segundo Abdelwahab Meddeb, "é que a guerra contra o integrismo é feita com concessões ao integrismo. Não é uma guerra conduzida de maneira radical. O combate é radical do ponto de vista militar e securitário mas não o é do ponto de vista ideológico. De certa forma, o integrismo islâmico consegue ganhar terreno e visibilidade".
"O islão do justo meio é um islão que faz muitas concessões à interpretação integrista e maximalista da tradição islâmica", acusa também Meddeb, que nota, apesar de tudo, que "o debate é interessante e a diversidade dos pontos de vista está prestes a instalar-se de novo entre os doutores do islão".
Debates como os da interdição do niqab em França ou dos minaretes na Suíça ou na Bélgica são momentos em que o islão integrista consegue ganhar terreno ao criar um território político onde se jogam exigências e concessões. Meddeb recorda, a propósito, que "os islamistas mas também os piedosos salafistas são exortados pelo Conselho Europeu da fatwa a agir dentro da legalidade para conseguir, na Europa, parcelas de visibilidade em favor da lei islâmica".
À "doença do islão" corresponde, no caso da República Francesa, um "mal-estar terrível de um país que não tem consciência de que perdeu um combate universal que era seu até aos anos 50". Para Meddeb, "há meio século, qualquer intelectual sofisticado egípcio, turco, hindu, persa, era-o por referência à França. Autores como Sartre e Camus eram de imediato traduzidos em árabe". Hoje, "no meio dos homens de cultura, os homens de quem podemos dizer que estudam, só são francófonos os que têm mais de 60 anos. A cultura inglesa destronou o lugar da França. A cultura francesa já não é atraente".
"A França é um país democrático que tenta gerir pela pluralidade dos pontos de vista o seu racismo fundamental e a sua recusa fundamental da diversidade", acusa Meddeb, que concorda com André Gerin apenas num ponto: "A França não resolveu a questão argelina e há um efeito considerável da guerra da Argélia sobre os jovens argelinos e sobre os franceses. O trabalho de reflexão sobre a Argélia não foi feito em França de imediato, como os americanos fizeram para a guerra do Vietname. Não há até hoje um equivalente francês do Apocalypse Now, de Coppolla, ou das Portas do Inferno, de Cimino."A herança é tão pesada, segundo Meddeb, porque "a França falhou de uma forma espectacular na Argélia. O país que criou a noção do Estado de direito com Montesquieu, durante todo o século XVIII até à Revolução Francesa, não esteve à altura desse princípio e acabou por violá-lo, embora se recuse a admiti-lo. A França nunca ousou dar à Argélia o mesmo estatuto da Reunião, Martinica e Guadalupe no território nacional e teve por isso que gerir até aos anos 50 nove milhões de cidadãos sem cidadania".
"Essa entorse ao direito paga-se até hoje. O islão é uma velha questão francesa que se tornou numa questão filosófica e jurídica que continua terrivelmente em aberto". Meddeb recorda que, no início da colonização da Argélia, quando "tribos inteiras desceram dos montes às prefeituras para pedirem a nacionalidade francesa, a França entrou em pânico e encontrou uma paródia jurídica. Qual foi? Apresentou a milhares de argelinos a cidadania e o direito positivo como uma opção que lhes retirava o estatuto pessoal de direito muçulmano, que eles não queriam abandonar. Foi a França que cavou um fosso entre islão e cidadania, por solução de facilidade e interesse de apaziguamento". Já Alexis de Tocqueville, nos anos 30 do século XIX, denunciava o facto de a administração francesa "trabalhar com os incompetentes" entre os muçulmanos e com isso "preparando a bomba-relógio do fanatismo islâmico".
Uma nota simbólica "mas que confirma o trauma argelino": 92 e 93, números dos dois departamentos da Grande Paris de maior densidade muçulmana, "ou seja, os interditos da polícia, eram os números dos departamentos de Constantine e de Orão" na Argélia colonial francesa.
"A lei da burqa é uma prenda, uma felicidade absoluta" para os adversários da democracia, diz Abdelwahab Meddeb, que encara a interdição legal do véu com muitas reservas. "Tenho horror à burqa, demonstrei a sua nulidade metafísica, ontológica e jurídica, mas eles jogam bem. É essa a canalhice dos que argumentam a favor da interdição. Acenam com a liberdade de culto, mas se eles tomarem o poder não lhe obedecem. São como os fascistas, pois usam a democracia para anular a democracia. O que fazer? Devemos permanecer na lógica jurídica e democrática."
5. O interdito
O respeito absoluto pelos alicerces da democracia deixou Caroline Fourest, uma das principais vozes femininas na polémica do niqab, no lugar bizarro de feminista em dupla campanha contra o véu integral e contra a sua interdição legal.
"Estamos em França e em democracia, não estamos na Arábia Saudita ou no Irão", resume esta conhecida ensaísta, socióloga e jornalista, fundadora da revista e associação feminista ProChoix. "O integrismo é legal neste país e isso é bom. O integrismo é uma ideia, é um valor, é uma ideologia, e eu não quero que proíbam as ideias das pessoas. A democracia é bastante mais cansativa. A democracia deixa-nos exaustos. É preciso confrontar-nos com as ideias dos outros a todo o tempo e responder argumento por argumento", repete Caroline Fourest.
A fundadora da ProChoix distancia-se, desta forma, da corrente principal das feministas francesas nesta longa polémica, nomeadamente dos apelos dramáticos à interdição do véu integral lançados, ao longo de meses, pela jovem franco-argelina Sihen Habshid, o rosto mais conhecido da organização Nem Putas Nem Submissas.Caroline Fourest protagoniza também nos meios de comunicação social franceses e no seu blogue, em diversos artigos, uma batalha verbal em que procura desmascarar as ligações do académico suíço Tariq Ramadan à Irmandade Muçulmana [de cujo fundador, o egípcio Hassan al-Banna, é neto]. Para Caroline Fourest, a lógica da interdição legal serve os objectivos de radicalização do islão na Europa que, segundo ela, orienta a acção de homens como Tariq Ramadan, que foi aliás ouvido pela missão parlamentar sobre o niqab.
Caroline Fourest salienta que em países como a Holanda, o Reino Unido e a Bélgica se esperou "demasiado tempo" discutindo o véu islâmico "e os políticos tentam arranjar soluções simples, porque são mais simples de explicar a quem diz respeito".
"No entanto, não estamos aqui para nossa própria satisfação, mas para sermos eficazes. Não podemos renegar os nossos próprios princípios sob pretexto de combater o nosso adversário, respondendo à intolerância com intolerância", defende a socióloga e autora francesa.
Fourest, que defende a necessidade de um "consenso republicano" contra a interdição do véu, espera "que o legislador seja suficientemente inteligente para permitir que este combate continue a fazer-se ao nível das ideias e deixar o espaço necessário para lutar contra esta propaganda integrista".
"Não é por estarmos em combate que nos é interdito pensar", nota Caroline Fourest, conhecida do grande público francês pelos seus documentários televisivos e a sua coluna regular em Le Monde. "Lamento que uma mulher tenha a ideia infeliz de se cobrir totalmente, ou que um homem mande tapar a sua mulher como se faz a um carro ou a um sofá, para se apropriar [dela]", resume Fourest. "O facto de as mulheres usarem o véu com seu consentimento, ou dizendo que o deram, não retira nada à sua violência. Bem pelo contrário. O facto de aceitar e mesmo de defender o direito à humilhação ilustra bem a capacidade de interferência proselitista de uma tal mentalidade sectária".
Caroline Fourest sublinha, no entanto, que "uma lei simbólica contra o véu integral teria o inconveniente de ser particular e comportaria o risco de ser inaplicável. Porquê proibir o véu integral mas não o uso da máscara em período de gripe A? Pela dignidade das mulheres? Mas então, por que não proibir o véu simples? Não é também um atentado à dignidade das mulheres? E se vamos proibir o véu simples na rua, porque não interditar qualquer sinal tendencioso? Evitemos este círculo infernal e procuremos a eficácia". Para a directora da ProChoix, o equilíbrio entre os dois valores em causa - "dignidade das mulheres e segurança" - pode ser encontrado com "regras gerais que regulamentem a obrigação de se identificar".
6. A ficção
A interdição do véu integral "é um caminho exigente, mas um caminho justo", afirmou o Presidente Nicolas Sarkozy a propósito da votação do projecto de lei. O relatório da missão parlamentar sobre o niqab declarou "a recusa da República" ao uso do véu integral e preconizou a sua interdição em todo o espaço público, incluindo hospitais, transportes e serviços como correios, repartições e bancos.
Trata-se de uma proposta "clara, exacta e equilibrada", diz André Gérin. O deputado salienta que a proposta de lei "inclui uma dimensão pedagógica sobre as condições de vida em comum", nomeadamente o prazo de seis meses dado à infractora e o "estágio de cidadania". A proposta prevê também "medidas repressivas em particular contra os gurus que reduzem a sua mulher à escravidão".
O diploma cria um novo tipo de ofensa, o de "instigação à dissimulação do rosto por motivo de género", que corresponde ao acto de impor uma peça como o niqab pela "violência, a ameaça, o abuso de poder ou de autoridade".A votação na Assembleia Nacional foi precedida de uma outra polémica na imprensa, com a história de uma mulher interpelada pela polícia em Nantes, na costa atlântica, quando conduzia de niqab. As autoridades consideraram o véu integral "um traje impróprio". Tempos antes, uma outra polémica envolveu um presidente da câmara que proibiu a abertura de um estabelecimento de fast-food exclusivamente halal. Um dos folhetins do ano envolveu também outro "tópico" muçulmano recorrente em França, a poligamia, com várias acusações dirigidas pelo ministro do Interior, Brice Hortefeux, contra Liès Hebbadj, detido por "violações agravadas".
"É muito caricatural", comenta M"hammed Henniche sobre a imagem dos muçulmanos franceses. "Em França, o último emprego é sempre para o árabe, mesmo depois do africano. E todos os aspectos práticos do islão são um problema em França. A oração nas ruas é proibida mas quando queremos construir uma mesquita alguém monta um escândalo. Até o sacrifício ritual do carneiro é contestado por organizações que atacam as viaturas onde os animais são transportados para a cerimónia".
"A experiência no terreno mostra que a estigmatização afecta menos os marroquinos, os tunisinos ou os egípcios. O problema é com a Argélia. A França, sobretudo a geração mais velha, ainda não aceitou a descolonização e mantém um rancor que se vira contra os muçulmanos", acrescenta M"hammed Henniche.
Este líder muçulmano nota, porém, que o mês do Ramadão, iniciado este ano a 12 de Agosto, abriu "não diria uma trégua mas um tempo de respeito". Dois exemplos inéditos, para espanto de M"hammed Henniche: a RTL anuncia diariamente a hora de quebrar o jejum, "como qualquer rádio num país muçulmano", e a principal estação, a TF1, "que desde há muito é o centro das campanhas antimuçulmanas em França", passou pela primeira vez um anúncio publicitário a uma marca de carne halal. "Até Brice Hortefeux fez uma declaração conciliatória aos muçulmanos pelo Ramadão", nota Henniche em rodapé. É como se a sociedade francesa recebesse o seu islão com a mesma doçura sazonal e inesperada deste Agosto chuvoso, alívio possível a um jejum que em 2010 cai nos dias mais longos do ano - "são quase dezassete horas entre as cinco da manhã e as nove da noite, um tempo demasiado longo sem beber água se fizer muito calor..."
O mês do jejum contém laylatu"l-qadr, a "noite do destino", em que foi revelado o Corão, e é por isso "melhor do que mil meses", recorda Abdelwahab Meddeb. "O jejum instaura uma partilha entre o tempo santo e o tempo ordinário", resume o poeta tunisino.
Azzedin Gaci, responsável de um conselho de mesquitas conservadoras na região de Lyon, nota que este mês de partilha é este ano - 1431 da Hégira - vivido pelos muçulmanos de França "de uma forma especial". Como ele, milhares de muçulmanos abreviaram as férias no Magrebe para viver em França o mês de jejum. "Para mim, isto testemunha uma vontade muito forte de integração". O fim do Ramadão e o regresso da polémica sobre o niqab coloca de novo o islão francês perante o desafio essencial, diz Gaci: "É preciso abrir um debate franco sobre o que significa ser muçulmano hoje neste país".
"O problema essencial é o medo em França e na Europa de uma desnaturalização do islão, acompanhada por uma instrumentalização política. Quando se vive uma situação de fracasso, quando não se encontram soluções para o desemprego, para a precariedade, para a dureza de vida, para a crise geral, inventam-se manobras de diversão como o terrorismo, o fundamentalismo, o integrismo e a prática do culto muçulmano em geral", acusa Azzedin Gaci.
"Há uma gestão policial, colonial do islão e, enquanto durar este estado de coisas, não se resolverão as tensões. O que me incomoda é que não se fala do essencial, que são os problemas sociais da França, mais relevantes do que a História e a memória", diz também Gaci "enquanto francês responsável de culto muçulmano".Se o endurecimento galopante do discurso político francês, pela direita, nas últimas semanas, encontrar eco no parlamento, o projecto de interdição do niqab será aprovado em breve e poderá estar em vigência no próximo ano, dizem os analistas. A palavra soberana, porém, pertencerá aos juízes, de quem dependerá quase toda a eficácia e a aplicabilidade da interdição. Vários juristas "recordaram discretamente" à Assembleia Nacional que os deputados "não podem decidir o que lhes apetecer", porque há instâncias judiciais acima dos deputados e que o legislador "está sob vigilância". Um especialista de direito internacional público, Bertrand Mathieu, desmantelou até a legitimação "jurídica" da proibição legal do niqab, ao explicar que "são os poderes e serviços públicos que são submetidos à laicidade e não os indivíduos, o espaço público e o corpo social".
Denys de Béchillon desferiu um golpe jurisprudencial ainda mais drástico, ao afirmar que "a dignidade da pessoa humana não está escrita na Constituição. Foi (apenas) uma dedução do Conselho Constitucional, uma inferência do legislador constituinte de 1946" num contexto histórico marcado pelo Holocausto. Béchillon questionou mesmo a possibilidade legal de presumir que a mulher velada pelo niqab o faça por imposição de outrém e não de sua livre vontade. "Disso eu não sei nada. O cerne da democracia é viver na ficção do livre arbítrio das pessoas com quem lidamos", explicou o jurista, exemplificando com o caso mais óbvio do voto.
Enfim, por muito que doa à República, os doutores explicaram à Assembleia e a França que "fraternidade é uma exigência jurídica com a qual ninguém sabe o que fazer", mesmo que se admita uma citação do filósofo Lévinas, para ressalvar que "o rosto é o elemento da identidade".
"Mas isso é filosofia, não é direito".
O debate sobre a interdição do véu integral islâmico em França entra, ?na próxima semana, na sua fase crucial. A polémica é acompanhada de perto na Bélgica, Espanha, Itália e Alemanha. Esta discussão não é religiosa? - é de cidadania, diz Malek Chabel, tradutor do Corão. As palavras ?"burqa" e "niqab" não existem no livro sagrado dos muçulmanos. E "hijab" desapareceu do dicionário de árabe moderno.
1. A polémica
Na próxima semana, a rentrée política francesa promete amalgamar em 48 horas o debate sobre a interdição legal do véu integral islâmico - o niqab -, o fim do Ramadão e o aniversário dos atentados da Al-Qaeda em Nova Iorque. "Não é nada bom", resume M"hammed Henniche, responsável de um conselho muçulmano que reúne trinta mesquitas em Seine-Saint-Denis, na periferia norte de Paris, no coração da França islâmica.
"Chegámos aqui depois de um ano rico em ataques políticos aos muçulmanos franceses", acusa Henniche, contando pelos dedos as várias "ofensivas". "Começou em Junho de 2009, com a abertura da missão parlamentar sobre o véu. Depois foi o debate sobre a identidade nacional, que foi o que se viu. Depois discutiu-se os minaretes por causa do referendo na Suíça. A seguir começaram a falar da poligamia. Agora é a ameaça de retirar a nacionalidade aos de origem estrangeira. Às vezes pensamos: será que fazem de propósito?"
A coincidência incendiária de agenda entre política francesa, calendário islâmico e efeméride terrorista escancara, afinal, toda a complexidade de um debate que vai muito além do véu muçulmano: o lugar da religião num Estado laico, o lugar da mulher no islão, o lugar dos muçulmanos em França, o lugar do islão na Europa. A reboque, e por se tratar de França, surge o mal-estar adicional da Argélia, "uma guerra e uma descolonização que continuam por resolver, com consequências terríveis até hoje", como sintetiza o poeta e ensaísta de origem tunisina Abdelwahab Meddeb.
Cerca de cinco milhões de muçulmanos entre 64 milhões de franceses fazem de França o país com a maior população islâmica da Europa e tornaram o islão na segunda maior religião do país, depois do catolicismo. A polémica sobre a interdição do véu integral feminino, ou niqab, motivou a abertura de uma missão da Assembleia Nacional, que realizou dezenas de audiências, algumas ao rubro e no limite da agressão física entre participantes e deputados.
O relatório da missão, com alterações ao sabor das discussões no seio dos maiores partidos, foi votado em Conselho de Ministros em Maio e aprovado pela Assembleia Nacional em Julho, que ignorou uma derrota de percurso: o Conselho de Estado chumbou o projecto de lei. Catorze meses depois, o processo atinge agora a fase crucial de discussão na câmara alta do parlamento francês. Se for aprovada, a lei de interdição geral do niqab terá provavelmente que enfrentar o Conselho Constitucional e as instâncias de justiça europeia, conforme prometem as organizações de defesa de direitos humanos.
O Presidente da República francês, Nicolas Sarkozy, lançou a discussão sobre a interdição do niqab ao declarar, num discurso em Junho de 2009, que "o véu integral não será bem-vindo em França". O debate é acompanhado de perto em países como a Bélgica, a Espanha, a Itália e a Alemanha, onde interdições totais ou parciais do véu islâmico ao nível federal ou regional foram aprovadas nos últimos meses. A polémica é também seguida a levante - e não apenas pelos integristas. O niqab foi recentemente proibido em universidades do Egipto e da Síria.
Segundo o Ministério do Interior francês, o niqab é usado por "cerca de duas mil mulheres" em França, ou seja, três por cada cem mil habitantes, embora outras fontes citem um número ainda menor, de não mais que 600 mulheres. Noventa por cento dos casos recenseados pelo Ministério do Interior têm menos de 40 anos e um quarto são "novas convertidas". As muçulmanas que cobrem totalmente o rosto vivem, sobretudo, nas grandes cidades e periferias de Paris, Lyon e Marselha, segundo o mesmo estudo oficial.
Qualquer que seja o resultado do debate do niqab - uma lei ou um projecto derrotado no parlamento ou nos tribunais -, a França terá sempre muito mais um acordo mínimo e muito menos uma solução abrangente para uma situação que toca e questiona os fundamentos do "viver em comum" republicano e laico. O título do relatório da missão parlamentar sobre o niqab, "A recusa da República", resume numa ambiguidade semântica o radicalismo com que o país vive a questão. "A República recusa o véu integral e o véu integral é uma recusa da República", explica o deputado André Gerin, um dos intervenientes directos na polémica ouvidos directamente pela Pública em Paris e em Lyon.2. A cruzada
Provando que a questão atravessa as clivagens partidárias clássicas entre esquerda (na oposição) e a direita republicana (actualmente no poder), foi o deputado comunista André Gerin quem presidiu à Missão de Informação Sobre o Uso do Véu Integral no Território Nacional. Gerin fez sua a "cruzada" - o termo é dele - contra a shariah em solo francês.
André Gerin, cujo lema é "o amor do vermelho no respeito do branco e do azul", fala exaltado da ameaça colocada à república laica francesa pelos "gurus" e pelos "taliban" nos bairros difíceis das grandes cidades, "mas também no meio rural, onde o integrismo e o comunitarismo ganham rapidamente terreno".
No modelo francês, onde igualdade e cidadania são os pilares da sociedade, o "comunitarismo" é o oposto de desejável integração.
"O uso do véu integral muçulmano é a árvore que esconde a floresta", afirma Gerin com preocupação perante o recrudescimento do "comunitarismo". "A shariah, a lei islâmica, existe na prática em certos bairros periféricos (banlieues) de Lyon ou de Paris". O deputado, que é presidente da Câmara de Vénissieux, uma periferia "quente" de Lyon, diz conhecer bem esta situação no seu próprio município.
"O mais grave não é o véu integral. É o conflito cada vez mais frequente nos serviços civis do Estado. Na nova maternidade de Lyon há, em média, cinco situações de ameaça e conflito por semana, provocadas pelos "gurus" que acompanham as mulheres" veladas, diz o deputado e autarca.
André Gerin reclama "um islão republicanamente compatível" e assegura defender "os princípios da laicidade e a interdição do véu integral por razões de ordem pública". O problema vem de longe, em primeiro lugar da Argélia e dos seus dois grandes conflitos armados, o dos anos 50 com a guerra pela independência, e a guerra civil nos anos noventa. As duas guerras radicalizaram duas gerações de magrebinos em França, nota o deputado comunista, que recorda em simultâneo a influência da Guerra do Golfo de 1991 junto dos jovens muçulmanos franceses.
"O essencial dos problemas da França está ligado ao Magrebe e sobretudo à Argélia", diz Gerin. "Não tenho dúvidas de que, nos anos 90, elementos do GIA [Grupo Islâmico Armado, integrista] vieram habitar nos nossos bairros". O deputado fala de uma "indiferença ou cegueira da classe política nos últimos 15 anos".
"Os professores das escolas dos bairros populares [banlieues] foram os primeiros a perceber a mudança porque, de repente, tinham adolescentes de 13 ou 14 anos a contestar as aulas de Biologia, de Ciências Naturais ou de História", recorda Gerin, sublinhando que a radicalização das comunidades muçulmanas em França "acentuou-se depois do 11 de Setembro".
No seu percurso, o autarca de Vénissieux salienta "dois acontecimentos principais" que o obrigaram "a ver as coisas mais de perto". O primeiro caso foi o de dois jovens da sua comuna que "apareceram como contactos da Al-Qaeda no Afeganistão em 2001 e foram parar a Guantánamo". Gerin conhecia pessoalmente o pai e o tio de um deles, ambos emigrantes argelinos, operários na mesma fábrica de automóveis, em França.
O outro caso foi o processo de expulsão para a Argélia, pelo Ministério do Interior francês e a pedido do autarca, de um imã integrista salafista. A missão parlamentar sobre o niqab respondeu a um pedido do deputado, iniciativa que a esquerda, "mesmo os comunistas", não apoiou.Para André Gerin, "o verdadeiro problema de fundo, estratégico, para a França, é que os "os muçulmanos, devem encontrar condições de dignidade que não têm hoje", recordando que "noventa por cento vivem nos bairros populares, em condições de pauperização graves". Sentem-se "excluídos e os integristas usam este sentimento de pessoas que não têm futuro", afirma o autarca, que espera também dos líderes muçulmanos franceses "atitudes públicas mais corajosas" do que as demonstradas durante as audiências da missão parlamentar sobre o niqab.
"A laicidade é a república. Está resolvida por lei desde 1905. Não há razão para não resolvermos com os muçulmanos o que foi resolvido com os católicos, os protestantes e os judeus", resume André Gerin.
3. O véu
Malek Chebel olha para as suas palmas abertas, com o mesmo gesto de quem olha para as escrituras sagradas: conhece umas e outras de cor. "O Corão é toda a minha vida nos últimos dez anos e conheço o texto como conheço as minhas mãos. Posso dizer que a palavra burqa e a palavra niqab não aparecem em lado nenhum do livro uma única vez."
Chebel, o antropólogo e filósofo argelino que cunhou a expressão Islão das Luzes num dos seus livros mais conhecidos, é o tradutor francês do Corão, tarefa que o obrigou a aprofundar a semântica e a história dos versículos sagrados.
"No Corão há a palavra "véu", hijab, que desapareceu ela própria do dicionário do árabe moderno, e que é uma palavra polissémica", explica Malek Chebel. Hijab designa algo que "pode esconder ou com que podemos esconder-nos. Tem um sentido de protecção. E o "véu" pode ser signo de distinção social, não forçosamente de imposição", acrescentou o tradutor do Corão.
Isso era no século VII, prossegue Chebel, que recorda o apogeu islâmico do al-Andaluz e a época em que poetas como Ibn Hazm podiam ver mulheres e, "mais ainda", escrever sobre o seu espanto, "coisas do género "eu vi uma loura"..."
"Entretanto, o islão regrediu. Estamos hoje num islão regressivo, que faz com que o véu se imponha à mulher, embora não saibamos o que é, porque hijab pode ser uma écharpe, um xaile, uma mantilha, um niqab". Em rigor, niqab designa apenas o tecido ou gaze que a mulher coloca sobre o nariz.
No actual debate sobre a interdição legal do véu, "o que está em causa é, apenas, o lugar do islão em França, na Europa e no mundo", diz Malek Chebel, que abordou o tema em diferentes ocasiões no programa de temas religiosos "Filhos de Abraão" num canal televisivo francês - um talk-show em que os outros dois "filhos" são um grande rabi e um teólogo católico.
"A mulher que põe a burqa não reage em relação ao islão, reage em relação ao lugar do islão na sociedade ocidental ou ao lugar dela na constelação familiar", sublinha Malek Chebel.
"O islão causa medo e posso compreender porquê: é uma religião jovem, em renascimento. O futuro é do islão. O islão é uma religião masculina, em que valores como a força, a guerra, a riqueza, o patriarcado não são postos em causa. Em contraste, o cristianismo é uma religião de compaixão, que no Oriente é uma virtude por excelência feminina", acrescenta Chebel sobre o contexto da polémica.
O véu integral, nota o tradutor do Corão, "diz respeito a apenas 650 mulheres em França, na maior parte convertidas", a quem Malek Chebel atribui "excesso de zelo".
"A intenção de suprimir o véu do espaço público convém-me perfeitamente, mas o método não é correcto. Legislar é má ideia", sublinha este filósofo do islão, exemplificando que "não se legisla para proibir o topless mas legisla-se por causa de 650 mulheres" numa população de 64 milhões de pessoas."Não é sério fazer tal lei. É uma lei pontual e isso é muito violento para o islão. A lei deve ser universal e ter vocação de unidade e harmonia", diz Chebel, que defende outro tipo de acções, como "uma campanha de pedagogia e de incitamento junto das mulheres para levantar o véu e explicar que o espaço público francês não lhe permite usar o véu integral".
"A questão é dupla. Será que o islão pede que se proteja a mulher e será que a mulher - quando o islão se torna exíguo, fundamentalista, reaccionário, estreito e ambíguo - deve ser protegida do islão e dela própria?"
Malek Chebel sublinha que "não podemos imaginar a condição feminina isolada: se as mulheres são regressivas, se não têm o seu espaço, é porque os homens também são". A discussão não é religiosa. "É de cidadania."
4. O rosto
Também para o poeta tunisino Abdelwahab Meddeb há um arcaísmo semântico na palavra burqa, que no arábico medieval designava "cobrir integralmente". Meddeb encontrou a palavra num dicionário do século XIV, que condensa os primeiros cinco séculos de lexicografia árabe. Burqa significava o pano que cobre o enorme cubo da Kaaba em Meca. Mais irónico: "É uma palavra provavelmente de origem não semítica, estrangeira, talvez persa. Só surgiu na linguagem contemporânea no uso afegão", nota Meddeb. "Em árabe usa-se niqab".
Abdelwahab Meddeb acrescenta uma leitura metafísica e filosófica à polémica do niqab, sublinhando que o rosto humano, e, de entre todos, o rosto feminino, "é um espelho de deus". Para Meddeb, o véu - burqa ou niqab, "extensões do hijab" - "é um crime que mata a face, barrando o acesso perpétuo ao outro".
"O eclipse da face oculta a luz do rosto, onde se reconhece a epifania divina que inspirou o espírito e o coração do islão", sintetiza Meddeb. O rosto é sobretudo importante na tradição sufi, reconhece o autor tunisino, "mas os sufis trabalham apenas com materiais corânicos e tradicionais. Há versículos corânicos que descrevem a bem-aventurança do dia do julgamento e a descrição insiste marcadamente em rostos radiosos: "rostos radiosos, de homens e de mulheres, plenos de luz".
"Os sufis viam um sinal divino no milagre da face humana, sobretudo quando adornada de beleza feminina", recorda Abdelwahab. "Elevamo-nos assim, de rosto em rosto, do visível ao invisível, do humano ao divino, segundo a palavra profética, a hadith (retomada pela Bíblia) que diz que o homem foi criado à imagem de Deus".
Meddeb recorre a uma passagem do Corão (LV, 26-27): "Tudo é transitório, nada perdura além da face do Teu senhor". Deste modo, "a perenidade da face divina enquanto absoluto reflecte a sua marca sobre o suporte que lhe oferecem todos os rostos humanos".
Abdelwahab Meddeb refere "um versículo muito belo" em que, por um jogo de palavras semelhantes, se contrapõem em "homofonia" a palavra árabe que quer dizer "radioso pleno de luz" e a palavra para dizer "contemplando a Deus". O mesmo fonema "designa a luminosidade do rosto e o facto de esse rosto olhar a Deus. Como se a luz de Deus resplandecesse nos rostos humanos de quem o olha", explica o grande poeta tunisino.
O poeta e místico sufi Ibn Arabi, diz Meddeb, "vai mais longe porque diz que o rosto é o lugar por excelência da teofania. O rosto humano torna-se o espelho onde se reflecte o rosto de Deus. Ibn Arabi diz até que Deus é belo e, por isso, os rostos perfeitos para reflectir o rosto divino são os rostos de maior beleza, que são os das mulheres e os dos efebos".
"Para um muçulmano espiritual como Ibn Arabi, em polémica com os cristãos, é claro que não há monaquismo ou celibato no islão. A relação corpo a corpo entre mulher e homem seria essencialmente vulgar se não existisse a constatação de que é no momento extremo do gozo feminino que aparece a maior epifania divina. Sob todos os pontos de vista, o rosto torna-se o lugar da teofania. É um pouco tântrico, porque o sexo torna-se espiritual", sublinha Abdelwahab Meddeb.Tal como Malek Chebel, também Abdelwahab Meddeb recua a pensadores como Ibn Arabi e ao al-Andaluz para invocar um mundo muçulmano bem diferente da radicalização política de final do milénio, oferecida hoje como uma suposta alternativa à hegemonia ocidental. Este integrismo esconde no islão "o desconsolo da sua destituição" como cultura de referência - aquilo a que Meddeb chamou, no rescaldo do 11 de Setembro de 2001, A Doença do Islão.
"As coisas tomaram estas proporções devido a uma operação polémica", acusa também o poeta tunisino. "Já não estamos na tradição. Nem sequer na corrente da universidade Al-Azhar, no Cairo, a maior autoridade do mundo islâmico, que tomou posição contra o véu, lembrando que o niqab não é uma obrigação divina, uma farid"a, nem uma disposição cultural, uma ibâda, mas uma ada, ou costume. O mufti do Egipto, Ali Juma, confirmou esta declaração: trata-se de um costume arábico pré-islâmico que o islão está em condições de dissolver".
"Em oposição à cultura ocidental, que é uma cultura de desnudamento, joga-se uma cultura da arquivirtude até às últimas consequências. A cultura do pudor joga-se contra a cultura do despudor", acrescenta o poeta tunisino sobre o choque cultural entre islão e Ocidente.
"Vivemos no meio de uma guerra de imagens, à escala mundial, uma guerra pela conquista de imaginários e dos espíritos, em que as organizações integristas pretendem atingir o poder a todo o custo. Até agora, os integristas falharam, porque não há estados integristas, ou há apenas dois ou três. Mesmo na Arábia Saudita wahhabita, o regime desencadeou uma guerra sem tréguas, militar e policial, contra os bin-ladistas. O problema, segundo Abdelwahab Meddeb, "é que a guerra contra o integrismo é feita com concessões ao integrismo. Não é uma guerra conduzida de maneira radical. O combate é radical do ponto de vista militar e securitário mas não o é do ponto de vista ideológico. De certa forma, o integrismo islâmico consegue ganhar terreno e visibilidade".
"O islão do justo meio é um islão que faz muitas concessões à interpretação integrista e maximalista da tradição islâmica", acusa também Meddeb, que nota, apesar de tudo, que "o debate é interessante e a diversidade dos pontos de vista está prestes a instalar-se de novo entre os doutores do islão".
Debates como os da interdição do niqab em França ou dos minaretes na Suíça ou na Bélgica são momentos em que o islão integrista consegue ganhar terreno ao criar um território político onde se jogam exigências e concessões. Meddeb recorda, a propósito, que "os islamistas mas também os piedosos salafistas são exortados pelo Conselho Europeu da fatwa a agir dentro da legalidade para conseguir, na Europa, parcelas de visibilidade em favor da lei islâmica".
À "doença do islão" corresponde, no caso da República Francesa, um "mal-estar terrível de um país que não tem consciência de que perdeu um combate universal que era seu até aos anos 50". Para Meddeb, "há meio século, qualquer intelectual sofisticado egípcio, turco, hindu, persa, era-o por referência à França. Autores como Sartre e Camus eram de imediato traduzidos em árabe". Hoje, "no meio dos homens de cultura, os homens de quem podemos dizer que estudam, só são francófonos os que têm mais de 60 anos. A cultura inglesa destronou o lugar da França. A cultura francesa já não é atraente".
"A França é um país democrático que tenta gerir pela pluralidade dos pontos de vista o seu racismo fundamental e a sua recusa fundamental da diversidade", acusa Meddeb, que concorda com André Gerin apenas num ponto: "A França não resolveu a questão argelina e há um efeito considerável da guerra da Argélia sobre os jovens argelinos e sobre os franceses. O trabalho de reflexão sobre a Argélia não foi feito em França de imediato, como os americanos fizeram para a guerra do Vietname. Não há até hoje um equivalente francês do Apocalypse Now, de Coppolla, ou das Portas do Inferno, de Cimino."A herança é tão pesada, segundo Meddeb, porque "a França falhou de uma forma espectacular na Argélia. O país que criou a noção do Estado de direito com Montesquieu, durante todo o século XVIII até à Revolução Francesa, não esteve à altura desse princípio e acabou por violá-lo, embora se recuse a admiti-lo. A França nunca ousou dar à Argélia o mesmo estatuto da Reunião, Martinica e Guadalupe no território nacional e teve por isso que gerir até aos anos 50 nove milhões de cidadãos sem cidadania".
"Essa entorse ao direito paga-se até hoje. O islão é uma velha questão francesa que se tornou numa questão filosófica e jurídica que continua terrivelmente em aberto". Meddeb recorda que, no início da colonização da Argélia, quando "tribos inteiras desceram dos montes às prefeituras para pedirem a nacionalidade francesa, a França entrou em pânico e encontrou uma paródia jurídica. Qual foi? Apresentou a milhares de argelinos a cidadania e o direito positivo como uma opção que lhes retirava o estatuto pessoal de direito muçulmano, que eles não queriam abandonar. Foi a França que cavou um fosso entre islão e cidadania, por solução de facilidade e interesse de apaziguamento". Já Alexis de Tocqueville, nos anos 30 do século XIX, denunciava o facto de a administração francesa "trabalhar com os incompetentes" entre os muçulmanos e com isso "preparando a bomba-relógio do fanatismo islâmico".
Uma nota simbólica "mas que confirma o trauma argelino": 92 e 93, números dos dois departamentos da Grande Paris de maior densidade muçulmana, "ou seja, os interditos da polícia, eram os números dos departamentos de Constantine e de Orão" na Argélia colonial francesa.
"A lei da burqa é uma prenda, uma felicidade absoluta" para os adversários da democracia, diz Abdelwahab Meddeb, que encara a interdição legal do véu com muitas reservas. "Tenho horror à burqa, demonstrei a sua nulidade metafísica, ontológica e jurídica, mas eles jogam bem. É essa a canalhice dos que argumentam a favor da interdição. Acenam com a liberdade de culto, mas se eles tomarem o poder não lhe obedecem. São como os fascistas, pois usam a democracia para anular a democracia. O que fazer? Devemos permanecer na lógica jurídica e democrática."
5. O interdito
O respeito absoluto pelos alicerces da democracia deixou Caroline Fourest, uma das principais vozes femininas na polémica do niqab, no lugar bizarro de feminista em dupla campanha contra o véu integral e contra a sua interdição legal.
"Estamos em França e em democracia, não estamos na Arábia Saudita ou no Irão", resume esta conhecida ensaísta, socióloga e jornalista, fundadora da revista e associação feminista ProChoix. "O integrismo é legal neste país e isso é bom. O integrismo é uma ideia, é um valor, é uma ideologia, e eu não quero que proíbam as ideias das pessoas. A democracia é bastante mais cansativa. A democracia deixa-nos exaustos. É preciso confrontar-nos com as ideias dos outros a todo o tempo e responder argumento por argumento", repete Caroline Fourest.
A fundadora da ProChoix distancia-se, desta forma, da corrente principal das feministas francesas nesta longa polémica, nomeadamente dos apelos dramáticos à interdição do véu integral lançados, ao longo de meses, pela jovem franco-argelina Sihen Habshid, o rosto mais conhecido da organização Nem Putas Nem Submissas.Caroline Fourest protagoniza também nos meios de comunicação social franceses e no seu blogue, em diversos artigos, uma batalha verbal em que procura desmascarar as ligações do académico suíço Tariq Ramadan à Irmandade Muçulmana [de cujo fundador, o egípcio Hassan al-Banna, é neto]. Para Caroline Fourest, a lógica da interdição legal serve os objectivos de radicalização do islão na Europa que, segundo ela, orienta a acção de homens como Tariq Ramadan, que foi aliás ouvido pela missão parlamentar sobre o niqab.
Caroline Fourest salienta que em países como a Holanda, o Reino Unido e a Bélgica se esperou "demasiado tempo" discutindo o véu islâmico "e os políticos tentam arranjar soluções simples, porque são mais simples de explicar a quem diz respeito".
"No entanto, não estamos aqui para nossa própria satisfação, mas para sermos eficazes. Não podemos renegar os nossos próprios princípios sob pretexto de combater o nosso adversário, respondendo à intolerância com intolerância", defende a socióloga e autora francesa.
Fourest, que defende a necessidade de um "consenso republicano" contra a interdição do véu, espera "que o legislador seja suficientemente inteligente para permitir que este combate continue a fazer-se ao nível das ideias e deixar o espaço necessário para lutar contra esta propaganda integrista".
"Não é por estarmos em combate que nos é interdito pensar", nota Caroline Fourest, conhecida do grande público francês pelos seus documentários televisivos e a sua coluna regular em Le Monde. "Lamento que uma mulher tenha a ideia infeliz de se cobrir totalmente, ou que um homem mande tapar a sua mulher como se faz a um carro ou a um sofá, para se apropriar [dela]", resume Fourest. "O facto de as mulheres usarem o véu com seu consentimento, ou dizendo que o deram, não retira nada à sua violência. Bem pelo contrário. O facto de aceitar e mesmo de defender o direito à humilhação ilustra bem a capacidade de interferência proselitista de uma tal mentalidade sectária".
Caroline Fourest sublinha, no entanto, que "uma lei simbólica contra o véu integral teria o inconveniente de ser particular e comportaria o risco de ser inaplicável. Porquê proibir o véu integral mas não o uso da máscara em período de gripe A? Pela dignidade das mulheres? Mas então, por que não proibir o véu simples? Não é também um atentado à dignidade das mulheres? E se vamos proibir o véu simples na rua, porque não interditar qualquer sinal tendencioso? Evitemos este círculo infernal e procuremos a eficácia". Para a directora da ProChoix, o equilíbrio entre os dois valores em causa - "dignidade das mulheres e segurança" - pode ser encontrado com "regras gerais que regulamentem a obrigação de se identificar".
6. A ficção
A interdição do véu integral "é um caminho exigente, mas um caminho justo", afirmou o Presidente Nicolas Sarkozy a propósito da votação do projecto de lei. O relatório da missão parlamentar sobre o niqab declarou "a recusa da República" ao uso do véu integral e preconizou a sua interdição em todo o espaço público, incluindo hospitais, transportes e serviços como correios, repartições e bancos.
Trata-se de uma proposta "clara, exacta e equilibrada", diz André Gérin. O deputado salienta que a proposta de lei "inclui uma dimensão pedagógica sobre as condições de vida em comum", nomeadamente o prazo de seis meses dado à infractora e o "estágio de cidadania". A proposta prevê também "medidas repressivas em particular contra os gurus que reduzem a sua mulher à escravidão".
O diploma cria um novo tipo de ofensa, o de "instigação à dissimulação do rosto por motivo de género", que corresponde ao acto de impor uma peça como o niqab pela "violência, a ameaça, o abuso de poder ou de autoridade".A votação na Assembleia Nacional foi precedida de uma outra polémica na imprensa, com a história de uma mulher interpelada pela polícia em Nantes, na costa atlântica, quando conduzia de niqab. As autoridades consideraram o véu integral "um traje impróprio". Tempos antes, uma outra polémica envolveu um presidente da câmara que proibiu a abertura de um estabelecimento de fast-food exclusivamente halal. Um dos folhetins do ano envolveu também outro "tópico" muçulmano recorrente em França, a poligamia, com várias acusações dirigidas pelo ministro do Interior, Brice Hortefeux, contra Liès Hebbadj, detido por "violações agravadas".
"É muito caricatural", comenta M"hammed Henniche sobre a imagem dos muçulmanos franceses. "Em França, o último emprego é sempre para o árabe, mesmo depois do africano. E todos os aspectos práticos do islão são um problema em França. A oração nas ruas é proibida mas quando queremos construir uma mesquita alguém monta um escândalo. Até o sacrifício ritual do carneiro é contestado por organizações que atacam as viaturas onde os animais são transportados para a cerimónia".
"A experiência no terreno mostra que a estigmatização afecta menos os marroquinos, os tunisinos ou os egípcios. O problema é com a Argélia. A França, sobretudo a geração mais velha, ainda não aceitou a descolonização e mantém um rancor que se vira contra os muçulmanos", acrescenta M"hammed Henniche.
Este líder muçulmano nota, porém, que o mês do Ramadão, iniciado este ano a 12 de Agosto, abriu "não diria uma trégua mas um tempo de respeito". Dois exemplos inéditos, para espanto de M"hammed Henniche: a RTL anuncia diariamente a hora de quebrar o jejum, "como qualquer rádio num país muçulmano", e a principal estação, a TF1, "que desde há muito é o centro das campanhas antimuçulmanas em França", passou pela primeira vez um anúncio publicitário a uma marca de carne halal. "Até Brice Hortefeux fez uma declaração conciliatória aos muçulmanos pelo Ramadão", nota Henniche em rodapé. É como se a sociedade francesa recebesse o seu islão com a mesma doçura sazonal e inesperada deste Agosto chuvoso, alívio possível a um jejum que em 2010 cai nos dias mais longos do ano - "são quase dezassete horas entre as cinco da manhã e as nove da noite, um tempo demasiado longo sem beber água se fizer muito calor..."
O mês do jejum contém laylatu"l-qadr, a "noite do destino", em que foi revelado o Corão, e é por isso "melhor do que mil meses", recorda Abdelwahab Meddeb. "O jejum instaura uma partilha entre o tempo santo e o tempo ordinário", resume o poeta tunisino.
Azzedin Gaci, responsável de um conselho de mesquitas conservadoras na região de Lyon, nota que este mês de partilha é este ano - 1431 da Hégira - vivido pelos muçulmanos de França "de uma forma especial". Como ele, milhares de muçulmanos abreviaram as férias no Magrebe para viver em França o mês de jejum. "Para mim, isto testemunha uma vontade muito forte de integração". O fim do Ramadão e o regresso da polémica sobre o niqab coloca de novo o islão francês perante o desafio essencial, diz Gaci: "É preciso abrir um debate franco sobre o que significa ser muçulmano hoje neste país".
"O problema essencial é o medo em França e na Europa de uma desnaturalização do islão, acompanhada por uma instrumentalização política. Quando se vive uma situação de fracasso, quando não se encontram soluções para o desemprego, para a precariedade, para a dureza de vida, para a crise geral, inventam-se manobras de diversão como o terrorismo, o fundamentalismo, o integrismo e a prática do culto muçulmano em geral", acusa Azzedin Gaci.
"Há uma gestão policial, colonial do islão e, enquanto durar este estado de coisas, não se resolverão as tensões. O que me incomoda é que não se fala do essencial, que são os problemas sociais da França, mais relevantes do que a História e a memória", diz também Gaci "enquanto francês responsável de culto muçulmano".Se o endurecimento galopante do discurso político francês, pela direita, nas últimas semanas, encontrar eco no parlamento, o projecto de interdição do niqab será aprovado em breve e poderá estar em vigência no próximo ano, dizem os analistas. A palavra soberana, porém, pertencerá aos juízes, de quem dependerá quase toda a eficácia e a aplicabilidade da interdição. Vários juristas "recordaram discretamente" à Assembleia Nacional que os deputados "não podem decidir o que lhes apetecer", porque há instâncias judiciais acima dos deputados e que o legislador "está sob vigilância". Um especialista de direito internacional público, Bertrand Mathieu, desmantelou até a legitimação "jurídica" da proibição legal do niqab, ao explicar que "são os poderes e serviços públicos que são submetidos à laicidade e não os indivíduos, o espaço público e o corpo social".
Denys de Béchillon desferiu um golpe jurisprudencial ainda mais drástico, ao afirmar que "a dignidade da pessoa humana não está escrita na Constituição. Foi (apenas) uma dedução do Conselho Constitucional, uma inferência do legislador constituinte de 1946" num contexto histórico marcado pelo Holocausto. Béchillon questionou mesmo a possibilidade legal de presumir que a mulher velada pelo niqab o faça por imposição de outrém e não de sua livre vontade. "Disso eu não sei nada. O cerne da democracia é viver na ficção do livre arbítrio das pessoas com quem lidamos", explicou o jurista, exemplificando com o caso mais óbvio do voto.
Enfim, por muito que doa à República, os doutores explicaram à Assembleia e a França que "fraternidade é uma exigência jurídica com a qual ninguém sabe o que fazer", mesmo que se admita uma citação do filósofo Lévinas, para ressalvar que "o rosto é o elemento da identidade".
"Mas isso é filosofia, não é direito".
quinta-feira, julho 15
http://jornal.publico.pt/noticia/11-07-2010/dois-livros-para-preservar--a-lingua-colorida-que-ca-temosporto-19781251.htm
Dois livros para preservar a língua colorida que cá temosPorto
Sabe o que é um morcão? Uma trolitada? Um calhau com dois olhos? Encher-se de moscas? Se respondeu negativamente, não é do Norte, carago. Mas nem tudo está perdido. Dois livros lançados recentemente podem ajudá-lo a sobreviver a qualquer eventual incursão na terra do cimbalino.
Por Jorge Marmelo (texto) e Paulo Pimenta (foto)
Alfredo Mendesa Se o Porto é uma naçom? É consoante. Mas, derivado de certas peculiaridades do português que aqui se fala, pelo menos dois livros, nos últimos meses, procuraram fazer um levantamento de algumas expressões e palavras características da cidade e da região ao seu redor. Heróis à Moda do Porto, o primeiro a surgir, atingiu os tops de vendas. E já este mês chegou às livrarias Porto, Naçom de Falares, do jornalista Alfredo Mendes. Não são propriamente exercícios de linguística ou de antropologia da língua, mas servem para demonstrar que o Porto tem um vocabulário que manda ventarolas e que continua a suscitar interesse.
Entre-se no Mercado do Bolhão num dia qualquer (a passada quinta-feira, por exemplo). Não será preciso andar por lá muito tempo para escutar duas clientes que, falando uma com a outra, se queixam de que um determinado comerciante é "muito trafulha". Mais adiante, até um marmanjo de quase 40 anos se vê transformado em "freguesinho". Mas basta, afinal, andar no moderníssimo metro para, à hora de almoço, ouvir o condutor avisar "o animal" (em Lisboa, chamam-lhe "emplastro") de que o segurança vai entrar para lhe acertar o passo - pô-lo na ordem, ou lá o que é.
O falar à moda do Porto, sem querer estar a armar ao pingarelho ou a arrotar postas de pescada, distingue-se basicamente por peculiaridades fonéticas (o famoso sotaque, que pode ser mais ou menos acentuado), pela utilização benévola do palavrão e pela invenção de palavras e expressões curiosas. Se o sotaque tripeiro tem sido objecto de inúmeras apropriações artísticas, do personagem José Esteves, de Herman José, aos mais recentes locutores do Telerural, passando pelas canções do Trabalhadores do Comércio, os dois livros recentemente lançados incidem sobretudo sobre as palavras e expressões próprias do vocabulário regional.
Património imaterial
"São palavras que vão desaparecendo e que são um património imaterial precioso, colorido", explica Alfredo Mendes, o autor de Porto, Naçom de Falares. A língua, diz, "está a ser normalizada e padronizada pelas televisões, por essa espécie de lisboetês que falam os locutores e os actores".
Há cerca de trinta anos, e sem nenhuma pretensão, Alfredo Mendes começou a coleccionar palavras e expressões que escutava nos locais onde se deslocava enquanto jornalista. "Tomava notas em papéis, nos guardanapos dos cafés", recorda. A obra foi, assim, crescendo por brincadeira e às mijinhas, para utilizar uma das 1735 expressões que Alfredo Mendes recolheu, e só passou a existir realmente quando o editor de um livro que dedicou ao café Piolho lhe perguntou se tinha mais alguma coisa que quisesse ou pudesse publicar. "Lembrei-me que tinha isto lá em casa", remata.
O livro inclui, para além do avantajado glossário, pequenas histórias ilustrativas do modo de falar da cidade e ainda um conjunto de notas biográficas sobre personagens curiosas e célebres, do Duque da Ribeira à Badalhoca das sandes de presunto, passando pelo boavisteiro Zé do Laço.
Bastante diferente foi o processo que levou à criação de Heróis à Moda do Porto, um livro que inclui um conjunto de contos clássicos (a Branca de Neve, por exemplo) contados ao jeito tripeiro. João Carlos Brito, editor e linguísta, encontrou num grupo de alunos de uma oficina de escrita criativa mão-de-obra ao preço da uva mijona e, para além do trabalho criativo, construiu um glossário com cerca de 450 expressões e palavras típicas daquilo a que ironicamente designam como o portoguês.
O livro já vendeu mais de dez mil exemplares e transformou-se num "fenómeno curiosíssimo", ao ponto de a editora Lugar da Palavra ter lançado também uma obra semelhante com sotaque alentejano. "É uma forma de, sem perder a qualidade académica, defender o património linguístico com algum humor, preservando a língua", considera João Carlos Brito.
Bué e tótil
Alfredo Mendes concorda: "Em vinte anos, há palavras e expressões de que já ninguém se lembra e que quase ninguém usa. Algumas são expressões que vieram do Português arcaico, do século XIV, ou que vieram do Douro e de Trás-os-Montes. Mas as pessoas convenceram-se de que é parolo falar assim".
João Carlos Brito recorda, a propósito, um teste que realizou com alunos do segundo ciclo com as palavras "tótil" e "bué", sinónimos populares e juvenis de "muito". "No Porto, há vinte anos, dizia-se tótil e em Lisboa, por causa da influência africana, bué. Hoje o tótil desapareceu e aqui no Porto diz-se bué tótil de vezes", graceja. "As distâncias, que antes ajudavam a preservar as especificidades, esbateram-se e hoje, com os chats na Internet, aquilo que se diz no Porto diz-se também, segundos depois, no resto do país", acrescenta para ilustrar a normalização que vai atingindo a língua.
As palavras, diz o povo, "leva-as o vento". "Mas a estas palavras isso já não acontecerá, ficam fixadas no livro", argumenta Alfredo Mendes. Não menos importante, a adesão do público a livros como Heróis à Moda do Porto demonstra que as pessoas ainda se interessam pelo assunto e gostam de reencontrar as suas origens também no que à língua diz respeito. "A capital caricaturiza tudo aquilo que é diferente e isso gera um complexo de inferioridade. Mas estes trabalhos ajudam a esbater esse preconceito. Se as palavras estão num livro, então talvez já não sejam parolas", reflecte o jornalista, convencido de que Porto, Naçom de Falares também se pode transformar num sucesso de vendas.
O fenómeno é também explicado por João Carlos Brito, segundo o qual existe no Porto, como talvez em mais lado nenhum, uma "identificação das pessoas com a sua cidade e a sua língua, um orgulho muito grande". "De forma indirecta, o livro promove um reencontro das pessoas com as suas raízes e é muito curioso que o epicentro das vendas dos Heróis à Moda do Porto tenha sido o Porto, enquanto o livro do Alentejo vende muito mais em Lisboa", revela.
Haverá, claro, quem não aprecie expressões como "gostar do bafo no cachaço", "via de serventia" ou "andar à mama", mas, a esses morcões, será melhor mandá-los encherem-se de moscas. Como o texto já vai grande à fartazana, trataremos agora de dar corda aos vitorinos e ir tratar de outra vida.
Dois livros para preservar a língua colorida que cá temosPorto
Sabe o que é um morcão? Uma trolitada? Um calhau com dois olhos? Encher-se de moscas? Se respondeu negativamente, não é do Norte, carago. Mas nem tudo está perdido. Dois livros lançados recentemente podem ajudá-lo a sobreviver a qualquer eventual incursão na terra do cimbalino.
Por Jorge Marmelo (texto) e Paulo Pimenta (foto)
Alfredo Mendesa Se o Porto é uma naçom? É consoante. Mas, derivado de certas peculiaridades do português que aqui se fala, pelo menos dois livros, nos últimos meses, procuraram fazer um levantamento de algumas expressões e palavras características da cidade e da região ao seu redor. Heróis à Moda do Porto, o primeiro a surgir, atingiu os tops de vendas. E já este mês chegou às livrarias Porto, Naçom de Falares, do jornalista Alfredo Mendes. Não são propriamente exercícios de linguística ou de antropologia da língua, mas servem para demonstrar que o Porto tem um vocabulário que manda ventarolas e que continua a suscitar interesse.
Entre-se no Mercado do Bolhão num dia qualquer (a passada quinta-feira, por exemplo). Não será preciso andar por lá muito tempo para escutar duas clientes que, falando uma com a outra, se queixam de que um determinado comerciante é "muito trafulha". Mais adiante, até um marmanjo de quase 40 anos se vê transformado em "freguesinho". Mas basta, afinal, andar no moderníssimo metro para, à hora de almoço, ouvir o condutor avisar "o animal" (em Lisboa, chamam-lhe "emplastro") de que o segurança vai entrar para lhe acertar o passo - pô-lo na ordem, ou lá o que é.
O falar à moda do Porto, sem querer estar a armar ao pingarelho ou a arrotar postas de pescada, distingue-se basicamente por peculiaridades fonéticas (o famoso sotaque, que pode ser mais ou menos acentuado), pela utilização benévola do palavrão e pela invenção de palavras e expressões curiosas. Se o sotaque tripeiro tem sido objecto de inúmeras apropriações artísticas, do personagem José Esteves, de Herman José, aos mais recentes locutores do Telerural, passando pelas canções do Trabalhadores do Comércio, os dois livros recentemente lançados incidem sobretudo sobre as palavras e expressões próprias do vocabulário regional.
Património imaterial
"São palavras que vão desaparecendo e que são um património imaterial precioso, colorido", explica Alfredo Mendes, o autor de Porto, Naçom de Falares. A língua, diz, "está a ser normalizada e padronizada pelas televisões, por essa espécie de lisboetês que falam os locutores e os actores".
Há cerca de trinta anos, e sem nenhuma pretensão, Alfredo Mendes começou a coleccionar palavras e expressões que escutava nos locais onde se deslocava enquanto jornalista. "Tomava notas em papéis, nos guardanapos dos cafés", recorda. A obra foi, assim, crescendo por brincadeira e às mijinhas, para utilizar uma das 1735 expressões que Alfredo Mendes recolheu, e só passou a existir realmente quando o editor de um livro que dedicou ao café Piolho lhe perguntou se tinha mais alguma coisa que quisesse ou pudesse publicar. "Lembrei-me que tinha isto lá em casa", remata.
O livro inclui, para além do avantajado glossário, pequenas histórias ilustrativas do modo de falar da cidade e ainda um conjunto de notas biográficas sobre personagens curiosas e célebres, do Duque da Ribeira à Badalhoca das sandes de presunto, passando pelo boavisteiro Zé do Laço.
Bastante diferente foi o processo que levou à criação de Heróis à Moda do Porto, um livro que inclui um conjunto de contos clássicos (a Branca de Neve, por exemplo) contados ao jeito tripeiro. João Carlos Brito, editor e linguísta, encontrou num grupo de alunos de uma oficina de escrita criativa mão-de-obra ao preço da uva mijona e, para além do trabalho criativo, construiu um glossário com cerca de 450 expressões e palavras típicas daquilo a que ironicamente designam como o portoguês.
O livro já vendeu mais de dez mil exemplares e transformou-se num "fenómeno curiosíssimo", ao ponto de a editora Lugar da Palavra ter lançado também uma obra semelhante com sotaque alentejano. "É uma forma de, sem perder a qualidade académica, defender o património linguístico com algum humor, preservando a língua", considera João Carlos Brito.
Bué e tótil
Alfredo Mendes concorda: "Em vinte anos, há palavras e expressões de que já ninguém se lembra e que quase ninguém usa. Algumas são expressões que vieram do Português arcaico, do século XIV, ou que vieram do Douro e de Trás-os-Montes. Mas as pessoas convenceram-se de que é parolo falar assim".
João Carlos Brito recorda, a propósito, um teste que realizou com alunos do segundo ciclo com as palavras "tótil" e "bué", sinónimos populares e juvenis de "muito". "No Porto, há vinte anos, dizia-se tótil e em Lisboa, por causa da influência africana, bué. Hoje o tótil desapareceu e aqui no Porto diz-se bué tótil de vezes", graceja. "As distâncias, que antes ajudavam a preservar as especificidades, esbateram-se e hoje, com os chats na Internet, aquilo que se diz no Porto diz-se também, segundos depois, no resto do país", acrescenta para ilustrar a normalização que vai atingindo a língua.
As palavras, diz o povo, "leva-as o vento". "Mas a estas palavras isso já não acontecerá, ficam fixadas no livro", argumenta Alfredo Mendes. Não menos importante, a adesão do público a livros como Heróis à Moda do Porto demonstra que as pessoas ainda se interessam pelo assunto e gostam de reencontrar as suas origens também no que à língua diz respeito. "A capital caricaturiza tudo aquilo que é diferente e isso gera um complexo de inferioridade. Mas estes trabalhos ajudam a esbater esse preconceito. Se as palavras estão num livro, então talvez já não sejam parolas", reflecte o jornalista, convencido de que Porto, Naçom de Falares também se pode transformar num sucesso de vendas.
O fenómeno é também explicado por João Carlos Brito, segundo o qual existe no Porto, como talvez em mais lado nenhum, uma "identificação das pessoas com a sua cidade e a sua língua, um orgulho muito grande". "De forma indirecta, o livro promove um reencontro das pessoas com as suas raízes e é muito curioso que o epicentro das vendas dos Heróis à Moda do Porto tenha sido o Porto, enquanto o livro do Alentejo vende muito mais em Lisboa", revela.
Haverá, claro, quem não aprecie expressões como "gostar do bafo no cachaço", "via de serventia" ou "andar à mama", mas, a esses morcões, será melhor mandá-los encherem-se de moscas. Como o texto já vai grande à fartazana, trataremos agora de dar corda aos vitorinos e ir tratar de outra vida.
domingo, junho 13
http://www.lemonde.fr/idees/article/2010/05/17/la-longue-crise-de-l-europe-par-michel-aglietta_1352823_3232.html
La longue crise de l'Europe, par Michel Aglietta
LEMONDE | 17.05.10 | 16h41 • Mis à jour le 17.05.10 | 18h44
Michel Aglietta
Il y a une seule crise du capitalisme financiarisé et drogué à la dette, qui a débuté en août 2007 et qui a connu un premier paroxysme à l'automne 2008. Nous sommes entrés dans le deuxième acte de cette crise. Dans leur ouvrage sur les crises financières dans l'histoire, Carmen Reinhardt et Kenneth Rogoff montrent que les crises bancaires internationales rebondissent presque toujours en crises de dettes souveraines.
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Les lieux où elles rebondissent sont les maillons faibles de l'économie mondiale. Ce fut l'Amérique latine dans les années 1980, c'est la zone euro aujourd'hui. Car cette crise interfère avec une déficience congénitale de la zone euro depuis sa création. Cela ne devrait pas surprendre puisqu'il s'agit d'une union monétaire incomplète, donc fragile.
C'est, en effet, l'un des résultats les mieux établis de la macroéconomie internationale qu'une union monétaire ne peut fonctionner sans mécanisme de coordination budgétaire. L'Allemagne a imposé de passer outre et de remplacer la nécessaire solidarité par une règle uniforme de restriction budgétaire, le fameux pacte de stabilité, qui est arbitraire et insensible au contexte économique. Que cette règle ait volé en éclats devant le sauvetage des banques qui a transféré la crise aux Etats est le moins que l'on pouvait attendre.
La zone euro prétend se gouverner par des règles en dehors de la gestion de la monnaie, l'Eurogroupe n'étant qu'un fantôme de coordination intergouvernementale. On a vu avec la Grèce que la règle budgétaire ne prévenait pas la tricherie. C'est donc là que la crise a frappé. Le 20 octobre 2009, le nouveau ministre des finances grec a annoncé que le déficit public n'allait pas être de 5 % du produit intérieur brut (PIB), mais de 12,5 % (révisé ensuite à 13,6 %).
A partir de cette date et jusqu'au début de mai, les dirigeants politiques de la zone euro, surtout les dirigeants allemands, nous ont offert un ahurissant spectacle d'annonces et de contre-annonces, d'incantations et de propos contradictoires, montrant au monde entier et surtout à la communauté financière internationale à quel point l'Europe n'était pas gouvernée. Comment s'étonner que ce spectacle ait donné l'occasion aux banques d'affaires et aux hedge funds anglo-saxons de spéculer sur un scénario de faillite grecque non gérée et de désagrégation de la zone euro ?
Comment s'étonner que cette spéculation répétée depuis janvier ait fini par faire s'effondrer la confiance de l'ensemble des investisseurs ? A travers la Grèce, c'est l'incohérence de la zone euro qui est visée. C'est bien pourquoi l'euro a été attaqué. L'ironie est que cette glissade est jusqu'ici une excellente nouvelle !
Une erreur cardinale a été faite, que le plan de financement de 110 milliards d'euros sur trois ans alloués à la Grèce ne saurait dissiper. La même erreur que celle commise en 1982 par le club des créanciers souverains du Mexique a été répétée. On nie qu'il y ait un problème de solvabilité et on feint de croire qu'il n'y a qu'un problème transitoire de liquidité. Cette erreur à l'époque a coûté la décennie perdue à l'ensemble de l'Amérique latine.
Les pays ont été épuisés par les plans d'austérité stériles imposés par le Fonds monétaire international (FMI) pour préserver les banques créancières. Ce n'est qu'à la fin de la décennie avec l'initiative Brady que les dettes ont été restructurées, que les banques ont pu se débarrasser de leurs créances avec décotes et que les économies ont pu retrouver le chemin de la croissance.
Imposer à la Grèce une austérité écrasante en feignant qu'elle va s'en sortir toute seule dans un contexte de récession interne, de spirale déflationniste probable et de croissance européenne au mieux très faible, c'est installer une bombe à retardement qui peut coûter très cher à toute l'Europe.
Le manque de courage politique et surtout l'enfermement de l'Allemagne dans son splendide égoïsme ont conduit à clamer pendant des mois : "pas de défaut, pas de sauvetage, pas de sortie de l'Union économique et monétaire". Or la réponse politique la plus prudente, donc la plus raisonnable au sein d'une crise globale, mais aussi la plus juste, était de reconnaître la nécessité d'une restructuration de la dette grecque et d'organiser un plan dès le dernier trimestre 2009. Car un plan de restructuration permet de diminuer le coût d'un défaut s'il se produit.
Une étude de la Banque d'Angleterre a montré qu'un pays qui fait défaut sans accord avec ses créanciers subit des pertes de production trois plus élevées qu'un pays dont la dette a été restructurée.
Une large conférence avec la participation des créanciers privés aurait dû définir les principes d'une restructuration. Ce plan aurait été moins coûteux à l'époque. Dans le cadre d'un rééchelonnement de la dette, les banques auraient dû pouvoir vendre avec décote des créances sur la Grèce, transformées en titres garantis par un fonds européen et achetées par tous les investisseurs du monde.
Cette opportunité n'ayant pas été considérée, la zone euro s'est trouvée devant le défi plus difficile d'avoir à prouver sa crédibilité. La contagion s'est enclenchée à l'encontre des titres de la dette publique des pays les plus fragiles (Portugal, Espagne) ou déjà les plus endettés (Italie) de la zone euro avec la complicité active des agences de notation, soucieuses de ne pas répéter leur performance désastreuse dans la crise des subprimes.
Dans le climat de fuite des investisseurs vers la qualité, c'est-à-dire vers les Bunds allemands et les bons du Trésor américain, le déni des ministres de finances des pays concernés par les attaques spéculatives a été pathétique.
Il a fallu que les gouvernements de la zone euro soient acculés par le déchaînement de la contagion dans tous les marchés de capitaux du monde, que les dirigeants américains et le FMI les rappellent à leurs responsabilités, pour qu'ils réagissent avec l'ampleur requise pour faire face à la crise systémique.
Le déploiement de moyens d'intervention d'urgence (60 milliards d'euros) et de garanties gouvernementales associées (440 milliards d'euros) pour permettre à une nouvelle agence financière de lever des fonds sur les marchés en vue d'acheter de la dette publique de pays fragiles, est une force de frappe considérable. Elle est complétée par un soutien immédiatement opérationnel du FMI de 250 milliards d'euros et par le revirement de la Banque centrale européenne qui accepte dorénavant d'acheter des titres publics sur le marché secondaire.
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C'est une initiative excellente qui ne remet pas en cause son indépendance, qui accompagne les politiques de consolidation budgétaire en réduisant les taux obligataires et qui n'a aucune incidence inflationniste dans une conjoncture dominée par des forces déflationnistes, d'autant que ces interventions peuvent être stérilisées si nécessaire.
Mais il faut aller au-delà et situer l'immédiateté des turbulences financières et la réponse des autorités monétaires dans la longue crise de l'Europe. Car cette réponse ne concerne pour l'heure que la préservation de la liquidité des marchés en assurant que les échéances de paiements des Etats débiteurs seront honorées.
Il ne s'agit encore une fois que de préserver les banques qui ont mis les finances publiques dans la situation désastreuse que l'on déplore ! Gérer dans la durée la solvabilité des dettes publiques et privées et retrouver les chemins de la croissance sont des défis qui posent des problèmes d'institutions et de finalités politiques autrement plus redoutables.
Les pays de la zone euro se trouvent devant une contradiction insoluble s'ils ne modifient pas leur approche de la politique économique. Dans leur recherche historique Carmen Reinhardt et Kenneth Rogoff ont trouvé qu'un seuil critique existe aux environs d'une dette publique qui atteint 90 % du PIB. Au-delà de ce seuil, la croissance tendancielle ultérieure est la moitié de ce qu'elle était avant la crise qui a fait augmenter la dette. Une majorité de pays de la zone euro aura atteint ou dépassé ce seuil dès la fin 2011.
Mais certains pays de l'espace d'influence germanique, les Pays-Bas, l'Autriche et au premier chef l'Allemagne, seront en dessous de ce seuil. La prise en compte de l'intérêt collectif de la zone euro, comme étant la mieux à même de satisfaire son propre intérêt, voudrait que le groupe des pays dont la dette publique n'est pas critique mène des politiques de soutien de la demande.
Il s'agit en effet d'aider le groupe des pays condamnés à la consolidation budgétaire à atteindre une croissance suffisante d'au moins 2 % pour espérer inverser la détérioration de leurs finances et donc pour éviter que ces pays n'entraînent toute la zone euro vers le bas.
En tout état de cause, la zone euro ne peut survivre sans un mécanisme de transferts budgétaires entre pays. Dans cet esprit l'instauration d'un Fonds européen pour multilatéraliser la solidarité serait une innovation utile.
D'après ce que l'on entend des intentions des gouvernements, ce n'est pas ce qui va se passer. Le piège suicidaire est de vouloir ramener les déficits publics en dessous de 3 % du PIB et de rapprocher les dettes publiques du niveau mythique de 60 % du PIB en l'espace de trois à cinq ans. L'exemple des Etats-Unis après la seconde guerre mondiale est que l'on peut faire reculer des niveaux de dette très élevés.
Mais il faut dix à quinze ans, l'aide de la Banque centrale et une croissance soutenue. Au contraire, ce que signifie la révision du pacte de stabilité, c'est la compression généralisée des dépenses publiques menant à la déflation compétitive.
C'est l'extension à toute la zone euro de la politique que l'Allemagne a suivie depuis les réformes Schröder du début des années 2000.
Cette politique lui a permis de soutenir son économie par l'excédent extérieur réalisé sur le dos de ses partenaires européens (75 % des excédents de 2008 étaient sur l'Europe, selon la Bundesbank), en profitant de l'orgie d'endettement privé dans les pays qui ont encouragé la spéculation immobilière par tous les moyens. Mais justement cet endettement privé est énorme.
A la fin 2007, la dette privée atteignait 335 % du PIB au Royaume-Uni et 317 % en Espagne, contre 200 % en Allemagne et 196 % en France. Les efforts pour la réduire conduisent aux surcapacités de production et à la baisse des investissements des entreprises, à la montée du chômage, à la stagnation ou à la baisse des salaires et à l'augmentation de l'épargne des ménages.
Il s'ensuit que le secteur privé n'est pas en mesure de compenser l'austérité budgétaire dans les pays où celle-ci va être draconienne, c'est-à-dire le Portugal, l'Espagne, l'Irlande et l'Italie. Aussi la zone euro est-elle menacée de tomber dans le même piège que le bloc or dans les années 1932-1936 après la dévaluation de la livre sterling en septembre 1931 : le cercle vicieux de la déflation, de la récession et de l'augmentation de la valeur réelle des dettes. Ce phénomène est d'autant plus inquiétant que la croissance tendancielle des trois plus grands pays de la zone euro décélère depuis plus de quarante ans, l'Italie étant même parvenue à la stagnation.
Si aucune composante de la demande interne ne soutient la croissance, la politique de consolidation des finances publiques est vouée à l'échec, sauf si la demande externe est capable de prendre le relais. En effet, les exemples des pays scandinaves après la crise financière de 1991 et du Royaume-Uni après la sortie de la livre sterling du système monétaire européen (SME) en septembre 1992 montrent que le rétablissement de ces économies et la réduction subséquente des dettes publiques sont venus de la dévaluation profonde des monnaies de ces pays.
Il faudrait donc une dépréciation considérable de l'euro, disons autour de 1,20 dollar pour 1 euro, puis maintien du change dans une zone compétitive (1,2 à 1,3) en sus d'une appréciation des monnaies asiatiques contre le dollar, de manière à créer un choc positif de demande vigoureux et prolongé pour lancer ensuite une croissance auto-entretenue.
Cependant, ce ne sont que les conditions initiales du retour de la croissance. Contrairement au postulat en vigueur dans les institutions européennes, qui a conduit au fiasco total de la fameuse stratégie de Lisbonne annoncée en 2000, l'efficacité des politiques structurelles de long terme n'est pas indépendante du dynamisme de la gestion macroéconomique.
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De plus, les deux types de politiques ne peuvent pas être laissés séparément à la discrétion de chaque gouvernement dans une union monétaire.
Si l'on veut éviter que la divergence des pays ne conduise à la désintégration, il faut une profonde restructuration des budgets qui soit compatible dans l'ensemble des pays membres.
Le projet mobilisateur ne peut être qu'une coopération étroite dans la mise en commun de ressources humaines et technologiques pour se placer à la frontière d'une vague d'innovations portées par les économies d'énergie, la substitution vers les énergies renouvelables, la protection de l'environnement et la baisse des coûts de la santé. Il faut aussi en faire bénéficier au maximum les pays émergents qui vont devenir les fers de lance de la croissance mondiale.
Cela implique de sortir de la logique budgétaire comptable et de restructurer à la fois les recettes et les dépenses. Inutile d'insister sur la nécessité d'élargir la base fiscale et d'annuler tous les allégements dont le seul objectif a été clientéliste. Il faut aussi créer des incitations à la réorientation de l'investissement. L'outil principal est une taxe carbone croissante dans l'ensemble de l'Europe, dont le produit doit être consacré en partie à l'investissement en recherche et développement et en partie à abaisser le coût du travail.
Elle doit être complétée par des subventions et des réglementations pour inciter aux rénovations urbaines. La refonte du budget européen et l'augmentation de ses ressources dans le sens de la promotion d'une croissance verte donneraient une impulsion majeure.
Enfin, l'expérience scandinave le montre clairement, il faut une priorité absolue pour l'investissement public en direction de l'éducation sur toute la vie et de la recherche. Les gouvernements européens sont-ils capables de cet aggiornamento ? Rien malheureusement ne le laisse prévoir.
Michel Aglietta est économiste.
Ancien élève de l'Ecole polytechnique et de l'Ecole nationale de la statistique et de l'administration économique, est professeur de sciences économiques à l'université Paris-X (Nanterre-La Défense), membre de l'Institut universitaire de France et conseiller au Centre d'études prospectives et d'informations internationales (EPII). Spécialiste d'économie monétaire internationale, il est connu en particulier pour ses travaux sur le fonctionnement des marchés financiers. Il est notamment l'auteur de "La Monnaie, entre violence et confiance", avec André Orléan (Odile Jacob, 2002), et de "Crise et rénovation de la finance", avec Sandra Rigot (Odile Jacob, 2009).
La longue crise de l'Europe, par Michel Aglietta
LEMONDE | 17.05.10 | 16h41 • Mis à jour le 17.05.10 | 18h44
Michel Aglietta
Il y a une seule crise du capitalisme financiarisé et drogué à la dette, qui a débuté en août 2007 et qui a connu un premier paroxysme à l'automne 2008. Nous sommes entrés dans le deuxième acte de cette crise. Dans leur ouvrage sur les crises financières dans l'histoire, Carmen Reinhardt et Kenneth Rogoff montrent que les crises bancaires internationales rebondissent presque toujours en crises de dettes souveraines.
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Les lieux où elles rebondissent sont les maillons faibles de l'économie mondiale. Ce fut l'Amérique latine dans les années 1980, c'est la zone euro aujourd'hui. Car cette crise interfère avec une déficience congénitale de la zone euro depuis sa création. Cela ne devrait pas surprendre puisqu'il s'agit d'une union monétaire incomplète, donc fragile.
C'est, en effet, l'un des résultats les mieux établis de la macroéconomie internationale qu'une union monétaire ne peut fonctionner sans mécanisme de coordination budgétaire. L'Allemagne a imposé de passer outre et de remplacer la nécessaire solidarité par une règle uniforme de restriction budgétaire, le fameux pacte de stabilité, qui est arbitraire et insensible au contexte économique. Que cette règle ait volé en éclats devant le sauvetage des banques qui a transféré la crise aux Etats est le moins que l'on pouvait attendre.
La zone euro prétend se gouverner par des règles en dehors de la gestion de la monnaie, l'Eurogroupe n'étant qu'un fantôme de coordination intergouvernementale. On a vu avec la Grèce que la règle budgétaire ne prévenait pas la tricherie. C'est donc là que la crise a frappé. Le 20 octobre 2009, le nouveau ministre des finances grec a annoncé que le déficit public n'allait pas être de 5 % du produit intérieur brut (PIB), mais de 12,5 % (révisé ensuite à 13,6 %).
A partir de cette date et jusqu'au début de mai, les dirigeants politiques de la zone euro, surtout les dirigeants allemands, nous ont offert un ahurissant spectacle d'annonces et de contre-annonces, d'incantations et de propos contradictoires, montrant au monde entier et surtout à la communauté financière internationale à quel point l'Europe n'était pas gouvernée. Comment s'étonner que ce spectacle ait donné l'occasion aux banques d'affaires et aux hedge funds anglo-saxons de spéculer sur un scénario de faillite grecque non gérée et de désagrégation de la zone euro ?
Comment s'étonner que cette spéculation répétée depuis janvier ait fini par faire s'effondrer la confiance de l'ensemble des investisseurs ? A travers la Grèce, c'est l'incohérence de la zone euro qui est visée. C'est bien pourquoi l'euro a été attaqué. L'ironie est que cette glissade est jusqu'ici une excellente nouvelle !
Une erreur cardinale a été faite, que le plan de financement de 110 milliards d'euros sur trois ans alloués à la Grèce ne saurait dissiper. La même erreur que celle commise en 1982 par le club des créanciers souverains du Mexique a été répétée. On nie qu'il y ait un problème de solvabilité et on feint de croire qu'il n'y a qu'un problème transitoire de liquidité. Cette erreur à l'époque a coûté la décennie perdue à l'ensemble de l'Amérique latine.
Les pays ont été épuisés par les plans d'austérité stériles imposés par le Fonds monétaire international (FMI) pour préserver les banques créancières. Ce n'est qu'à la fin de la décennie avec l'initiative Brady que les dettes ont été restructurées, que les banques ont pu se débarrasser de leurs créances avec décotes et que les économies ont pu retrouver le chemin de la croissance.
Imposer à la Grèce une austérité écrasante en feignant qu'elle va s'en sortir toute seule dans un contexte de récession interne, de spirale déflationniste probable et de croissance européenne au mieux très faible, c'est installer une bombe à retardement qui peut coûter très cher à toute l'Europe.
Le manque de courage politique et surtout l'enfermement de l'Allemagne dans son splendide égoïsme ont conduit à clamer pendant des mois : "pas de défaut, pas de sauvetage, pas de sortie de l'Union économique et monétaire". Or la réponse politique la plus prudente, donc la plus raisonnable au sein d'une crise globale, mais aussi la plus juste, était de reconnaître la nécessité d'une restructuration de la dette grecque et d'organiser un plan dès le dernier trimestre 2009. Car un plan de restructuration permet de diminuer le coût d'un défaut s'il se produit.
Une étude de la Banque d'Angleterre a montré qu'un pays qui fait défaut sans accord avec ses créanciers subit des pertes de production trois plus élevées qu'un pays dont la dette a été restructurée.
Une large conférence avec la participation des créanciers privés aurait dû définir les principes d'une restructuration. Ce plan aurait été moins coûteux à l'époque. Dans le cadre d'un rééchelonnement de la dette, les banques auraient dû pouvoir vendre avec décote des créances sur la Grèce, transformées en titres garantis par un fonds européen et achetées par tous les investisseurs du monde.
Cette opportunité n'ayant pas été considérée, la zone euro s'est trouvée devant le défi plus difficile d'avoir à prouver sa crédibilité. La contagion s'est enclenchée à l'encontre des titres de la dette publique des pays les plus fragiles (Portugal, Espagne) ou déjà les plus endettés (Italie) de la zone euro avec la complicité active des agences de notation, soucieuses de ne pas répéter leur performance désastreuse dans la crise des subprimes.
Dans le climat de fuite des investisseurs vers la qualité, c'est-à-dire vers les Bunds allemands et les bons du Trésor américain, le déni des ministres de finances des pays concernés par les attaques spéculatives a été pathétique.
Il a fallu que les gouvernements de la zone euro soient acculés par le déchaînement de la contagion dans tous les marchés de capitaux du monde, que les dirigeants américains et le FMI les rappellent à leurs responsabilités, pour qu'ils réagissent avec l'ampleur requise pour faire face à la crise systémique.
Le déploiement de moyens d'intervention d'urgence (60 milliards d'euros) et de garanties gouvernementales associées (440 milliards d'euros) pour permettre à une nouvelle agence financière de lever des fonds sur les marchés en vue d'acheter de la dette publique de pays fragiles, est une force de frappe considérable. Elle est complétée par un soutien immédiatement opérationnel du FMI de 250 milliards d'euros et par le revirement de la Banque centrale européenne qui accepte dorénavant d'acheter des titres publics sur le marché secondaire.
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C'est une initiative excellente qui ne remet pas en cause son indépendance, qui accompagne les politiques de consolidation budgétaire en réduisant les taux obligataires et qui n'a aucune incidence inflationniste dans une conjoncture dominée par des forces déflationnistes, d'autant que ces interventions peuvent être stérilisées si nécessaire.
Mais il faut aller au-delà et situer l'immédiateté des turbulences financières et la réponse des autorités monétaires dans la longue crise de l'Europe. Car cette réponse ne concerne pour l'heure que la préservation de la liquidité des marchés en assurant que les échéances de paiements des Etats débiteurs seront honorées.
Il ne s'agit encore une fois que de préserver les banques qui ont mis les finances publiques dans la situation désastreuse que l'on déplore ! Gérer dans la durée la solvabilité des dettes publiques et privées et retrouver les chemins de la croissance sont des défis qui posent des problèmes d'institutions et de finalités politiques autrement plus redoutables.
Les pays de la zone euro se trouvent devant une contradiction insoluble s'ils ne modifient pas leur approche de la politique économique. Dans leur recherche historique Carmen Reinhardt et Kenneth Rogoff ont trouvé qu'un seuil critique existe aux environs d'une dette publique qui atteint 90 % du PIB. Au-delà de ce seuil, la croissance tendancielle ultérieure est la moitié de ce qu'elle était avant la crise qui a fait augmenter la dette. Une majorité de pays de la zone euro aura atteint ou dépassé ce seuil dès la fin 2011.
Mais certains pays de l'espace d'influence germanique, les Pays-Bas, l'Autriche et au premier chef l'Allemagne, seront en dessous de ce seuil. La prise en compte de l'intérêt collectif de la zone euro, comme étant la mieux à même de satisfaire son propre intérêt, voudrait que le groupe des pays dont la dette publique n'est pas critique mène des politiques de soutien de la demande.
Il s'agit en effet d'aider le groupe des pays condamnés à la consolidation budgétaire à atteindre une croissance suffisante d'au moins 2 % pour espérer inverser la détérioration de leurs finances et donc pour éviter que ces pays n'entraînent toute la zone euro vers le bas.
En tout état de cause, la zone euro ne peut survivre sans un mécanisme de transferts budgétaires entre pays. Dans cet esprit l'instauration d'un Fonds européen pour multilatéraliser la solidarité serait une innovation utile.
D'après ce que l'on entend des intentions des gouvernements, ce n'est pas ce qui va se passer. Le piège suicidaire est de vouloir ramener les déficits publics en dessous de 3 % du PIB et de rapprocher les dettes publiques du niveau mythique de 60 % du PIB en l'espace de trois à cinq ans. L'exemple des Etats-Unis après la seconde guerre mondiale est que l'on peut faire reculer des niveaux de dette très élevés.
Mais il faut dix à quinze ans, l'aide de la Banque centrale et une croissance soutenue. Au contraire, ce que signifie la révision du pacte de stabilité, c'est la compression généralisée des dépenses publiques menant à la déflation compétitive.
C'est l'extension à toute la zone euro de la politique que l'Allemagne a suivie depuis les réformes Schröder du début des années 2000.
Cette politique lui a permis de soutenir son économie par l'excédent extérieur réalisé sur le dos de ses partenaires européens (75 % des excédents de 2008 étaient sur l'Europe, selon la Bundesbank), en profitant de l'orgie d'endettement privé dans les pays qui ont encouragé la spéculation immobilière par tous les moyens. Mais justement cet endettement privé est énorme.
A la fin 2007, la dette privée atteignait 335 % du PIB au Royaume-Uni et 317 % en Espagne, contre 200 % en Allemagne et 196 % en France. Les efforts pour la réduire conduisent aux surcapacités de production et à la baisse des investissements des entreprises, à la montée du chômage, à la stagnation ou à la baisse des salaires et à l'augmentation de l'épargne des ménages.
Il s'ensuit que le secteur privé n'est pas en mesure de compenser l'austérité budgétaire dans les pays où celle-ci va être draconienne, c'est-à-dire le Portugal, l'Espagne, l'Irlande et l'Italie. Aussi la zone euro est-elle menacée de tomber dans le même piège que le bloc or dans les années 1932-1936 après la dévaluation de la livre sterling en septembre 1931 : le cercle vicieux de la déflation, de la récession et de l'augmentation de la valeur réelle des dettes. Ce phénomène est d'autant plus inquiétant que la croissance tendancielle des trois plus grands pays de la zone euro décélère depuis plus de quarante ans, l'Italie étant même parvenue à la stagnation.
Si aucune composante de la demande interne ne soutient la croissance, la politique de consolidation des finances publiques est vouée à l'échec, sauf si la demande externe est capable de prendre le relais. En effet, les exemples des pays scandinaves après la crise financière de 1991 et du Royaume-Uni après la sortie de la livre sterling du système monétaire européen (SME) en septembre 1992 montrent que le rétablissement de ces économies et la réduction subséquente des dettes publiques sont venus de la dévaluation profonde des monnaies de ces pays.
Il faudrait donc une dépréciation considérable de l'euro, disons autour de 1,20 dollar pour 1 euro, puis maintien du change dans une zone compétitive (1,2 à 1,3) en sus d'une appréciation des monnaies asiatiques contre le dollar, de manière à créer un choc positif de demande vigoureux et prolongé pour lancer ensuite une croissance auto-entretenue.
Cependant, ce ne sont que les conditions initiales du retour de la croissance. Contrairement au postulat en vigueur dans les institutions européennes, qui a conduit au fiasco total de la fameuse stratégie de Lisbonne annoncée en 2000, l'efficacité des politiques structurelles de long terme n'est pas indépendante du dynamisme de la gestion macroéconomique.
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De plus, les deux types de politiques ne peuvent pas être laissés séparément à la discrétion de chaque gouvernement dans une union monétaire.
Si l'on veut éviter que la divergence des pays ne conduise à la désintégration, il faut une profonde restructuration des budgets qui soit compatible dans l'ensemble des pays membres.
Le projet mobilisateur ne peut être qu'une coopération étroite dans la mise en commun de ressources humaines et technologiques pour se placer à la frontière d'une vague d'innovations portées par les économies d'énergie, la substitution vers les énergies renouvelables, la protection de l'environnement et la baisse des coûts de la santé. Il faut aussi en faire bénéficier au maximum les pays émergents qui vont devenir les fers de lance de la croissance mondiale.
Cela implique de sortir de la logique budgétaire comptable et de restructurer à la fois les recettes et les dépenses. Inutile d'insister sur la nécessité d'élargir la base fiscale et d'annuler tous les allégements dont le seul objectif a été clientéliste. Il faut aussi créer des incitations à la réorientation de l'investissement. L'outil principal est une taxe carbone croissante dans l'ensemble de l'Europe, dont le produit doit être consacré en partie à l'investissement en recherche et développement et en partie à abaisser le coût du travail.
Elle doit être complétée par des subventions et des réglementations pour inciter aux rénovations urbaines. La refonte du budget européen et l'augmentation de ses ressources dans le sens de la promotion d'une croissance verte donneraient une impulsion majeure.
Enfin, l'expérience scandinave le montre clairement, il faut une priorité absolue pour l'investissement public en direction de l'éducation sur toute la vie et de la recherche. Les gouvernements européens sont-ils capables de cet aggiornamento ? Rien malheureusement ne le laisse prévoir.
Michel Aglietta est économiste.
Ancien élève de l'Ecole polytechnique et de l'Ecole nationale de la statistique et de l'administration économique, est professeur de sciences économiques à l'université Paris-X (Nanterre-La Défense), membre de l'Institut universitaire de France et conseiller au Centre d'études prospectives et d'informations internationales (EPII). Spécialiste d'économie monétaire internationale, il est connu en particulier pour ses travaux sur le fonctionnement des marchés financiers. Il est notamment l'auteur de "La Monnaie, entre violence et confiance", avec André Orléan (Odile Jacob, 2002), et de "Crise et rénovation de la finance", avec Sandra Rigot (Odile Jacob, 2009).
sábado, janeiro 2
http://www.ionline.pt/conteudo/40011-fernando-rosas-a-republica-falhou-no-essencial-democratizar-o-pais---video
Fernando Rosas: "A República falhou no essencial: democratizar o país"
por Ana Sá Lopes, Publicado em 02 de Janeiro de 2010
Fernando Rosas lembra a grande repressão da República sobre os sindicatos, muito maior do que a feita contra os católicos
O historiador Fernando Rosas explica a importância da Carbonária na implantação da República
O centenário da República vai marcar todo o ano de 2010. O historiador Fernando Rosas aceitou falar ao i sobre essa revolução "tão lusitana" em que o principal chefe militar, almirante Cândido dos Reis, se suicida porque julga a revolução perdida, e um despenseiro da Marinha e grande carbonário, Machado Santos, vai de eléctrico para a revolução e leva a República à vitória. Fernando Rosas defende que a República falhou a sua principal missão, a de democratizar o país.
Cem anos depois, já se pode falar da República sem tabus?
Há certos temas históricos que vão sempre dividir as águas entre os portugueses. Na história não tem de haver consenso. Há sempre certas visões historiográficas que representarão o Marquês de Pombal, a República ou o Estado Novo de certa maneira e outras doutra. Haver separação de águas acerca do balanço que se faz das personagens históricas é uma coisa perfeitamente normal.
O Presidente da República disse que não queria que o centenário servisse para dividir os portugueses. Isso é possível?
Com o devido respeito, acho que o Presidente da República conhece mal a história da República e limita-se a reproduzir lugares-comuns das correntes que têm visões mais conservadoras da República. Vai haver sempre, até que a memória da República se perca, pessoas detractoras da República, pessoas defensoras da República, memórias favoráveis e memórias desfavoráveis. O Presidente da República com certeza que não deseja que acerca de um acontecimento qualquer relevante da História haja uma única interpretação, como havia durante o Estado Novo. É absolutamente salutar que haja uma grande polémica sobre o significado histórico da República. Não é por isso que se diminui a República, antes pelo contrário.
Mas vamos conseguir comemorar a Carbonária, a organização terrorista que implantou a República?
Não concordo com o termo "terrorista". A República foi feita pela massa urbana de Lisboa, a plebe urbana de Lisboa, como lhe chama Vasco Pulido Valente naquele que foi o melhor livro que se escreveu sobre o 5 de Outubro, "O Poder e o Povo". É preciso perceber que a sociedade portuguesa no último quartel do século XIX estava a sofrer profundíssimas alterações, que explicam a decadência da monarquia. O regime estava totalmente desadequado às transformações dos finais do século XIX, à industrialização e à urbanização daí decorrente. A Lisboa acorre uma grande massa de população rural que vem trabalhar nas indústrias. E aparecem os serviços, criando uma pequena burguesia urbana, que tem os seus dirigentes naturais nas novas profissões liberais, advogados, engenheiros, médicos. O republicanismo é o partido das novas classes médias urbanas, excluídas do sistema político, do sistema liberal oligárquico da monarquia. O que é o Partido Republicano? É a nova classe média emergente das transformações do século XIX que busca o seu lugar na política e nos negócios. Estabelece, através da Carbonária, uma espécie de maçonaria popular, a ligação com a plebe urbana de Lisboa, que são os operários, os vendedores ambulantes, uma miríade de profissões informais. Esta gente desconfia do Partido Republicano, que considera burguês, mas através da Carbonária é conquistada para a infantaria do republicanismo radical. Ou seja, aquela parte do republicanismo que quer fazer a revolução, porque há uma parte que não quer.
A ala moderada do Partido Republicano convivia bem com a monarquia?
Sim, era reformista. Achava que a República seria fruto de uma pedagogia lenta, a prazo. O republicanismo, enquanto ideologia, entendia que a passagem do indivíduo de súbdito de sua majestade a cidadão livre da República se fazia pelo acesso à cultura, à educação. Daí o papel central que a instrução pública tem. Seria um trabalho de pedagogia lenta e prolongada. A ideia de assalto ao poder por via revolucionária só surge na República após o ultimato de 1890.
A República é patriótica...
Colonial, patriota. Daí a matriz colonialista da República. O primeiro ensaio revolucionário para derrubar a monarquia é o 31 de Janeiro de 1981, precisamente um ano depois do Ultimato.
Mas nós devemos ou não devemos a revolução à Carbonária?
A Carbonária é a estrutura matricial da Revolução. É uma acção revolucionária de massas que organiza a revolução em Lisboa, na Loja Montanha, por acordo entre os maçons republicanos radicais que querem a revolução e os maçons que, além de republicanos e radicais, são carbonários. Luz de Almeida, António Maria da Silva e Machado Santos formam a Alta Venda da Carbonária. Todos eles são da Loja Montanha. E é numa grande assembleia da Loja Montanha que se decide criar uma comissão para preparar militarmente a revolução. Mesmo assim, essa decisão defronta grandes resistências no interior do Partido Republicano. Só num congresso realizado em 1909, em Setúbal, é que a maioria do Partido Republicano se decide pelo apoio à revolução e entrega a preparação da revolução a uma comissão militar que, na realidade, é a Alta Venda da Carbonária. É a organização da Carbonária que, quando tudo corre mal no 5 de Outubro, está no terreno, fica no terreno e ganha. Ganha sobretudo por desistência do poder monárquico.
Acha que vamos conseguir agora homenagear a Carbonária?
Não se trata de homenagear a Carbonária, trata-se de homenagear a República. Mas eu não tenho problema nenhum em homenagear a Carbonária! A Carbonária foi uma organização revolucionária, popular, que conquistou o poder pelas armas, contra um poder oligárquico que tinha criado um sistema institucional que não cairia senão pelas armas. A Carbonária é uma organização decisiva neste período. Tem 20 a 30 mil pessoas organizadas na Grande Lisboa. É uma coisa espantosa, do ponto de vista da penetração de uma organização política secreta na massa urbana de Lisboa! A Carbonária organizava tudo quanto era activo naqueles bairros populares de Xabregas, do Beato, de Alcântara, na Margem Sul. Porque é que na Margem Sul se declarou a República logo no dia 4? Na cintura de Lisboa a Carbonária toma o poder de véspera, sem nenhuma dificuldade. Em Lisboa é que há resistência, é onde está o rei e as Forças Armadas. É a Carbonária que obriga o Partido Republicano a ir para a revolução! É a Carbonária que pressiona o directório! A ala moderada do Partido Republicano resiste à revolução, desde logo porque tinham medo da Carbonária!
Para todos os efeitos, a Carbonária era uma organização terrorista...
Não lhe chamaria assim... A expressão terrorista tem hoje conotações que não se adaptam exactamente à Carbonária. Punha bombas, realmente. Tinha infiltrações anarquistas e bombistas. Sabe- -se pouco sobre a Carbonária, não deixou um arquivo, não tinha uma sede. Mas os grupos carbonários tinham uma autonomia própria. Não é rigoroso dizer que é a Carbonária que decide matar o rei, mas seguramente um grupo de carbonários decide matar o rei. Os carbonários não desaparecem em 1910, transformam-se numa espécie de milícia informal do Partido Republicano, da ala de Afonso Costa, a ala mais jacobina. E mantém as mesmas características.
Uma espécie de milícia do regime?
Uma milícia informal do afonsismo, sem dúvida nenhuma. Essas redes populares, secretas, de indivíduos que têm armas e vêm para a rua combater vão estar presentes durante toda a República. No pós--guerra, essa milícia vai funcionar a favor de uma novidade que é a esquerda republicana. O Partido Republicano é bastante conservador do ponto de vista social. O afonsismo é jacobino e anticlerical, mas Afonso Costa era conhecido como o "racha-sindicalistas".
Portanto, não era de esquerda.
Essa designação de esquerda e de direita é difícil de empregar com rigor ao republicanismo de antes da guerra. O Afonso Costa é o homem do equilíbrio orçamental em moldes conservadores, equilibrou o orçamento com a mesma técnica do Salazar.
E reprimiu os sindicalistas?
Os sindicalistas foram reprimidos na República toda, com altos e baixos. A República nasceu aos ombros dos trabalhadores, mas depois rompeu essa aliança a partir de 1911, quando começam as greves e os republicanos espingardeiam as greves, com muita violência, mortos, prisões sem julgamento e, a seguir à guerra, deportações para África. É preciso perceber que nem tudo foi a ditadura militar que começou. A ditadura militar refinou instrumentos que é a República que inaugura, como as deportações sem julgamento para África dos suspeitos de pertencerem à Legião Vermelha, uma organização que não se conhece bem hoje. Alguns são executados sumariamente na rua pela polícia. Apesar de a greve ser teoricamente permitida, houve muita gente morta, sindicatos encerrados, jornais apreendidos. A história da República é pautada por grandes gestos de repressão em relação ao movimento sindical.
Ouve-se falar mais da repressão contra o país católico.
Mas contra os sindicatos foi bem pior do que contra os católicos! Existiu uma perseguição aos católicos e aos monárquicos, mas é preciso dizer que os católicos e os monárquicos desde a primeira hora conspiram activamente contra a República! E a República responde.
Mas isso não matou a República, tanto a lei da separação entre a Igreja e o Estado como aquilo a que muitos chamam o terror das ruas?
O "terror" é um exagero. Não partilho nada desse ponto de vista. O terror! Como se fosse o terror jacobino da revolução francesa! A República está longe de ser uma democracia política, é um regime que prolonga o liberalismo oligárquico da monarquia. A luta dos republicanos é contra o trono e o altar. O trono e o altar são indissociáveis. O acesso do indivíduo à luz do conhecimento estava associado ao combate às trevas do clericalismo. A Igreja era o esteiro ideológico do antigo regime. A República nasce sobre a ideia do progresso técnico e científico. A lei de 1911 é mais que isto, é uma tentativa de subjugar a Igreja ao Estado. Há naturalmente um exagero inaceitável nas nacionalizações do património da Igreja, que deu um argumento à Igreja para mobilizar o mundo rural contra a República. A República comete dois erros logo de início que são mortais. Primeiro corta-se do movimento operário, que é a sua base de apoio nas grandes cidades. Faz do movimento operário um inimigo, sendo que era um dos pilares de sustentação da república urbana. E o segundo grande erro é que, ao perseguir da maneira que o fez a Igreja Católica, permite a mobilização do mundo rural contra a república urbana. E facilitou o cerco da reacção eclesiástica, e não só, contra a cidade republicana. Erro que vão reparar mais tarde, mas que pagarão muito caro. Exemplo: o governo atribui-se a si próprio o poder de censurar todos os documentos que a Igreja emitia. No quadro de uma lei de separação, é totalmente absurdo! Mais do que separação, foi a tentativa de subjugação da Igreja ao poder do Estado que se voltou contra a República.
São dois erros de Afonso Costa.
E o terceiro também é dele: a entrada na guerra. A espantosa irresponsabilidade com que um país subindustrializado, atrasado, analfabeto, vai participar na guerra tecnologicamente mais avançada que a humanidade até aí tinha tido. Homens analfabetos há três gerações a manusear instrumentos bélicos, a ter de ler instruções para usar uma máscara de gás e outras coisas do género. Um país que não frequenta a escola, onde há 70 por cento de analfabetos, como é que está preparado para a guerra? E essa foi uma tragédia brutal do ponto de vista humano e financeiro. E a República não vai sobreviver ao impacto económico e social da guerra. O desastre da participação da guerra precipita a crise da república no pós-guerra.
O que se passou naquele 5 de Outubro quando o Almirante Reis se suicida?
Como historiador não me fica bem dizer isto, mas há um acto muito lusitano na preparação da revolução. Falhou tudo. Só não falhou o assalto aos barcos. Os marinheiros ocupam o Adamastor e o São Rafael e, no dia seguinte, salvam o D. Carlos, que entretanto foi tomado. Depois de tomar o Rafael e o Adamastor, deveriam disparar uma ou duas salvas de canhão que seriam ouvidas no Cais do Gás, junto ao que é hoje o Museu de Electricidade. Ao ouvir o sinal, o almirante Reis embarcaria para tomar o comando militar da revolução a bordo do D. Carlos. Mas não se sabe o que aconteceu. Sabe-se que o almirante Cândido dos Reis tinha, dias antes, empenhado não só a sua honra como a sua vida no desencadear da revolução. Não tendo ouvido os tiros e tendo notícia de que as outras unidades não tinham saído de Lisboa, ficou desesperado - ele era um homem muito instável - e saiu dali. Foi para aquelas azinhagas que existiam à volta do que é hoje a Praça do Chile e suicidou-se com um tiro na cabeça. Repare que dois dos principais dirigentes operacionais da revolução morreram dia 4 para dia 5. Miguel Bombarda é assassinado por um doente.
Mas Miguel Bombarda estava directamente envolvido nas operações?
Era um dos dirigentes operacionais. Ele estava a atender os doentes no hospital, aparece um doente e dá-lhe um tiro nos intestinos. Só que demora tempo a morrer e, no leito de agonia, vai passando planos, papéis e estratégias da revolução aos seus assistentes. Era um homem decisivo para a revolução. Tanto que, com o seu assassinato, se põe o problema de a revolução não sair. O certo é que sai. O processo era imparável e o próprio almirante Reis já se tinha comprometido. Mas só há duas unidades que saem - a Infantaria 16, de Campo de Ourique e Artilharia 1, que era a grande unidade de artilharia. A estratégia era fazer convergir essas unidades no Palácio das Necessidades que foi atacado do quartel dos marinheiros. Os marinheiros é que eram o braço armado da República.
E porquê os marinheiros?
Os marinheiros estavam ligados ao operariado, à zona ribeirinha, ao Porto de Lisboa. E os marinheiros não falharam. O quartel dos marinheiros era muito importante. É dali que subiram para assaltar o Palácio das Necessidades, que é defendido pelas divisões de lanceiros. Há ali em toda aquela zona de Alcântara uma luta terrível, pois houve um contra-ataque em massa contra o quartel de marinheiros que se defende com a população, com a artilharia civil que lança bombas nos pés dos cavalos, das janelas, dos telhados e assim se foram aguentando.
Entretanto, onde estava a infantaria?
A Infantaria 16 de Campo de Ourique e uma coluna da Artilharia 1 também tinham recebido ordens para marchar em direcção ao quartel, mas não conseguem lá chegar porque a guarda municipal intercepta-os. Juntam-se ali ao pé do Largo do Rato e resolvem ir para a Rotunda do Marquês onde montam uma barricada para se defenderem dos assaltos dos guardas municipais pela Avenida da Liberdade acima. E é assim que a Rotunda se torna num espaço de referência da revolução, é um lugar estratégico, o local onde se articulava a cidade velha, limitada a norte pelos Restauradores e a cidade burguesa, que está a nascer, a cidade das Avenidas Novas, que ia até Entrecampos. A Rotunda fica num alto e era um anfiteatro estratégico sobre a cidade. Eles descobrem as potencialidades da Rotunda na altura e no local.
Quem era Machado Santos, o homem que depois da fuga dos oficiais acaba por chefiar a revolução?
É um homem curiosíssimo. Era um carbonário, um grande organizador sobretudo na marinha e no exército. É ele que traz para a revolução os cabos, os sargentos e toda aquela gente que enquadra a população civil. É preciso ver que a certa altura estão 150 militares na rotunda e 500 civis - carbonários todos. As ligações da cidade estavam todas minadas por eles e a tropa monárquica não conseguia deslocar-se para nenhum lado de Lisboa. O Machado Santos era um homem pouco importante na hierarquia da Marinha, era comissário naval, tratava dos abastecimentos. O engraçado é que ele vai de eléctrico para a revolução, vestido com a farda de gala, até Campo de Ourique onde se junta ao grupo de carbonários que assalta Infantaria 16.
E como passa a chefiar as operações?
Quando no dia 4 pela manhã chega a notícia da morte do almirante Reis ao acampamento da Rotunda, os militares vão-se todos embora.
Acham que a revolução está perdida.
Sem almirante, sem chefes, sem hierarquia sentem-se perdidos. Mas Machado Santos fica e pergunta quem é que quer ficar. E são os carbonários que ficam com ele. Ou seja, os sargentos, os cabos, a população civil. Ficam todos, menos os oficiais que se vão todos embora.
A vitória deve-se a Machado Santos...
E à Carbonária. Ao povo carbonário.
É uma revolução popular.
Completamente. E é uma revolução, não é um golpe de Estado.
Machado Santos desaparece completamente da História.
Acontece muito aos chefes militares.
Tragados pela revolução...
Sim. Ele foi operacionalmente importante, pela coragem. Mas depois tornou-se um ressabiado da República. Forma o Partido Renovador e começa a conspirar activamente. Apoiante do Sidónio, é preso. É morto na noite sangrenta (1921).
Quem é o seu republicano favorito?
Eu aprendi história da República à mesa de casa da minha mãe. O meu avô era um grande republicano, conservador, mas um grande opositor ao salazarismo. Tenho pena de não ter um gravador naquela altura, porque ele passava os almoços todos a contar histórias da República. Tinha conspirado, tinha sido várias vezes preso, foi um homem que teve uma grande importância na minha vida.
Como se chamava?
Filipe Mendes. Portanto, tinha uma certa familiaridade com esta gente. Tenho uma grande admiração pelos republicanos sobretudo quando se tornam resistentes à ditadura. O meu avô foi um dos dirigentes civis da revolução de 27. Esteve cercado no Terreiro do Paço, fugiu com o Aquilino Ribeiro às costas, ferido com os estilhaços de uma granada. Eu ouvia aquilo extasiado. Tenho uma admiração muito grande por esses homens, sobretudo os que foram coerentes, que lutaram até ao fim pelo ideal republicano. Mas acho que a República falhou no essencial: democratizar o país. Acabou por ser um prolongamento agónico do sistema liberal e não a reforma democrática do sistema liberal. Não a regeneração democrática do liberalismo, mas a agonia do liberalismo oligárquico, abrindo o caminho à reacção.
Fernando Rosas: "A República falhou no essencial: democratizar o país"
por Ana Sá Lopes, Publicado em 02 de Janeiro de 2010
Fernando Rosas lembra a grande repressão da República sobre os sindicatos, muito maior do que a feita contra os católicos
O historiador Fernando Rosas explica a importância da Carbonária na implantação da República
O centenário da República vai marcar todo o ano de 2010. O historiador Fernando Rosas aceitou falar ao i sobre essa revolução "tão lusitana" em que o principal chefe militar, almirante Cândido dos Reis, se suicida porque julga a revolução perdida, e um despenseiro da Marinha e grande carbonário, Machado Santos, vai de eléctrico para a revolução e leva a República à vitória. Fernando Rosas defende que a República falhou a sua principal missão, a de democratizar o país.
Cem anos depois, já se pode falar da República sem tabus?
Há certos temas históricos que vão sempre dividir as águas entre os portugueses. Na história não tem de haver consenso. Há sempre certas visões historiográficas que representarão o Marquês de Pombal, a República ou o Estado Novo de certa maneira e outras doutra. Haver separação de águas acerca do balanço que se faz das personagens históricas é uma coisa perfeitamente normal.
O Presidente da República disse que não queria que o centenário servisse para dividir os portugueses. Isso é possível?
Com o devido respeito, acho que o Presidente da República conhece mal a história da República e limita-se a reproduzir lugares-comuns das correntes que têm visões mais conservadoras da República. Vai haver sempre, até que a memória da República se perca, pessoas detractoras da República, pessoas defensoras da República, memórias favoráveis e memórias desfavoráveis. O Presidente da República com certeza que não deseja que acerca de um acontecimento qualquer relevante da História haja uma única interpretação, como havia durante o Estado Novo. É absolutamente salutar que haja uma grande polémica sobre o significado histórico da República. Não é por isso que se diminui a República, antes pelo contrário.
Mas vamos conseguir comemorar a Carbonária, a organização terrorista que implantou a República?
Não concordo com o termo "terrorista". A República foi feita pela massa urbana de Lisboa, a plebe urbana de Lisboa, como lhe chama Vasco Pulido Valente naquele que foi o melhor livro que se escreveu sobre o 5 de Outubro, "O Poder e o Povo". É preciso perceber que a sociedade portuguesa no último quartel do século XIX estava a sofrer profundíssimas alterações, que explicam a decadência da monarquia. O regime estava totalmente desadequado às transformações dos finais do século XIX, à industrialização e à urbanização daí decorrente. A Lisboa acorre uma grande massa de população rural que vem trabalhar nas indústrias. E aparecem os serviços, criando uma pequena burguesia urbana, que tem os seus dirigentes naturais nas novas profissões liberais, advogados, engenheiros, médicos. O republicanismo é o partido das novas classes médias urbanas, excluídas do sistema político, do sistema liberal oligárquico da monarquia. O que é o Partido Republicano? É a nova classe média emergente das transformações do século XIX que busca o seu lugar na política e nos negócios. Estabelece, através da Carbonária, uma espécie de maçonaria popular, a ligação com a plebe urbana de Lisboa, que são os operários, os vendedores ambulantes, uma miríade de profissões informais. Esta gente desconfia do Partido Republicano, que considera burguês, mas através da Carbonária é conquistada para a infantaria do republicanismo radical. Ou seja, aquela parte do republicanismo que quer fazer a revolução, porque há uma parte que não quer.
A ala moderada do Partido Republicano convivia bem com a monarquia?
Sim, era reformista. Achava que a República seria fruto de uma pedagogia lenta, a prazo. O republicanismo, enquanto ideologia, entendia que a passagem do indivíduo de súbdito de sua majestade a cidadão livre da República se fazia pelo acesso à cultura, à educação. Daí o papel central que a instrução pública tem. Seria um trabalho de pedagogia lenta e prolongada. A ideia de assalto ao poder por via revolucionária só surge na República após o ultimato de 1890.
A República é patriótica...
Colonial, patriota. Daí a matriz colonialista da República. O primeiro ensaio revolucionário para derrubar a monarquia é o 31 de Janeiro de 1981, precisamente um ano depois do Ultimato.
Mas nós devemos ou não devemos a revolução à Carbonária?
A Carbonária é a estrutura matricial da Revolução. É uma acção revolucionária de massas que organiza a revolução em Lisboa, na Loja Montanha, por acordo entre os maçons republicanos radicais que querem a revolução e os maçons que, além de republicanos e radicais, são carbonários. Luz de Almeida, António Maria da Silva e Machado Santos formam a Alta Venda da Carbonária. Todos eles são da Loja Montanha. E é numa grande assembleia da Loja Montanha que se decide criar uma comissão para preparar militarmente a revolução. Mesmo assim, essa decisão defronta grandes resistências no interior do Partido Republicano. Só num congresso realizado em 1909, em Setúbal, é que a maioria do Partido Republicano se decide pelo apoio à revolução e entrega a preparação da revolução a uma comissão militar que, na realidade, é a Alta Venda da Carbonária. É a organização da Carbonária que, quando tudo corre mal no 5 de Outubro, está no terreno, fica no terreno e ganha. Ganha sobretudo por desistência do poder monárquico.
Acha que vamos conseguir agora homenagear a Carbonária?
Não se trata de homenagear a Carbonária, trata-se de homenagear a República. Mas eu não tenho problema nenhum em homenagear a Carbonária! A Carbonária foi uma organização revolucionária, popular, que conquistou o poder pelas armas, contra um poder oligárquico que tinha criado um sistema institucional que não cairia senão pelas armas. A Carbonária é uma organização decisiva neste período. Tem 20 a 30 mil pessoas organizadas na Grande Lisboa. É uma coisa espantosa, do ponto de vista da penetração de uma organização política secreta na massa urbana de Lisboa! A Carbonária organizava tudo quanto era activo naqueles bairros populares de Xabregas, do Beato, de Alcântara, na Margem Sul. Porque é que na Margem Sul se declarou a República logo no dia 4? Na cintura de Lisboa a Carbonária toma o poder de véspera, sem nenhuma dificuldade. Em Lisboa é que há resistência, é onde está o rei e as Forças Armadas. É a Carbonária que obriga o Partido Republicano a ir para a revolução! É a Carbonária que pressiona o directório! A ala moderada do Partido Republicano resiste à revolução, desde logo porque tinham medo da Carbonária!
Para todos os efeitos, a Carbonária era uma organização terrorista...
Não lhe chamaria assim... A expressão terrorista tem hoje conotações que não se adaptam exactamente à Carbonária. Punha bombas, realmente. Tinha infiltrações anarquistas e bombistas. Sabe- -se pouco sobre a Carbonária, não deixou um arquivo, não tinha uma sede. Mas os grupos carbonários tinham uma autonomia própria. Não é rigoroso dizer que é a Carbonária que decide matar o rei, mas seguramente um grupo de carbonários decide matar o rei. Os carbonários não desaparecem em 1910, transformam-se numa espécie de milícia informal do Partido Republicano, da ala de Afonso Costa, a ala mais jacobina. E mantém as mesmas características.
Uma espécie de milícia do regime?
Uma milícia informal do afonsismo, sem dúvida nenhuma. Essas redes populares, secretas, de indivíduos que têm armas e vêm para a rua combater vão estar presentes durante toda a República. No pós--guerra, essa milícia vai funcionar a favor de uma novidade que é a esquerda republicana. O Partido Republicano é bastante conservador do ponto de vista social. O afonsismo é jacobino e anticlerical, mas Afonso Costa era conhecido como o "racha-sindicalistas".
Portanto, não era de esquerda.
Essa designação de esquerda e de direita é difícil de empregar com rigor ao republicanismo de antes da guerra. O Afonso Costa é o homem do equilíbrio orçamental em moldes conservadores, equilibrou o orçamento com a mesma técnica do Salazar.
E reprimiu os sindicalistas?
Os sindicalistas foram reprimidos na República toda, com altos e baixos. A República nasceu aos ombros dos trabalhadores, mas depois rompeu essa aliança a partir de 1911, quando começam as greves e os republicanos espingardeiam as greves, com muita violência, mortos, prisões sem julgamento e, a seguir à guerra, deportações para África. É preciso perceber que nem tudo foi a ditadura militar que começou. A ditadura militar refinou instrumentos que é a República que inaugura, como as deportações sem julgamento para África dos suspeitos de pertencerem à Legião Vermelha, uma organização que não se conhece bem hoje. Alguns são executados sumariamente na rua pela polícia. Apesar de a greve ser teoricamente permitida, houve muita gente morta, sindicatos encerrados, jornais apreendidos. A história da República é pautada por grandes gestos de repressão em relação ao movimento sindical.
Ouve-se falar mais da repressão contra o país católico.
Mas contra os sindicatos foi bem pior do que contra os católicos! Existiu uma perseguição aos católicos e aos monárquicos, mas é preciso dizer que os católicos e os monárquicos desde a primeira hora conspiram activamente contra a República! E a República responde.
Mas isso não matou a República, tanto a lei da separação entre a Igreja e o Estado como aquilo a que muitos chamam o terror das ruas?
O "terror" é um exagero. Não partilho nada desse ponto de vista. O terror! Como se fosse o terror jacobino da revolução francesa! A República está longe de ser uma democracia política, é um regime que prolonga o liberalismo oligárquico da monarquia. A luta dos republicanos é contra o trono e o altar. O trono e o altar são indissociáveis. O acesso do indivíduo à luz do conhecimento estava associado ao combate às trevas do clericalismo. A Igreja era o esteiro ideológico do antigo regime. A República nasce sobre a ideia do progresso técnico e científico. A lei de 1911 é mais que isto, é uma tentativa de subjugar a Igreja ao Estado. Há naturalmente um exagero inaceitável nas nacionalizações do património da Igreja, que deu um argumento à Igreja para mobilizar o mundo rural contra a República. A República comete dois erros logo de início que são mortais. Primeiro corta-se do movimento operário, que é a sua base de apoio nas grandes cidades. Faz do movimento operário um inimigo, sendo que era um dos pilares de sustentação da república urbana. E o segundo grande erro é que, ao perseguir da maneira que o fez a Igreja Católica, permite a mobilização do mundo rural contra a república urbana. E facilitou o cerco da reacção eclesiástica, e não só, contra a cidade republicana. Erro que vão reparar mais tarde, mas que pagarão muito caro. Exemplo: o governo atribui-se a si próprio o poder de censurar todos os documentos que a Igreja emitia. No quadro de uma lei de separação, é totalmente absurdo! Mais do que separação, foi a tentativa de subjugação da Igreja ao poder do Estado que se voltou contra a República.
São dois erros de Afonso Costa.
E o terceiro também é dele: a entrada na guerra. A espantosa irresponsabilidade com que um país subindustrializado, atrasado, analfabeto, vai participar na guerra tecnologicamente mais avançada que a humanidade até aí tinha tido. Homens analfabetos há três gerações a manusear instrumentos bélicos, a ter de ler instruções para usar uma máscara de gás e outras coisas do género. Um país que não frequenta a escola, onde há 70 por cento de analfabetos, como é que está preparado para a guerra? E essa foi uma tragédia brutal do ponto de vista humano e financeiro. E a República não vai sobreviver ao impacto económico e social da guerra. O desastre da participação da guerra precipita a crise da república no pós-guerra.
O que se passou naquele 5 de Outubro quando o Almirante Reis se suicida?
Como historiador não me fica bem dizer isto, mas há um acto muito lusitano na preparação da revolução. Falhou tudo. Só não falhou o assalto aos barcos. Os marinheiros ocupam o Adamastor e o São Rafael e, no dia seguinte, salvam o D. Carlos, que entretanto foi tomado. Depois de tomar o Rafael e o Adamastor, deveriam disparar uma ou duas salvas de canhão que seriam ouvidas no Cais do Gás, junto ao que é hoje o Museu de Electricidade. Ao ouvir o sinal, o almirante Reis embarcaria para tomar o comando militar da revolução a bordo do D. Carlos. Mas não se sabe o que aconteceu. Sabe-se que o almirante Cândido dos Reis tinha, dias antes, empenhado não só a sua honra como a sua vida no desencadear da revolução. Não tendo ouvido os tiros e tendo notícia de que as outras unidades não tinham saído de Lisboa, ficou desesperado - ele era um homem muito instável - e saiu dali. Foi para aquelas azinhagas que existiam à volta do que é hoje a Praça do Chile e suicidou-se com um tiro na cabeça. Repare que dois dos principais dirigentes operacionais da revolução morreram dia 4 para dia 5. Miguel Bombarda é assassinado por um doente.
Mas Miguel Bombarda estava directamente envolvido nas operações?
Era um dos dirigentes operacionais. Ele estava a atender os doentes no hospital, aparece um doente e dá-lhe um tiro nos intestinos. Só que demora tempo a morrer e, no leito de agonia, vai passando planos, papéis e estratégias da revolução aos seus assistentes. Era um homem decisivo para a revolução. Tanto que, com o seu assassinato, se põe o problema de a revolução não sair. O certo é que sai. O processo era imparável e o próprio almirante Reis já se tinha comprometido. Mas só há duas unidades que saem - a Infantaria 16, de Campo de Ourique e Artilharia 1, que era a grande unidade de artilharia. A estratégia era fazer convergir essas unidades no Palácio das Necessidades que foi atacado do quartel dos marinheiros. Os marinheiros é que eram o braço armado da República.
E porquê os marinheiros?
Os marinheiros estavam ligados ao operariado, à zona ribeirinha, ao Porto de Lisboa. E os marinheiros não falharam. O quartel dos marinheiros era muito importante. É dali que subiram para assaltar o Palácio das Necessidades, que é defendido pelas divisões de lanceiros. Há ali em toda aquela zona de Alcântara uma luta terrível, pois houve um contra-ataque em massa contra o quartel de marinheiros que se defende com a população, com a artilharia civil que lança bombas nos pés dos cavalos, das janelas, dos telhados e assim se foram aguentando.
Entretanto, onde estava a infantaria?
A Infantaria 16 de Campo de Ourique e uma coluna da Artilharia 1 também tinham recebido ordens para marchar em direcção ao quartel, mas não conseguem lá chegar porque a guarda municipal intercepta-os. Juntam-se ali ao pé do Largo do Rato e resolvem ir para a Rotunda do Marquês onde montam uma barricada para se defenderem dos assaltos dos guardas municipais pela Avenida da Liberdade acima. E é assim que a Rotunda se torna num espaço de referência da revolução, é um lugar estratégico, o local onde se articulava a cidade velha, limitada a norte pelos Restauradores e a cidade burguesa, que está a nascer, a cidade das Avenidas Novas, que ia até Entrecampos. A Rotunda fica num alto e era um anfiteatro estratégico sobre a cidade. Eles descobrem as potencialidades da Rotunda na altura e no local.
Quem era Machado Santos, o homem que depois da fuga dos oficiais acaba por chefiar a revolução?
É um homem curiosíssimo. Era um carbonário, um grande organizador sobretudo na marinha e no exército. É ele que traz para a revolução os cabos, os sargentos e toda aquela gente que enquadra a população civil. É preciso ver que a certa altura estão 150 militares na rotunda e 500 civis - carbonários todos. As ligações da cidade estavam todas minadas por eles e a tropa monárquica não conseguia deslocar-se para nenhum lado de Lisboa. O Machado Santos era um homem pouco importante na hierarquia da Marinha, era comissário naval, tratava dos abastecimentos. O engraçado é que ele vai de eléctrico para a revolução, vestido com a farda de gala, até Campo de Ourique onde se junta ao grupo de carbonários que assalta Infantaria 16.
E como passa a chefiar as operações?
Quando no dia 4 pela manhã chega a notícia da morte do almirante Reis ao acampamento da Rotunda, os militares vão-se todos embora.
Acham que a revolução está perdida.
Sem almirante, sem chefes, sem hierarquia sentem-se perdidos. Mas Machado Santos fica e pergunta quem é que quer ficar. E são os carbonários que ficam com ele. Ou seja, os sargentos, os cabos, a população civil. Ficam todos, menos os oficiais que se vão todos embora.
A vitória deve-se a Machado Santos...
E à Carbonária. Ao povo carbonário.
É uma revolução popular.
Completamente. E é uma revolução, não é um golpe de Estado.
Machado Santos desaparece completamente da História.
Acontece muito aos chefes militares.
Tragados pela revolução...
Sim. Ele foi operacionalmente importante, pela coragem. Mas depois tornou-se um ressabiado da República. Forma o Partido Renovador e começa a conspirar activamente. Apoiante do Sidónio, é preso. É morto na noite sangrenta (1921).
Quem é o seu republicano favorito?
Eu aprendi história da República à mesa de casa da minha mãe. O meu avô era um grande republicano, conservador, mas um grande opositor ao salazarismo. Tenho pena de não ter um gravador naquela altura, porque ele passava os almoços todos a contar histórias da República. Tinha conspirado, tinha sido várias vezes preso, foi um homem que teve uma grande importância na minha vida.
Como se chamava?
Filipe Mendes. Portanto, tinha uma certa familiaridade com esta gente. Tenho uma grande admiração pelos republicanos sobretudo quando se tornam resistentes à ditadura. O meu avô foi um dos dirigentes civis da revolução de 27. Esteve cercado no Terreiro do Paço, fugiu com o Aquilino Ribeiro às costas, ferido com os estilhaços de uma granada. Eu ouvia aquilo extasiado. Tenho uma admiração muito grande por esses homens, sobretudo os que foram coerentes, que lutaram até ao fim pelo ideal republicano. Mas acho que a República falhou no essencial: democratizar o país. Acabou por ser um prolongamento agónico do sistema liberal e não a reforma democrática do sistema liberal. Não a regeneração democrática do liberalismo, mas a agonia do liberalismo oligárquico, abrindo o caminho à reacção.
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quinta-feira, dezembro 17
Red Bull corta as nossas asas
por Ferreira Fernandes
Lisboa não é Lisboa SAD, nem Lisboa SA, nem clube, nem empresa, é a capital portuguesa. Tal como o Porto não é SAD nem SA, é cidade portuguesa. Uma não seria o que é sem a outra. Durante séculos fizeram-se assim, uma para a outra. Foi no Porto que os cruzados do Norte da Europa foram convencidos a parar em Lisboa e fazê-la parte do Portugal que se fazia. Foi Lisboa que se levantou com o Mestre de Avis e livrou o Porto de ser castelhano. Foram uma e outra, pelos séculos, por Portugal. Camilo nasceu no Bairro Alto e foi buscar a mulher da sua vida à Baixa do Porto; entre os dois acontecimentos, aprendeu na aldeia de Vilarinho de Samardã o português que lhe permitiu fazer lembrar a Lisboa e ao Porto que o resto de Portugal não é paisagem. Eu, que sou de fora, de outros lugares que este Portugal permitiu, olho as duas cidades, vejo-as tão diferentes e não consigo vê-las afastadas. Sorrio às picardias bairristas, conheço-lhes as vantagens e fraquezas e amo ambas. Gosto que compitam porque, afinal, beneficio eu. Mas compitam, desculpem-me a inocência das palavras, como irmãs de destino comum. Que uma bebida manhosa leve uma, Lisboa, a roubar a outra, Porto, é indigno de tanto passado. E, basta ver o que acontece no país aqui ao lado, enfraquece o futuro.
por Ferreira Fernandes
Lisboa não é Lisboa SAD, nem Lisboa SA, nem clube, nem empresa, é a capital portuguesa. Tal como o Porto não é SAD nem SA, é cidade portuguesa. Uma não seria o que é sem a outra. Durante séculos fizeram-se assim, uma para a outra. Foi no Porto que os cruzados do Norte da Europa foram convencidos a parar em Lisboa e fazê-la parte do Portugal que se fazia. Foi Lisboa que se levantou com o Mestre de Avis e livrou o Porto de ser castelhano. Foram uma e outra, pelos séculos, por Portugal. Camilo nasceu no Bairro Alto e foi buscar a mulher da sua vida à Baixa do Porto; entre os dois acontecimentos, aprendeu na aldeia de Vilarinho de Samardã o português que lhe permitiu fazer lembrar a Lisboa e ao Porto que o resto de Portugal não é paisagem. Eu, que sou de fora, de outros lugares que este Portugal permitiu, olho as duas cidades, vejo-as tão diferentes e não consigo vê-las afastadas. Sorrio às picardias bairristas, conheço-lhes as vantagens e fraquezas e amo ambas. Gosto que compitam porque, afinal, beneficio eu. Mas compitam, desculpem-me a inocência das palavras, como irmãs de destino comum. Que uma bebida manhosa leve uma, Lisboa, a roubar a outra, Porto, é indigno de tanto passado. E, basta ver o que acontece no país aqui ao lado, enfraquece o futuro.
segunda-feira, novembro 2
O destino da Europa só pode ser o mesmo dos EUA: uma federação democrática
http://jornal.publico.clix.pt/noticia/01-11-2009/o-destino-da-europa-so-pode-ser-o-mesmo-dos-eua-uma-federacao-democratica-18125866.htm
Os Estados europeus encontraram na União Europeia o substituto para os seus antigos impérios. São hoje um "império" ainda à procura de destino num mundo em que o Estado soberano está em perda de protagonismo. Por Teresa de Sousa
Para um ouvido leigo, falar de impérios, sobretudo do império europeu, não soa a normalidade. A história da Europa encarregou-se de fazer com que os europeus se dêem mal com a palavra. A obra de Josep Colomer, académico catalão da Universidade Pompeu Fabra de Barcelona, reintroduz o conceito - historicamente tão válido como o de Estado ou de cidade - como instrumento de análise útil para a compreensão da realidade actual. Compara os processos "imperiais" de constituição dos EUA e da União Europeia para chegar à conclusão de que dificilmente a Europa evitará o seu destino de federação democrática. O mesmo dos Estados Unidos.
Colomer veio a Lisboa para proferir a "Palestra A. Sedas Nunes" no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. O livro que inspirou esta entrevista data de 2007: Great Empires, Small Nations - the uncertain future of the sovereign state.
A ideia de império, de que fala nas suas obras, é uma ideia negativa. Por que é que teve necessidade de recuperar este conceito para a análise política?
O império é apenas uma das formas políticas históricas que se podem distinguir: cidade, Estado, império. Nos últimos 300 anos, o Estado foi a forma dominante, mas creio que hoje os Estados soberanos, sobretudo na Europa, já não são, em muitos aspectos, realmente soberanos e creio que a forma de império pode ajudar a entender algumas realidades políticas actuais. Se olhar para a realidade do ponto de vista histórico, os grandes Estados - incluindo Portugal, Espanha, Grã-Bretanha, França - desenvolveram-se como Estados porque tiveram impérios coloniais.
Mas não é o mesmo conceito de império que agora introduz nos seus livros.
Não. Não é o mesmo, quando se compara com o império romano-germânico, o império romano, o austro-húngaro. Mas quando os impérios coloniais europeus desapareceram também acabou o período de grandes guerras entre Estados na Europa, em parte devidas à rivalidade colonial. Esses impérios coloniais foram substituídos por um acordo de cooperação económica e militar entre os Estados europeus que é hoje a União Europeia. Uma coisa substitui outra. É um acordo entre as antigas potências coloniais que necessitam de um âmbito territorial muito mais amplo que o dos Estados e que tiveram de deixar de tê-lo nas colónias.
E que o senhor diz que é um império, mesmo que de outro tipo...
É um império no sentido em que também o foram os Estados Unidos no seu início e muitas outras experiências históricas semelhantes - no sentido de que não é um Estado. A UE não é nem será um Estado nacional soberano. Mas também não é apenas uma organização internacional como a ONU ou a OCDE. É mais do que isso. Eu digo que é um império no sentido em que os limites territoriais não estão pré-determinados, em que não há fronteiras fixas e não sabemos ainda qual é o seu limite, e em que existe uma grande descentralização interna e uma grande variedade de níveis institucionais distintos, unidos no seu topo por instituições ainda relativamente débeis mas que tomam decisões vinculativas para todos os membros...
O que está a dizer é que, nesse conceito de império que define, os EUA não são hoje um império mas que foram um império até chegarem à sua forma actual?
Passaram 120 anos desde que as 13 colónias se tornaram independentes em finais do século XVIII até que se estabeleceram os limites dos EUA actuais e se consolidaram as instituições centrais. Levou esse tempo todo a construir a federação democrática dos EUA. Na Europa, apenas levamos cerca de 50 anos de construção europeia e ainda não terminámos. Comparo as duas experiências no sentido de que uma estrutura de tipo imperial pode acabar convertendo-se numa federação democrática mais estável.
Os EUA são um império acabado que se converte numa federação democrática.
Escreveu, precisamente, um ensaio comparando os dois caminhos de unificação da UE e dos EUA. Mas há uma diferença básica: a Europa nasceu da longa história das guerras entre os Estados e tem na sua origem a negação da ideia de nacionalismo. Os EUA nascem da ideia da liberdade religiosa. Essa diferença de génese não pode fazer toda a diferença quanto ao destino final?
A constituição dos EUA também começou como um projecto e levou mais de 100 anos até tornar-se numa realidade com instituições estáveis.
Nos EUA não havia a História.
Apesar disso, tiveram uma guerra civil tremenda 70 ou 80 anos depois da independência, comparável à II Guerra em termos de mortandade e de destruição. Na Europa até estamos a ser mais rápidos comparativamente, apesar do lastro histórico que os países trazem consigo. O ponto de partida pode ser diferente dos EUA, mas resulta da grande destruição da II Guerra. Que esteve a ponto de destruir os Estados europeus.
A Europa, com a adopção do Tratado de Lisboa, acaba de dizer que não quer ir no sentido dos EUA. É só uma paragem?
Até agora todos os avanços da integração resultaram de um alargamento. Quando estamos a chegar próximo do limite desse alargamento, os avanços só podem fazer-se com mais integração interna. Depois da expansão territorial, vem maior integração interna. Creio que não nos vamos ficar pelo Tratado de Lisboa.
Insiste na importância de definir as fronteiras. É um dos temas centrais do debate europeu. Há os que defendem a continuação do alargamento, incluindo à Turquia, para a Europa ganhar dimensão geopolítica mundial e há quem diga que é preciso estabelecer limites para poder consolidar-se politicamente. Os EUA também iniciaram a sua expansão sem limites prévios e, num certo momento, chegaram à conclusão de que já não podiam assimilar mais. Havia, na altura, muita gente que defendia que o México deveria ser integralmente assimilado - acabou por ser mais de metade. Outros defendiam que a integração deveria ir até às Caraíbas, incluindo Cuba, o que provocou a guerra com Espanha no final século XIX. Porto Rico, que está muito mais longe dos EUA, acabou associado e Cuba não.
Creio que os Balcãs são as Caraíbas da Europa. Se não forem integrados, serão uma fonte de conflito permanente. Para mim, a Turquia é o México - não se pode integrar, é demasiado grande e demasiado diferente. Em contrapartida, penso que a Turquia, com todos os seus avanços de democratização e de liberalização, podia ser uma referência para o Médio Oriente e teria um papel muito mais construtivo do que aspirar à UE, que creio que seria muito perturbador.
A definição das fronteiras é também uma condição para uma política externa comum que, entre outras coisas, pode conseguir estabilizar as relações com a Rússia ou com o Médio Oriente.
Precisamente, a região que separa a UE da Rússia parece ser um problema muito complicado de relação entre impérios.
Sim. Ucrânia, Geórgia, Moldávia são países internamente divididos. As revoluções democráticas recentes mostraram que há uma parte desses países que é pró-europeia e outra que é pró-russa. Essa é a questão da fronteira, no sentido americano de frontier e não de border.
O Wild West é o Wild East?
Exactamente. É o Wild East, "the frontier but not yet the border". São linhas de conflito que são, de facto, problemas. Mas essas linhas de conflito, nos Balcãs, na Turquia, na Ucrânia, são muito menos conflituosas do que as linhas de conflito que existiram entre a França, a Inglaterra, a Alemanha.
O que diz também é que a Europa, para manter a sua lógica interna, só pode ter como destino uma federação democrática?
Ou isso ou creio que acabará por ter menos relevância no mundo, que acabará por estar nas mãos dos Estados Unidos, China, Rússia e das grandes unidades que têm muito mais capacidade de coordenação a nível global.
No seu livro, argumenta que estas grandes unidades territoriais - EUA, UE, China, Rússia, Índia... - podem ter um papel estabilizador da ordem internacional. Está a falar da ideia de integração regional a partir de um grande país?
Desde o século XVII que a construção de Estados soberanos comportou guerras cada vez mais frequentes e cada vez mais mortais entre eles. Basta olhar para a Europa. Sobretudo entre a França e a Alemanha, mas também as guerras de sucessão da Espanha, da Áustria, as guerras napoleónicas, as guerras franco-prussianas, e depois a I e a II guerras mundiais.
Entre Estados ou entre impérios?
Entre Estados. Cada um tinha as suas fronteiras, rivalidades, desejo de expansão e conflitos coloniais. A época dos Estados foi uma época de guerras. Na Europa só há paz e democracia estável desde há cerca de 60 anos, quando os Estados cederam poderes a uma união mais ampla.
Na Europa isso é claro. Mas pode ser transposto para outras realidades mundiais?
Se o mundo estiver organizado em 10 impérios, mais do que em quase 200 Estados soberanos, as linhas de fronteira são menores e os conflitos potenciais também podem ser menores. A paz perpétua seria, como diz Kant, um governo mundial, uma grande federação de povos livres. Isso ainda não está no horizonte das nossas vidas. Mas a simplificação em grandes unidades internamente descentralizadas pode reduzir as linhas de conflito em comparação com as guerras permanentes entre Estados que vivemos nos séculos anteriores.
E como é que isso se articula à escala mundial?
Algumas organizações internacionais apontam nessa direcção. As Nações Unidas têm um Conselho de Segurança com cinco membros permanentes, que são basicamente os antigos impérios. Mas isso já foi substituído pelo G8 ou G9 ou G10 e, agora, o G20. Considera-se que é suficientemente representativo da população e da economia mundial para actuar como uma espécie de governo provisório em formação deste mundo que já não é feito de 200 Estados mas de organizações muito maiores.
http://jornal.publico.clix.pt/noticia/01-11-2009/o-destino-da-europa-so-pode-ser-o-mesmo-dos-eua-uma-federacao-democratica-18125866.htm
Os Estados europeus encontraram na União Europeia o substituto para os seus antigos impérios. São hoje um "império" ainda à procura de destino num mundo em que o Estado soberano está em perda de protagonismo. Por Teresa de Sousa
Para um ouvido leigo, falar de impérios, sobretudo do império europeu, não soa a normalidade. A história da Europa encarregou-se de fazer com que os europeus se dêem mal com a palavra. A obra de Josep Colomer, académico catalão da Universidade Pompeu Fabra de Barcelona, reintroduz o conceito - historicamente tão válido como o de Estado ou de cidade - como instrumento de análise útil para a compreensão da realidade actual. Compara os processos "imperiais" de constituição dos EUA e da União Europeia para chegar à conclusão de que dificilmente a Europa evitará o seu destino de federação democrática. O mesmo dos Estados Unidos.
Colomer veio a Lisboa para proferir a "Palestra A. Sedas Nunes" no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. O livro que inspirou esta entrevista data de 2007: Great Empires, Small Nations - the uncertain future of the sovereign state.
A ideia de império, de que fala nas suas obras, é uma ideia negativa. Por que é que teve necessidade de recuperar este conceito para a análise política?
O império é apenas uma das formas políticas históricas que se podem distinguir: cidade, Estado, império. Nos últimos 300 anos, o Estado foi a forma dominante, mas creio que hoje os Estados soberanos, sobretudo na Europa, já não são, em muitos aspectos, realmente soberanos e creio que a forma de império pode ajudar a entender algumas realidades políticas actuais. Se olhar para a realidade do ponto de vista histórico, os grandes Estados - incluindo Portugal, Espanha, Grã-Bretanha, França - desenvolveram-se como Estados porque tiveram impérios coloniais.
Mas não é o mesmo conceito de império que agora introduz nos seus livros.
Não. Não é o mesmo, quando se compara com o império romano-germânico, o império romano, o austro-húngaro. Mas quando os impérios coloniais europeus desapareceram também acabou o período de grandes guerras entre Estados na Europa, em parte devidas à rivalidade colonial. Esses impérios coloniais foram substituídos por um acordo de cooperação económica e militar entre os Estados europeus que é hoje a União Europeia. Uma coisa substitui outra. É um acordo entre as antigas potências coloniais que necessitam de um âmbito territorial muito mais amplo que o dos Estados e que tiveram de deixar de tê-lo nas colónias.
E que o senhor diz que é um império, mesmo que de outro tipo...
É um império no sentido em que também o foram os Estados Unidos no seu início e muitas outras experiências históricas semelhantes - no sentido de que não é um Estado. A UE não é nem será um Estado nacional soberano. Mas também não é apenas uma organização internacional como a ONU ou a OCDE. É mais do que isso. Eu digo que é um império no sentido em que os limites territoriais não estão pré-determinados, em que não há fronteiras fixas e não sabemos ainda qual é o seu limite, e em que existe uma grande descentralização interna e uma grande variedade de níveis institucionais distintos, unidos no seu topo por instituições ainda relativamente débeis mas que tomam decisões vinculativas para todos os membros...
O que está a dizer é que, nesse conceito de império que define, os EUA não são hoje um império mas que foram um império até chegarem à sua forma actual?
Passaram 120 anos desde que as 13 colónias se tornaram independentes em finais do século XVIII até que se estabeleceram os limites dos EUA actuais e se consolidaram as instituições centrais. Levou esse tempo todo a construir a federação democrática dos EUA. Na Europa, apenas levamos cerca de 50 anos de construção europeia e ainda não terminámos. Comparo as duas experiências no sentido de que uma estrutura de tipo imperial pode acabar convertendo-se numa federação democrática mais estável.
Os EUA são um império acabado que se converte numa federação democrática.
Escreveu, precisamente, um ensaio comparando os dois caminhos de unificação da UE e dos EUA. Mas há uma diferença básica: a Europa nasceu da longa história das guerras entre os Estados e tem na sua origem a negação da ideia de nacionalismo. Os EUA nascem da ideia da liberdade religiosa. Essa diferença de génese não pode fazer toda a diferença quanto ao destino final?
A constituição dos EUA também começou como um projecto e levou mais de 100 anos até tornar-se numa realidade com instituições estáveis.
Nos EUA não havia a História.
Apesar disso, tiveram uma guerra civil tremenda 70 ou 80 anos depois da independência, comparável à II Guerra em termos de mortandade e de destruição. Na Europa até estamos a ser mais rápidos comparativamente, apesar do lastro histórico que os países trazem consigo. O ponto de partida pode ser diferente dos EUA, mas resulta da grande destruição da II Guerra. Que esteve a ponto de destruir os Estados europeus.
A Europa, com a adopção do Tratado de Lisboa, acaba de dizer que não quer ir no sentido dos EUA. É só uma paragem?
Até agora todos os avanços da integração resultaram de um alargamento. Quando estamos a chegar próximo do limite desse alargamento, os avanços só podem fazer-se com mais integração interna. Depois da expansão territorial, vem maior integração interna. Creio que não nos vamos ficar pelo Tratado de Lisboa.
Insiste na importância de definir as fronteiras. É um dos temas centrais do debate europeu. Há os que defendem a continuação do alargamento, incluindo à Turquia, para a Europa ganhar dimensão geopolítica mundial e há quem diga que é preciso estabelecer limites para poder consolidar-se politicamente. Os EUA também iniciaram a sua expansão sem limites prévios e, num certo momento, chegaram à conclusão de que já não podiam assimilar mais. Havia, na altura, muita gente que defendia que o México deveria ser integralmente assimilado - acabou por ser mais de metade. Outros defendiam que a integração deveria ir até às Caraíbas, incluindo Cuba, o que provocou a guerra com Espanha no final século XIX. Porto Rico, que está muito mais longe dos EUA, acabou associado e Cuba não.
Creio que os Balcãs são as Caraíbas da Europa. Se não forem integrados, serão uma fonte de conflito permanente. Para mim, a Turquia é o México - não se pode integrar, é demasiado grande e demasiado diferente. Em contrapartida, penso que a Turquia, com todos os seus avanços de democratização e de liberalização, podia ser uma referência para o Médio Oriente e teria um papel muito mais construtivo do que aspirar à UE, que creio que seria muito perturbador.
A definição das fronteiras é também uma condição para uma política externa comum que, entre outras coisas, pode conseguir estabilizar as relações com a Rússia ou com o Médio Oriente.
Precisamente, a região que separa a UE da Rússia parece ser um problema muito complicado de relação entre impérios.
Sim. Ucrânia, Geórgia, Moldávia são países internamente divididos. As revoluções democráticas recentes mostraram que há uma parte desses países que é pró-europeia e outra que é pró-russa. Essa é a questão da fronteira, no sentido americano de frontier e não de border.
O Wild West é o Wild East?
Exactamente. É o Wild East, "the frontier but not yet the border". São linhas de conflito que são, de facto, problemas. Mas essas linhas de conflito, nos Balcãs, na Turquia, na Ucrânia, são muito menos conflituosas do que as linhas de conflito que existiram entre a França, a Inglaterra, a Alemanha.
O que diz também é que a Europa, para manter a sua lógica interna, só pode ter como destino uma federação democrática?
Ou isso ou creio que acabará por ter menos relevância no mundo, que acabará por estar nas mãos dos Estados Unidos, China, Rússia e das grandes unidades que têm muito mais capacidade de coordenação a nível global.
No seu livro, argumenta que estas grandes unidades territoriais - EUA, UE, China, Rússia, Índia... - podem ter um papel estabilizador da ordem internacional. Está a falar da ideia de integração regional a partir de um grande país?
Desde o século XVII que a construção de Estados soberanos comportou guerras cada vez mais frequentes e cada vez mais mortais entre eles. Basta olhar para a Europa. Sobretudo entre a França e a Alemanha, mas também as guerras de sucessão da Espanha, da Áustria, as guerras napoleónicas, as guerras franco-prussianas, e depois a I e a II guerras mundiais.
Entre Estados ou entre impérios?
Entre Estados. Cada um tinha as suas fronteiras, rivalidades, desejo de expansão e conflitos coloniais. A época dos Estados foi uma época de guerras. Na Europa só há paz e democracia estável desde há cerca de 60 anos, quando os Estados cederam poderes a uma união mais ampla.
Na Europa isso é claro. Mas pode ser transposto para outras realidades mundiais?
Se o mundo estiver organizado em 10 impérios, mais do que em quase 200 Estados soberanos, as linhas de fronteira são menores e os conflitos potenciais também podem ser menores. A paz perpétua seria, como diz Kant, um governo mundial, uma grande federação de povos livres. Isso ainda não está no horizonte das nossas vidas. Mas a simplificação em grandes unidades internamente descentralizadas pode reduzir as linhas de conflito em comparação com as guerras permanentes entre Estados que vivemos nos séculos anteriores.
E como é que isso se articula à escala mundial?
Algumas organizações internacionais apontam nessa direcção. As Nações Unidas têm um Conselho de Segurança com cinco membros permanentes, que são basicamente os antigos impérios. Mas isso já foi substituído pelo G8 ou G9 ou G10 e, agora, o G20. Considera-se que é suficientemente representativo da população e da economia mundial para actuar como uma espécie de governo provisório em formação deste mundo que já não é feito de 200 Estados mas de organizações muito maiores.
sexta-feira, outubro 30
Configurar o acesso a um PC remoto, utilizando o tightvnc.
Cenário:
"PC-A" - o computador da pessoa que precisa de ajuda, ligado à internet através de um router ADSL.
"PC-B" - o computador que vai entrar remotamente no "PC-A".
Possibilidade 1:
a)No "PC-A" instalar o tightvnc.
b)No "PC-B" gravar o viewer do vnc.
c)No "PC-B" executar o executável com a opção -listen (pode ser necessário abrir uma excepção na firewall do windows)
d)No router do "PC-B", ir à opção "Virtual Server" e abrir uma regra para o endereço local associado ao porto 5500.
e)No "PC-A", clicar com o lado direito do rato no VNC e fazer "add new client". Introduzir o endereço internet do router do "PC-B" (consulta-se na tab status do router)
Possibilidade 2.
a)No "PC-A" instalar o tightvnc.
b)No "PC-B" gravar o viewer do vnc.
c)No router do "PC-A" abrir uma regra de "Virtual Server" para o endereço local, com o porto 5800 (http) e 5900 (normal). consultar o endereço internet do router associado ao "PC-A"
d)introduzir no browser do "PC-B" o endereço anterior com :5800 ou introduzir directamente o endereço no viewer vnc.
Cenário:
"PC-A" - o computador da pessoa que precisa de ajuda, ligado à internet através de um router ADSL.
"PC-B" - o computador que vai entrar remotamente no "PC-A".
Possibilidade 1:
a)No "PC-A" instalar o tightvnc.
b)No "PC-B" gravar o viewer do vnc.
c)No "PC-B" executar o executável com a opção -listen (pode ser necessário abrir uma excepção na firewall do windows)
d)No router do "PC-B", ir à opção "Virtual Server" e abrir uma regra para o endereço local associado ao porto 5500.
e)No "PC-A", clicar com o lado direito do rato no VNC e fazer "add new client". Introduzir o endereço internet do router do "PC-B" (consulta-se na tab status do router)
Possibilidade 2.
a)No "PC-A" instalar o tightvnc.
b)No "PC-B" gravar o viewer do vnc.
c)No router do "PC-A" abrir uma regra de "Virtual Server" para o endereço local, com o porto 5800 (http) e 5900 (normal). consultar o endereço internet do router associado ao "PC-A"
d)introduzir no browser do "PC-B" o endereço anterior com :5800 ou introduzir directamente o endereço no viewer vnc.
sexta-feira, outubro 2
Por que razão voto no Bloco de Esquerda
por Fernando Rosas, Publicado em 23 de Setembro de 2009
Começo por uma declaração de interesses e por um agradecimento. Sendo como sou deputado e membro da comissão política do BE, estou reconhecido ao i por esta oportunidade de poder explicitar o sentido do meu voto no próximo dia 27 com uma reflexão pessoal que pretende ir além do imediatismo da divulgação política, entrando, é certo que necessariamente algo à pressa, no campo do meu ofício de historiador.
Na realidade, o sentido de escolha que o BE propõe, é pelo menos assim que a entendo, tem a ver necessariamente com a constatação do fracasso histórico das elites sociais, económicas e políticas que têm moldado o ser económico e político-institucional do país desde 1976 (desde a contenção e anulação do processo revolucionário) no que respeita à tarefa da modernização sustentada de Portugal.
Procurando dizê-lo por outras palavras: o bloco social dominante reconstituído após a Revolução de 1974/1975 e a sua expressão política - o monopólio neo-rotativo do PS/PSD (com o apêndice eventual do PP), o omnipresente domínio do centrão nas instituições e no governo - reeditaram e prolongaram a incapacidade histórica da oligarquia portuguesa de modernizar o país. A economia, a sociedade, a vida política da democracia vive uma crise estrutural prolongada, uma crise de modelo. Uma crise que era bem anterior à crise internacional e contribuiu para acentuar os seus efeitos; uma crise agravada com ela, e uma crise de continuação já anunciada pelo governo PS e pelo PSD para o pós-crise mundial.
Insisto no conceito de "incapacidade histórica" - porque as elites pós-abrilistas repetiram o fracasso da oligarquia do salazarismo/marcelismo. O modelo que emergiu da evolução das políticas económicas da ditadura desde os anos 30 assentou na pauta proteccionista dos mercados nacional e colonial, nos oligopólios ou monopólios garantidos pela cartelização corporativa e pelo condicionamento industrial e, sobretudo, na exploração colonial e na "paz social", ou seja, nos salários muito baixos e no trabalho desqualificado, assegurados pela negação dos direitos políticos e sindicais fundamentais, pela repressão policial e por um módico controlado de paternalismo patronal e corporativo. Mesmo o tímido início de aproximação à Europa com o boom das exportações para os países da EFTA na década de 60 não alterou os traços fundamentais deste modelo de industrialização efectiva, mas sem liberdades políticas ou sindicais, sem justiça distributiva, sem mercado interno ou externo viabilizador, sem reforma agrária, sem qualificação atempada e suficiente de mão-de-obra e sem capacidade competitiva internacional. Uma industrialização tutelada pelos grandes grupos económicos em estreita promiscuidade com o Estado fascista, prosperando à sombra de toda a espécie de protecção e privilégios administrativos e pautais e seguramente garantidos pelo aparelho policial do regime.
Sabemos qual foi o resultado disto (até porque ainda hoje o estamos a pagar...): quando sucessivamente se conjugaram os efeitos da primeira crise petrolífera, das conquistas sociais do mundo do trabalho durante a Revolução e da inexorável integração económica europeia, os pilares do edifício industrial herdado do Estado Novo ruíram fragorosamente (Quimigal, Siderurgia, Sorefame, Lisnave, Mague...), seguida por tudo o resto que assentava essencialmente na mão-de-obra barata, numerosa e indiferenciada. Começou aí o doloroso processo de desindustrialização do país, depois acentuado por condicionalismos posteriores.
Acontece que os interesses económicos e sociais dominantes e o novo poder político neo-rotativo pós-revolucionário não só não contrariaram, como não se mostraram à altura de contrariar atempadamente este processo de desagregação. A partir dos anos 80, a estabilização da parceria rotativa PS/PSD-PP na governação e a direita dos interesses que a suporta, seguindo de perto o novo padrão da estratégia de acumulação do capitalismo global, adaptaram para o nosso país um modelo cujas três bases essenciais são bem conhecidas. Desprodutivização e financiarização especulativa da economia; ofensiva desreguladora contra os direitos do trabalho (desemprego em massa, generalização do trabalho precário, aumento da jornada de trabalho e redução do seu preço, li- beralização dos despedimentos, esvaziamento da contratação colectiva - em suma, o Código do Trabalho Bagão Félix/Vieira da Silva); ofensiva privativista sobre os serviços públicos rentáveis (especialmente a saúde, a escola pública e os transportes) e os sectores estratégicos da economia de lucro garantido (telecomunicações, energia, abastecimento de água, este último caso na lista dos projectos ocultos).
O resultado de tais políticas sucessiva e continuadamente aplicadas pelos governos do PS e do PSD/PP foi uma espécie de devastação económica e social cujos efeitos eram patentes bem antes de se fazer sentir o impacto da crise mundial. A destruição do aparelho produtivo marcado por milhares de falências e pela estagnação agrícola, mais de 600 mil desempregados (metade dos quais, devido a medidas restritivas do governo Sócrates, sem acesso a qualquer tipo de subsídio de desemprego), a gangrena generalizada do trabalho precário (900 mil pessoas a recibo verde!), mais de um milhão e meio de pensionistas com pensões de miséria, corrupção, fraudes e desvios milionários na banca, pára--quedas dourados para os gestores de topo a par de salários congelados nalgumas grandes empresas, o ataque à escola pública e aos professores, o cerco privativista e a desarticulação progressiva do Serviço Nacional de Saúde, o estrangulamento financeiro das universidades, o atraso na investigação científica e na qualificação da força de trabalho...
A estratégia neoliberal gerou a desigualdade e a injustiça social mais profundas, mergulhou o país numa crise estrutural duradoura, numa semiperiferia dependente e subqualificada, em suma, confirmou, e aqui regressamos, a falência histórica das elites pós-abrilistas, dos seus partidos do centro-direita e do seu modelo neoliberal quanto à modernização economicamente sustentada e socialmente justa do país. Isto, só por si, exprime o grave impasse actual da democracia portuguesa.
É, por tudo isto, o momento histórico de desarticulação do bloco central e de romper o caminho de mudança. Isto é, de juntar e organizar o campo social e político capaz de protagonizar um novo modelo de desenvolvimento e uma governação de novo tipo à esquerda. É claro que falo de um processo em que o BE não é senão um participante, falo de um movimento de reunião de forças sociais e políticas, partidárias e não partidárias, que se iniciou antes das eleições e continuará para além delas, mas em que se apela ao voto no BE como um gesto de confirmação, apoio e reforço decisivo à construção de um poder político e social alternativo. Fazer das esquerdas sociais, culturais, políticas, na sua pluralidade incontornável, uma esquerda grande, um projecto de governo socialista e popular, eis o cerne da proposta política do Bloco nestas eleições.
Juntar forças para mudar à esquerda o centro de gravidade da política portuguesa. Eis tudo o que nos traz. Eis a razão do meu voto no Bloco de Esquerda.
por Fernando Rosas, Publicado em 23 de Setembro de 2009
Começo por uma declaração de interesses e por um agradecimento. Sendo como sou deputado e membro da comissão política do BE, estou reconhecido ao i por esta oportunidade de poder explicitar o sentido do meu voto no próximo dia 27 com uma reflexão pessoal que pretende ir além do imediatismo da divulgação política, entrando, é certo que necessariamente algo à pressa, no campo do meu ofício de historiador.
Na realidade, o sentido de escolha que o BE propõe, é pelo menos assim que a entendo, tem a ver necessariamente com a constatação do fracasso histórico das elites sociais, económicas e políticas que têm moldado o ser económico e político-institucional do país desde 1976 (desde a contenção e anulação do processo revolucionário) no que respeita à tarefa da modernização sustentada de Portugal.
Procurando dizê-lo por outras palavras: o bloco social dominante reconstituído após a Revolução de 1974/1975 e a sua expressão política - o monopólio neo-rotativo do PS/PSD (com o apêndice eventual do PP), o omnipresente domínio do centrão nas instituições e no governo - reeditaram e prolongaram a incapacidade histórica da oligarquia portuguesa de modernizar o país. A economia, a sociedade, a vida política da democracia vive uma crise estrutural prolongada, uma crise de modelo. Uma crise que era bem anterior à crise internacional e contribuiu para acentuar os seus efeitos; uma crise agravada com ela, e uma crise de continuação já anunciada pelo governo PS e pelo PSD para o pós-crise mundial.
Insisto no conceito de "incapacidade histórica" - porque as elites pós-abrilistas repetiram o fracasso da oligarquia do salazarismo/marcelismo. O modelo que emergiu da evolução das políticas económicas da ditadura desde os anos 30 assentou na pauta proteccionista dos mercados nacional e colonial, nos oligopólios ou monopólios garantidos pela cartelização corporativa e pelo condicionamento industrial e, sobretudo, na exploração colonial e na "paz social", ou seja, nos salários muito baixos e no trabalho desqualificado, assegurados pela negação dos direitos políticos e sindicais fundamentais, pela repressão policial e por um módico controlado de paternalismo patronal e corporativo. Mesmo o tímido início de aproximação à Europa com o boom das exportações para os países da EFTA na década de 60 não alterou os traços fundamentais deste modelo de industrialização efectiva, mas sem liberdades políticas ou sindicais, sem justiça distributiva, sem mercado interno ou externo viabilizador, sem reforma agrária, sem qualificação atempada e suficiente de mão-de-obra e sem capacidade competitiva internacional. Uma industrialização tutelada pelos grandes grupos económicos em estreita promiscuidade com o Estado fascista, prosperando à sombra de toda a espécie de protecção e privilégios administrativos e pautais e seguramente garantidos pelo aparelho policial do regime.
Sabemos qual foi o resultado disto (até porque ainda hoje o estamos a pagar...): quando sucessivamente se conjugaram os efeitos da primeira crise petrolífera, das conquistas sociais do mundo do trabalho durante a Revolução e da inexorável integração económica europeia, os pilares do edifício industrial herdado do Estado Novo ruíram fragorosamente (Quimigal, Siderurgia, Sorefame, Lisnave, Mague...), seguida por tudo o resto que assentava essencialmente na mão-de-obra barata, numerosa e indiferenciada. Começou aí o doloroso processo de desindustrialização do país, depois acentuado por condicionalismos posteriores.
Acontece que os interesses económicos e sociais dominantes e o novo poder político neo-rotativo pós-revolucionário não só não contrariaram, como não se mostraram à altura de contrariar atempadamente este processo de desagregação. A partir dos anos 80, a estabilização da parceria rotativa PS/PSD-PP na governação e a direita dos interesses que a suporta, seguindo de perto o novo padrão da estratégia de acumulação do capitalismo global, adaptaram para o nosso país um modelo cujas três bases essenciais são bem conhecidas. Desprodutivização e financiarização especulativa da economia; ofensiva desreguladora contra os direitos do trabalho (desemprego em massa, generalização do trabalho precário, aumento da jornada de trabalho e redução do seu preço, li- beralização dos despedimentos, esvaziamento da contratação colectiva - em suma, o Código do Trabalho Bagão Félix/Vieira da Silva); ofensiva privativista sobre os serviços públicos rentáveis (especialmente a saúde, a escola pública e os transportes) e os sectores estratégicos da economia de lucro garantido (telecomunicações, energia, abastecimento de água, este último caso na lista dos projectos ocultos).
O resultado de tais políticas sucessiva e continuadamente aplicadas pelos governos do PS e do PSD/PP foi uma espécie de devastação económica e social cujos efeitos eram patentes bem antes de se fazer sentir o impacto da crise mundial. A destruição do aparelho produtivo marcado por milhares de falências e pela estagnação agrícola, mais de 600 mil desempregados (metade dos quais, devido a medidas restritivas do governo Sócrates, sem acesso a qualquer tipo de subsídio de desemprego), a gangrena generalizada do trabalho precário (900 mil pessoas a recibo verde!), mais de um milhão e meio de pensionistas com pensões de miséria, corrupção, fraudes e desvios milionários na banca, pára--quedas dourados para os gestores de topo a par de salários congelados nalgumas grandes empresas, o ataque à escola pública e aos professores, o cerco privativista e a desarticulação progressiva do Serviço Nacional de Saúde, o estrangulamento financeiro das universidades, o atraso na investigação científica e na qualificação da força de trabalho...
A estratégia neoliberal gerou a desigualdade e a injustiça social mais profundas, mergulhou o país numa crise estrutural duradoura, numa semiperiferia dependente e subqualificada, em suma, confirmou, e aqui regressamos, a falência histórica das elites pós-abrilistas, dos seus partidos do centro-direita e do seu modelo neoliberal quanto à modernização economicamente sustentada e socialmente justa do país. Isto, só por si, exprime o grave impasse actual da democracia portuguesa.
É, por tudo isto, o momento histórico de desarticulação do bloco central e de romper o caminho de mudança. Isto é, de juntar e organizar o campo social e político capaz de protagonizar um novo modelo de desenvolvimento e uma governação de novo tipo à esquerda. É claro que falo de um processo em que o BE não é senão um participante, falo de um movimento de reunião de forças sociais e políticas, partidárias e não partidárias, que se iniciou antes das eleições e continuará para além delas, mas em que se apela ao voto no BE como um gesto de confirmação, apoio e reforço decisivo à construção de um poder político e social alternativo. Fazer das esquerdas sociais, culturais, políticas, na sua pluralidade incontornável, uma esquerda grande, um projecto de governo socialista e popular, eis o cerne da proposta política do Bloco nestas eleições.
Juntar forças para mudar à esquerda o centro de gravidade da política portuguesa. Eis tudo o que nos traz. Eis a razão do meu voto no Bloco de Esquerda.
segunda-feira, setembro 28
Como apagar em definitivo ficheiros num computador com sistema operativo windows?
Usar um software que re-escreva os ficheiros a ser apagados com um padrão físico em disco. Por exemplo o Freeraser.
Depois de ter todos os ficheiros apagados, correr o secure delete que percorre todo o disco e enche o espaço vazio com zeros.
Uma solução bem mais radical, consiste em introduzir um disco de arranque cuja única função é apagar definitivamente todo o conteúdo dos discos rígidos. Tenham medo.
Usar um software que re-escreva os ficheiros a ser apagados com um padrão físico em disco. Por exemplo o Freeraser.
Depois de ter todos os ficheiros apagados, correr o secure delete que percorre todo o disco e enche o espaço vazio com zeros.
Uma solução bem mais radical, consiste em introduzir um disco de arranque cuja única função é apagar definitivamente todo o conteúdo dos discos rígidos. Tenham medo.
terça-feira, setembro 8
Entrevista
Público, 8 de Setembro de 2009.
Louçã: “A esquerda precisa de uma força para ter maioria e essa força não é o PS”
07.09.2009 - 23h30 José Manuel Fernandes, Maria José Oliveira
O Bloco de Esquerda não será governo sozinho. Mas o líder bloquista recusa nomear com quem fará alianças. Para já, exclui o PS da “maioria de esquerda”.
PÚBLICO – A insistência do Bloco de Esquerda (BE) na necessidade de uma maioria de esquerda dão a ideia de que o Bloco quer tomar conta do PS, ou pelo menos de uma parte dele.
Francisco Louçã – Não, o que tenho dito, e que é o centro da estratégia do BE nestas eleições e que vai ser nos próximos anos, é utilizar como critério para definir a política a necessidade de resposta à crise social e em particular à recessão económica. E isso exige uma arrumação da política, das ideias, e das alternativas. Creio que o PS fracassou na gestão política da resposta à crise. Por razões que têm que ver com o absolutismo da sua maioria, a fractura social que a sua política acentuou (com o Código do Trabalho, a desregulação da vida social e com a facilitação da vida económica, com os grandes negócios a prejudicarem os interesses da economia do país, a prejudicarem o orçamento, as contas públicas) e por isso é que me parece indispensável dizer com toda a clareza que para uma esquerda que governe, para uma esquerda de maioria, é preciso formar essa maioria.
Como é que se forma essa maioria sem o PS?
Com uma recomposição que atravesse todo o espaço da política portuguesa.
Isso implica uma cisão do PS ou uma transformação do PS.
Implica uma reconfiguração, certamente com uma clarificação contra as políticas passadistas e conservadoras que têm vindo a acentuar a crise. Já existiram diálogos, como aconteceu com Manuel Alegre. É a partir desse trabalho de diálogo que se encontrarão pessoas que fazem parte de todas as cores da política e das alternativas políticas à esquerda.
Essa reconfiguração passa também pela mudança do líder do PS?
O PS fará o que quiser. A esquerda precisa sobretudo de ter uma força para ter maioria. Essa força não é o PS.
Mas tem necessariamente de ter uma parte do PS.
Tem de ter, seguramente. Tem de ter muitas pessoas que certamente hoje se reconhecem no PS ou são críticas do PS. E de muitas outras opiniões da esquerda.
Se olharmos para a Europa encontramos um conjunto de países onde forças políticas que poderemos considerar semelhantes quer ao BE quer ao PCP acabaram por conduzir os partidos socialistas a uma situação de afastamento do poder. Isso não pode acontecer também em Portugal?
Eu vejo o contrário. Acho que se tratou do fracasso dos partidos socialistas que tinham a maioria dos governos de quase todos os países da União Europeia e que conduziram ao impasse europeu, ao Pacto de Estabilidade e Crescimento, a políticas que acentuaram a recessão e a desqualificação da política social. Essas foram as causas do fracasso. E esse fracasso exige o surgimento de alternativas e cria espaços políticos novos para reconfigurações políticas, sendo o mais importante o Die Link, na Alemanha, que nas mais recentes eleições teve entre 21 e 27 por cento em alguns dos estados mais industriais e mais populosos do país.
A política está a mudar na Europa toda, embora com configurações que são muito particulares. Para mim é sempre inexplicável como é que um país de cultura como a Itália pode ter um senhor como Berlusconi a federar a direita italiana.
Porque a esquerda estava estilhaçada.
É certo. E porque o último governo de grande coligação à esquerda foi uma catástrofe do ponto de vista político e social. Efectuou políticas que avançaram mais na privatização da segurança social do que o que tinha jamais acontecido até então. Perdeu-se a sua própria base. Se a esquerda governa atacando a sua base social em vez de criar uma grande maioria para políticas sociais de combate pela igualdade, então naturalmente está perdida. E isso é o que leva ao fracasso do Governo de José Sócrates.
Sócrates teve a maioria absoluta, teve todas as condições para governar. Atacou os professores e hoje diz que quer ser mais delicado, ao mesmo tempo a sua ministra da Educação diz que fez uma guerra com os professores. Ora, não há guerras delicadas. O que José Sócrates fez, juntamente com Maria de Lurdes Rodrigues, foi uma guerra social para desqualificar a educação em nome do autoritarismo de Estado. E isso depois traduz-se nos resultados eleitorais.
“Somos mais responsáveis do ponto de vista europeu do que Sócrates”
Há vários pontos no programa do BE que o colocam, no limite, fora da União Europeia (UE). As nacionalizações das telecomunicações e da energia vão contra as regras do mercado aberto europeu.
Nas telecomunicações há duas empresas que dominam o país. No mercado de energia há uma empresa que domina o mercado essencial e há quatro empresas na distribuição dos combustíveis. Falar de mercado é risível. Além disso, a UE nunca procurou ter mercados. O que procura ter é oligopólios bem organizados e quer proteger a rentabilidade de empresas privadas através de rendas que o Estado lhe garante.
Veja-se aquilo que aconteceu na Galp, para dar um exemplo concreto: há uma renda que é paga a Américo Amorim e a José Eduardo dos Santos, que compraram por 1700 milhões de euros um terço de uma empresa que vale 10 mil milhões. Ou seja, só na compra já duplicaram o seu investimento. E em cinco anos de dividendos vão pagar aquilo que lhes custou a empresa.
É claro que na UE há uma política liberal que procura garantir antiliberalmente que grandes consórcios possam ter o beneficio da utilização desses bens públicos. Nós discordamos disso, mas somos europeus. Não estamos fora da UE. Pelo contrário, somos mais responsáveis do ponto de vista europeu do que José Sócrates.
Um outro ponto que não se enquadra no projecto europeu é a saída de Portugal da NATO e a extinção da NATO.
A NATO foi criada depois da guerra, no contexto da configuração da Guerra Fria, para defender o Atlântico Norte e a aliança dos EUA com os principais países europeus contra o Pacto de Varsóvia. Hoje em dia, a NATO faz intervenções militares e redefiniu o seu projecto estratégico em qualquer localização do mundo, como é o caso da operação no Afeganistão. O BE entende que não é a NATO que deve ser a força de contenção ou de prevenção ou de intervenção em conflitos militares. Isso deve derivar de uma ordem internacional que não dependa de uma estrutura hierárquica determinada pelos EUA.
É o país com mais meios militares.
Os EUA investem em tecnologia militar mais do dobro do que investe o mundo inteiro. Dominam por completo a NATO.
Nessa lógica os EUA dominariam qualquer outro organismo.
Um organismo multilateral é um organismo diferente daquele que é a NATO. Bem podem dizer que há problemas de defesa. Há, sim senhor. Mas o problema de defesa que agora estamos a viver é o problema do Afeganistão. No Afeganistão os soldados portugueses sofrem a vergonha e a humilhação de defender um governo de narcotraficantes. Na Comissão de Defesa da Assembleia da República recebemos os comandos militares portugueses, sempre à porta fechada. Mas eles dizem-nos sempre, com toda a transparência, sem hesitarem nas palavras, que o Karzai e toda a sua equipa são a cabeça da maior produção de heroína no mundo.
A ONU calcula que 90 por cento da produção de heroína no mundo está no Afeganistão, uma parte pelos talibans outra parte pelos senhores da guerra, representados por Karzai. Não há nenhuma razão de paz, nenhum projecto de contenção do terrorismo, que esteja em causa na ocupação militar do Afeganistão. Porque a intervenção na zona, no Afeganistão e no Paquistão, nunca se fará com uma guerra em que os soldados são derrotados e se precipita o prolongamento desta ocupação militar. Há uma razão política que é vergonhosa.
A alternativa, no caso de as forças da NATO saírem, é dizer para se matarem uns aos outros.
Eu sei que os defensores das ocupações militares dizem sempre que depois de a terem feito não há alternativa a ela. Mas quem financiou os mujahedins, de onde vêem os talibans, foram os EUA. Os nossos bons democratas norte-americanos financiaram o terrorismo jihadista no Afeganistão, que derrotou os russos e depois disso se degladiou em guerras civis das quais resultaram a Al-Qaeda, entre outras coisas. Tudo isso tem a marca do dinheiro e das armas norte-americanas. Que depois desta operação não tenham vergonha e ainda venham dizer, como dizem os responsáveis norte-americanos, que não há qualquer alternativa possível à ocupação que fizeram... Sempre houve alternativas e sempre ficou a situação pior.
Um “bando de malfeitores” no BCP e no BPN
Rejeitou liminarmente a hipótese de uma eventual coligação com o PS, caso este vença as eleições sem maioria absoluta. Mas o BE estaria disponível, perante um governo minoritário do PS, para aprovar, no limite, um orçamento que evitasse a queda do Executivo?
Não fazemos política por calculismo ou por arranjos em relação aos governos. Temos um compromisso com os eleitores, candidatamo-nos com ele e procuramos maioria para todas as propostas que apresentamos. Já o conseguimos: liderámos um processo na preparação do referendo sobre o aborto que teve uma maioria esmagadora no país e lançámos outras questões, como a procriação medicamente assistida. Em todas as questões procuramos maioria e um diálogo político que permita decidir sobre os assuntos que estão em cima da mesa. Portanto, votaremos sempre todas as propostas que contribuam para esse grande combate pela igualdade e pela resposta capacitada à crise económica. O que não faremos é favores a troco de qualquer vantagem política. Porque isso é o que faz o CDS, foi o que fez Daniel Campelo, isso é a forma da degradação da política. Portugal precisa de uma política diferente.
A política orçamental tem de responder à crise. Olho para esta crise e para o que o Governo fez: orçamentou dois mil milhões de euros para soluções de recurso e de emergência para a economia, mas no princípio deste Verão tinha executado 120 milhões de euros. No mesmo período as indemnizações de oito accionistas do BCP, que foram corridos do banco por terem falsificado as contas, eram de 128 milhões de euros – um problema de ética na economia, como diz o Presidente da República.
É um problema de ética, mas estas indemnizações não dependeram do Governo.
Dependeram do BCP, mas isso mostra onde estão os pesos e as medidas na economia.
O seu discurso sobre a banca e sobre os banqueiros é generalizador. Designa os banqueiros como um bando de malfeitores. Com as expectativas do BE a médio/longo prazo não teme que o seu discurso possa condicionar futuras relações com uma força económica e social importante no país?
O pressuposto não é exacto. Não generalizo porque acho que a força do meu argumento é o exemplo concreto. Não há nenhuma generalização. Falo do BCP porque o conheço muito bem. Estive meses na comissão de inquérito do BCP, conheço todos os documentos sobre o banco e ouvi os depoimentos de Goes Ferreira, Paulo Teixeira Pinto e Jardim Gonçalves. Posso dizer tostão a tostão quanto é que eles levaram a mais e quanto é que o banco perdeu nas contas que já estão disponíveis.
Fala também no BPN. São todos malfeitores?
Nesses dois casos foram um bando de malfeitores. Foram mesmo. Quando Dias Loureiro vai com [Abdul Rahman] El-Assir, que é um traficante de armas libanês, perseguido pela justiça espanhola, fazer um negócio em Porto Rico, do qual resultam 38 milhões de euros que desaparecem, isso evidentemente é uma malfeitoria. E têm de responder por isso.
A democracia é uma questão de transparência na economia. Há alguma razão para que eu cale aquilo que hoje sabemos mas que nunca se soube até agora em Portugal? Porque escândalos destes houve muitos, mas estes são os primeiros em que sabemos exactamente o que fez cada um dos protagonistas. Porque houve uma boa comissão de inquérito sobre o BPN, houve uma comissão de inquérito prejudicada sobre o BCP (mas nos temos as contas do BCP, tenho um relatório sobre todas as operações na Baía de Luanda, está tudo explicado). E as pessoas têm ou não direito de saber? Tenho obrigação de o dizer. Porque só assim as pessoas podem olhar para a realidade da economia e perceber coisas que nós nunca soubemos que existiam.
Houve o caso do Banco Espírito Santo em relação aos dinheiros do Pinochet: o Senado norte-americano fez uma investigação em 2005 que não foi publicada em Portugal. Há alguma razão para que em democracia eu não me deva referir aos detalhes dessa investigação?
Mas no caso de Angola, por exemplo, esses bancos tiveram uma atitude diferente. Porque é que nunca se ouve da sua parte uma declaração a dizer 'olha aqui está um banqueiro a fazer bem'?
Eu conheço o essencial sobre Angola: a facilidade com que o Governo português estimula a presença da fortuna da corrupção nos grandes negócios em Portugal, que são 10 por cento do BCP, uma parte do BPI e uma parte importante da Galp.
Creio que o BPI se comportou bem em relação a essas decisões sobre Angola porque não aceitou pressões que eram inaceitáveis. Nunca escondi essa minha opinião. Agora o que está em causa nos negócios sobre Angola não é propriamente a capacidade de andar a avaliar cada um deles. É perceber, e é disso que eu tenho obrigação de falar, aquilo que eu acho que prejudica o interesse económico e prejudica a verdade na economia.
A Galp tem negócios com o Brasil, que não levantam grandes problemas, com a Venezuela e com Angola. A Galp não devia fazer negócios com estes dois últimos países?
Não direi isso. Acho que deve haver relações económicas com Angola. Devemos ter uma posição clara sobre questões que têm a ver com a liberdade de imprensa, quando os jornalistas portugueses são impedidos de entrar em Angola ou há jornalistas angolanos que são presos.
Acho que Portugal deve ter relações económicas com Angola. Não deve de forma nenhuma favorecer esta lógica da acumulação a partir da corrupção.
“CSI devia estender-se aos dois milhões de pobres do país”
Uma parte do eleitorado do BE gostaria de ver o partido a ter uma maior participação no poder, a colaborar e a fazer compromissos. Houve o episódio da câmara de Lisboa, com a candidatura independente deJosé Sá Fernandes. Não sente que esse eleitorado do BE espera mais do que aquilo que ele está a oferecer?
Espero bem que o eleitorado do Bloco seja muito exigente em relação ao BE. A política faz-se com palavras claras, com intervenção e com compromissos com os eleitores. E é isso que nós fazemos. No nosso programa dizemos que não há nenhuma razão para que se sacrifique ou se troque o sentido da resposta às pessoas que esse programa dá por qualquer vantagem política de curto prazo, que se traduza inevitavelmente numa derrota das políticas sociais necessárias.
Ao PS nós não os convencemos, só os podemos vencer. Não os vamos convencer nunca. O engenheiro José Sócrates é inconvencível de uma política sobre a segurança social que seja sustentável e que responda às pessoas. E ele acha mesmo que é preciso reduzir as pensões futuras. É inconvencível de uma política sobre a educação, é inconvencível de uma visão sobre o trabalho.
É possível não reduzir as pensões futuras quando temos mais idosos do que jovens?
Temos dois milhões de pobres que são idosos. O nosso problema é que existe uma geração sacrificada que está a acabar lentamente, e acabar na indignidade: os agricultores não podiam descontar no tempo do fascismo e não têm descontos formados; com as domésticas acontecia o mesmo. São 120 euros as pensões de sobrevivência e as pensões sociais. E depois, quando avançam com o Complemento Solidário para Idosos, que é uma boa medida, obrigam as pessoas a apresentar as contas dos filhos, mesmo que estes estejam emigrados e os pais não saibam onde é que eles estão. Há 200 mil pessoas que beneficiaram de uma boa medida que devia estender-se aos dois milhões de pobres, ou a uma boa parte deles que são os idosos. Esse grande esforço é despesa, mas é uma despesa transitória.
Todos querem que as pensões mais baixas cresçam mais depressa do que as pensões mais altas. Mas no futuro vamos ter menos pensões mais baixas porque as pessoas vêm de um sistema não contributivo; e vamos ter pensões mais altas elas forem calculadas de acordo com o que as pessoas contribuíram ao longo da vida. Mas há mais pessoas acima dos 65 anos do que existem abaixo dos 15...
É preciso encontrar formas diversificadas de financiamento desse sistema a partir de uma sociedade mais moderna, que produza mais valor acrescentado. Nessa geração os grandes ganhos das economias modernas são ganhos de produtividade intensíssimos. Ou seja, há muito mais valor acrescentado por unidade de produção. Essa é uma grande decisão democrática: se se permite que haja uma diferenciação teremos uma democracia da desigualdade no acesso às condições fundamentais.
Os modelos que temos até agora para dar resposta a isso fracassaram: é o modelo da privatização. Foi experimentado no Chile, onde a ditadura de Pinochet privatizou todo o sistema de segurança social. É o primeiro caso no mundo que chegou à maturidade: essas pessoas já estão hoje na reforma. O sistema teve de ser renacionalizado e pago em dívida pública porque as pensões eram menos de metade daquilo que as pessoas tinham adquirido em seus direitos. O sistema de privatização foi um fracasso. Como aliás se vê nos fundos de investimento e nos fundos de pensões privados em Portugal, que jogam a partir de capitalização da Bolsa.
Falhando esse sistema, eu defendo um sistema público de repartição intergeracional, que tenha várias formas de financiamento, não as formas tradicionais.
O BE defende em concreto a reforma ao fim de 40 anos de trabalho e descontos. Temos uma esperança de vida que se aproxima dos 80 anos. Na prática, o rendimento do tempo de trabalho, entre o que se paga aos descendentes e o que se paga aos ascendentes por via das transferências, é metade.
40 anos é uma vida de trabalho. Não tem sentido pensar em aumentar sempre a idade obrigatória da reforma. Acho que é possível ter reformas de envelhecimento activo, que permitem às pessoas a opção de continuar a trabalhar depois de 40 anos de trabalho, com benefícios de valorização da sua pensão, diversificando as formas de integração na vida social. Nesse caso, essas pessoas também descontam.
Mas o princípio de que quem descontou 40 anos pode ter acesso à reforma em função dos valores que adquiriu do seu desconto é um bom princípio. É absurdo que na idade do desenvolvimento máximo da tecnologia e da capacidade de produção humana se tenha que aumentar a idade da reforma tendencialmente até à idade da morte. Quando foi instituído os 65 anos como idade de referência as pessoas morriam aos 65 anos. Não havia reforma. E não tem nenhum sentido, quando temos duas gerações com muito mais capacidade de produção, que não utilizemos uma parte desse produto, dessa riqueza, para as pessoas. É um grande esforço, sim senhor, mas é uma opção da democracia.
Esse esforço coincide com outro grande esforço, na área da saúde, que tende a ser a próxima bomba relógio das despesas públicas. Gastando esse dinheiro aí (no final da vida gasta-se mais na saúde), o resto fica para quê?
A despesa pública é de 45 por cento. Na média dos países da UE é superior. Portanto a despesa pública é cerca de metade do Produto Interno Bruto. Devemos discutir intensamente como é que ela é utilizada. Isso é uma opção da democracia. É total desconfiança na democracia achar que as pessoas não devem tomar parte ou não são capazes de tomar decisões tão importantes como saber se os recursos que são os seus contributos devem ou não ser utilizados para a melhoria de um serviço público que seja universal, de saúde ou de segurança social. Que têm custos acrescidos ao longo do tempo, é verdade. Mas é assim que devemos decidir. E devemos decidir se é para isso que utilizamos uma parte dos recursos que temos ou se, pelo contrário, queremos uma sociedade mais desigual e se o enriquecimento dos beneficiários do regime económico é mais vantajoso do ponto de vista democrático.
Se fizermos a opção da democracia mais igualitária temos um país que vive melhor consigo, temos uma situação de confrontação e de vida social totalmente distinta da selvática, em que os ricos se refugiam em condomínios protegidos por exércitos privados de desesperados que não têm acesso à saúde. Essa é a opção que temos de tomar. Mas também digo que é preciso poupar, que é preciso fazer custos poupados. E o Governo não os faz.
Dou um exemplo, na área da saúde: vamos gastar mais saúde? Vamos. Temos de poupar mais na saúde? Temos de poupar. O Governo deu três hospitais a consórcios privados para a gestão até 2040: dois deles, o de Vila Franca de Xira e o de Braga, vão ser entregues ao Grupo Mello, que foi corrido do Hospital Amadora-Sintra porque as contas não batiam certo, porque era incompetente, e logo a seguir deram-lhes estes hospitais por trinta anos.
Em relação ao Amadora-Sintra o resultado do inquérito foi que aquilo que o Estado gastava a tentar controlar as contas do hospital não compensava. Era uma soma nula.
Quer dizer que as contas não batem certo, que não vale a pena, não tem sentido. E a Inpecção Geral das Finanças fez um relatório que identificou 75 milhões de euros a mais gastos em custos excessivos porque os doentes eram contabilizados várias vezes quando passavam de serviço para serviço e o hospital cobrava várias vezes por cada um deles. Conheço isso muito bem.
O primeiro-ministro foi ao Parlamento dizer que estava a tomar uma medida porque havia desperdício e gastos errados no Amadora-Sintra, tirando-o ao Grupo Mello. Logo a seguir deu dois hospitais ao Grupo Mello. Portanto ficamos conversados quanto à contenção de custos. Porque se o Grupo Mello vai gerir os hospitais durante 30 anos vai pagar aos accionistas e o que estes recebem são 15 a 16 por cento. Além dos custos do hospital a remuneração do capital é 15 ou 16 por cento. Se a gestão do investimento fosse feita em dívida pública era dois por cento. Lamento muito mas é uma perda de custos.
O Bloco não será governo “sozinho”
Além da saída de Portugal da NATO, o programa do BE defende ainda o desarmamento universal e a desmilitarização das Forças Armadas. Trata-se de uma declaração de princípios. Não teme que estas tomadas de posição levem uma parte do eleitorado a nunca encarar o BE como uma real alternativa de Governo, mas sempre como uma força de contrapoder?
Esse resumo não é exacto. Propomos um conceito estratégico de defesa. Não é a desmilitarização. É preciso que haja capacidade militar, defendemo-la, mas achamos que ela deve ser adequada às necessidades do país.
Como é que vê o funcionamento das Forças Armadas se rejeita um sistema de alianças?
Devem ter sistemas de alianças e de cooperação militar. Mas propomos regras sobre isso e acho que Portugal não deve ter cooperação militar com Estados ou com países que usam sistemas de terror na sua intervenção militar, com países que violam a convenção internacional sobre o uso do fósforo branco, por exemplo, e outras armas de destruição massiva.
Mas o desarmamento universal é exequível?
Não encontra desarmamento universal no nosso programa. O que diz é que tem de haver redução das capacidades militares. Os EUA e a Rússia não estão a negociar a destruição de uma parte dos seus arsenais nucleares? Não há nenhuma razão para que essa negociação não se estenda a armas potencialmente genocidas. Há mais segurança se houver controlo. Se o Paquistão, a Coreia do Norte ou o Irão tiverem armas nucleares há mais insegurança. É claro que a extensão do armamentismo e exterminismo militar é insegurança.
Sobre a questão do contrapoder: o BE é um partido do protesto, da luta social e por isso é que é uma proposta de Governo.
A luta social compreende-se, o protesto nem tanto, uma vez que querem ser Governo. Um antigo membro do BE, Miguel Vale de Almeida, escreveu recentemente que ainda não viu “sair o Bloco da lógica do ‘quanto mais dificuldades e tensões sociais melhor’”. O que ele estava a dizer é que o BE ainda não se tornou num partido capaz de fazer os compromissos necessários para ser Governo.
Está a falar-me de uma pessoa que, com toda a liberdade, decidiu ir para o PS, como candidato. Tem uma visão diferente da política daquela que tem o BE.
Para um partido de protesto ter sucesso é conveniente que existam tensões sociais e dificuldades...
As tensões sociais estão à nossa volta. Não inventámos uma única delas. Quando queremos defender o emprego na Auto-Europa é porque há uma crise geral do sistema industrial e uma crise da procura que leva a riscos imensos de trabalhadores que estão submetidos ao Código do Trabalho. As tensões são estas. Nós respondemos às tensões sociais. Um país que tem dois milhões de pobres não tem fracturas sociais? Não há desespero? 400 mil trabalhadores temporários?
É claro que um partido protesta perante a fractura social. Só pode protestar em coerência se tiver uma alternativa. Nós queremos ser medidos, como o Governo é medido, pela capacidade de governar, de dar propostas que sejam executáveis, que façam maioria no país. Se o BE tem crescido é porque os eleitores o vêem como uma proposta coerente.
O BE, sozinho, pode um dia ser governo? Acham isso uma hipótese real?
Os eleitores vão decidir. Queremos fazer parte de uma esquerda que governe.
Então não estarão sozinhos.
Não, não seremos sozinhos.
Essa esquerda inclui o PCP?
Essa esquerda inclui quem, na altura, fizer parte de uma grande confluência por um programa político que responda ao país.
O exemplo da Auto-Europa é propício para se saber até onde podem ser feitos compromissos. A figura principal da Comissão de Trabalhadores é Antonio Chora, um dirigente do BE, que fez um compromisso com a administração só possível porque entretanto houve um novo Código do Trabalho. Nessa altura houve uma tensão na fábrica que foi interpretada comouma guerra entre bloquistas e comunistas. Lendo o programa do BE sobre o Código do Trabalho não se percebe como é que aquele acordo foi possível.
Nada nessa história bate certo, nada. O acordo que vigora foi feito antes do Código que está regulamentado. É contrário ao Código Laboral. As regras de negociação sobre a utilização dos horários de trabalho e os dias de não trabalho que são pagos têm um aumento de ordenados; têm a inclusão obrigatória dos trabalhadores com contrato a prazo como trabalhadores efectivos; têm regras que são extraordinariamente vantajosas para os trabalhadores.
Neste último acordo que foi rejeitado pelos trabalhadores houve de facto uma tensão grande. Mas os trabalhadores decidem e a Comissão de Trabalhadores aceitou a decisão do plenário, e ganharam agora a redução do lay-off. Neste contexto houve sempre posições muito diferentes. Os dois sindicalistas que mais se destacaram nos últimos anos em Portugal – Carvalho da Silva e António Chora – estavam de acordo nestas questões. Em termos concretos da luta a Comissão de Trabalhadores da Auto-Europa ganhou.
Ganhou porque negociou e teve de fazer compromissos.No programa do BE, para além da defesa da revogação do Código do Trabalho, existem regras que talvez nem os Códigos de 1975 tiveram. As vossas propostas tornam mais rígidas as negociações.
A negociação existe sempre. A negociação do Acordo de Empresa ou do Contrato Colectivo é sempre por negociação e o acordo é assinado por duas partes.
Há empresas que fazem trabalhos por turnos como se fosse trabalho normal. Há call-centers onde as pessoas trabalham 8 horas seguidas e ganham 500 euros; são 3,5 euros por hora. Isso é que é a liberalização do trabalho. A flexibilização do trabalho não é a qualificação do trabalho. Eu sei que a doutrina económica liberal nos diz que quando há desemprego há sempre uma solução: baixar os salários. E é isso que o Governo está a fazer: ao reduzir a remuneração das horas extraordinárias está a baixar os salários.
Os empresários têm em média a quarta classe e os trabalhadores são pessoas que foram sacrificadas toda a vida. É claro que precisamos de trabalho mais qualificado, portanto mais bem pago.
Quem é que cria esse trabalho mais qualificado?
A economia.
Mas as propostas do vosso programa não são no sentido de apoiar empresas em risco.
Veja a nossa política sobre o crédito: é criar credito que facilite o funcionamento da economia, nomeadamente as que estão em risco e têm capacidades tecnológicas.
No âmbito da carga fiscal não ajudam as empresas, nem há Taxa Social Única.
A Taxa Social Única é uma invenção da dr.ª Manuela Ferreira Leite para reduzir o financiamento da segurança social e facilitar o seu projecto de privatização da segurança social. O dr. Paulo Portas acha que pode resolver os problemas da pobreza no país tirando dinheiro aos mais pobres.
São feitas promessas às empresas, de que lhes vão reduzir os custos em impostos e, portanto, reduzir a receita do Estado, quando há 30 mil milhões de euros em Portugal que não pagam imposto. Em Portugal perde-se em imposto todos os anos mais do que todo défice que temos este ano. Do que precisamos é de mais clareza fiscal. Se existir um esforço fiscal mais justo, segundo as regras, todos beneficiamos.
Mas a carga fiscal global não pode crescer mais do que está.
Não fizemos nenhuma proposta para crescer a carga fiscal. Onde faz falta um apoio do Estado à economia é onde se pode fazer a diferença na criação de valor acrescentado.
Onde é que se vai buscar esse valor acrescentado?
Temos medidas de urgência a tomar agora e a nossa proposta é no pelouro da reabilitação urbana para que nas cidades grandes e médias se possa fazer uma reabilitação de casas e reduzir o peso do valor do aluguer da casa, devolver aos proprietários pobres condições para reabilitar as casas. Uma boa experiência que foi feita em França e noutros países europeus.
Na reabilitação criam-se postos de trabalho não muito qualificados...
E transitórios. É uma medida anti-crise.
A disputa bloquista é com o PS e o PSD
Existe ou não uma marcação partido a partido entre o PCP e o BE, tendo a consciência de que no dia em que se aproximarem do Governo perdem uma parte do eleitorado?
Eu não respondo pelo PCP. Não temos qualquer competição com o PCP. Isso seria total falta de visão. A nossa competição é com o PS e com o PSD. Temos diferenças de identidade, de projecto, de estratégia, de programa.
Os eleitores do BE são sobretudo jovens e os eleitores do PCP são mais idosos. Mas no país inteiro, onde o BE é a terceira força (no Algarve, todos os distritos a Norte do Tejo) o que o BE representa é o desafio político, que espero que seja o mais profundo, ao PS e também ao PSD. Esse é o nosso objectivo, a nossa disputa é essa e não nos apoucamos com outras disputas políticas. Chegar ao Governo é conseguir uma força social que nos não temos ainda.
Se esse é o vosso posicionamento não deveriam mudar de lugar na Assembleia?
Não. É um lugar histórico que temos, a nossa representação é ali.
A extrema-esquerda.
Não, a esquerda da Assembleia.
O lugar mais èsquerda da Assembleia.
É onde estamos e onde nos sentimos bem.
Há muitas pessoas do BE, ou que foram do BE, que vieram das três forças que deram origem ao Bloco. Duas delas, o PSR e UDP, mantêm a sua identidade, têm sites na Internet. No site do PSR, por exemplo, encontra-se relações com a IV Internacional. Porque é que esse relacionamento e essa identidade não são mais claras para o eleitorado?
No BE há uma grande diversidade de opiniões. E há sensibilidades e correntes históricas que fazem parte de trajectórias políticas das pessoas. Eu represento o BE. Falo pelo BE, não falo por nenhuma sensibilidade. Porque o BE é, como tem sido e como os eleitores o conhecem muito bem, uma representação política.
Mas não deixou de ter relações ao mais alto nível na IV Internacional.
Eu tenho as opiniões que tinha desde os 15 anos. O meu trabalho político todas as pessoas conhecem. Sou dirigente do BE, não faço parte de outros órgãos de direcção. Não faço parte de nenhuma outra estrutura política. O BE tem a confiança de pessoas que nunca pertenceram a outros partidos e essas pessoas têm toda a força e toda a capacidade dentro do Bloco porque determinam. Será sempre um movimento plural.
Desde os 15 anos até hoje não tem a mesma identidade na plataforma do Bloco.
São histórias diferentes. O BE tem 10 anos de actividade, responde pela sua política. Eu fui, desde novo, um socialista à esquerda.
Era um revolucionário?
Com certeza.
E hoje continua a ser um revolucionário?
Sou socialista. E sou contra o capitalismo, é verdade. É o que está escrito na plataforma do BE. O socialismo em Portugal, para nós, é um projecto contra o capitalismo. É anti-capitalista, sim senhor, com todo o gosto pelas palavras e com toda a clareza.
O PSR era o Partido Socialista Revolucionário. Foi um revolucionário. Hoje já não o é?
Eu sou o que sempre fui. Penso da mesma forma. Aprendi muito, em muitas questões. E o que aprendi, mais do que tudo, é que é preciso uma política que seja determinante e que só pode ser determinante se for muito clara. E é por isso que sobre o socialismo, ao contrário de muitos outros, no BE as coisas são tão claras que não permitem nenhuma dúvida.
O socialismo quer dizer combater a exploração e combater o capitalismo como forma de desigualdade social. Mas quer dizer também recusar os regimes de partido único ou de censura, ou de ataque à liberdade de opinião, como a China, a Coreia do Norte, a antiga União Soviética.
Qual é a tradução desse socialismo na economia?
É uma economia em que as necessidades são democraticamente estabelecidas pelo acesso público: a saúde e a educação são necessidades, são públicas.
A alimentação também é tão importante como a saúde e a educação.
Certo. Mas a alimentação é produzida de outra forma, a saúde não. Se somos desiguais perante a saúde isso quer dizer que há uma fractura irreparável no acesso às condições elementares da vida. É claro que a alimentação é suportada quando nós apoiamos os pobres.
Há um livro muito curioso do Darwin, que era visto como um protector do darwinismo social por alguns dos seus apoiantes, e que explica por que é que as sociedades humanas contrariam a selecção natural. Nós seleccionamos os processos anti-selectivos porque protegemos os pobres, apoiamos os portadores de deficiência, submetemos à competição aberta as pessoas.
O Banco Alimentar Contra a Fome é uma organização de apoio aos pobres e não é pública. Portanto não se enquadra no seu socialismo.
Enquadra-se. Há iniciativas sociais do terceitro sector, da solidariedade social, que fazem parte desse cuidar dos outros, como faz a AMI, como fazem muitos outros. Nós apreciamos esse trabalho. Ele é indispensável. Há redes sociais que a Igreja Católica tem, e que outros sectores têm, que são importantíssimos na forma de cuidar das pessoas. O que não quero é que a saúde seja espartilhada entre as condições económicas que separam dramaticamente os ricos e os pobres. A maioria dos portugueses não quer uma solução de privatização da saúde ou da segurança social.
As indemnizações nas nacionalizações são uma “questão posterior”
Voltando às nacionalizações. Em seu entender deve haver lugar para indemnizações?
Essa é uma questão posterior. A questão que está hoje na política portuguesa é saber se devemos ter o sector da energia público ou privado e se devemos privatizar, como fez José Socrates, ou se devemos desprivatizar, como nós propomos. E essa é a questão decisiva. Porque só decidindo isso é que podemos falar sobre as condições.
Está a dizer que essa é uma questão posterior e a falar para milhares de pessoas que têm acções na EDP.
Não estou a falar das acções distribuídas ao público. Estou a falar dos grandes fundos de pensões que detêm o poder accionista estratégico sobre a empresa.
Se nacionalizasse a EDP o que aconteceria a estas pessoas com acções?
Ficariam com elas. E seriam valorizadas na Bolsa.
Não seria uma empresa pública...
Uma empresa de capitais públicos pode estar na Bolsa. Porque é que não pode estar?
Então não é bem uma nacionalização.
Temos de decidir se é o Americo Amorim e o José Eduardo dos Santos que controlam a distribuição de combustíveis em Portugal. É isso que temos de decidir. Acho que é errado do ponto de vista estratégico nacional, é errado do ponto de vista económico, é errado do ponto de vista do orçamento. Perdemos dinheiro. Eu faço as contas sobre o dinheiro que perdemos do ponto de vista do orçamento. É ineficiente. Se o critério é a eficiência, e tem de ser, é ineficiente. Perdemos dinheiro.
Ainda por cima eu vejo as contas da Galp. A Galp ganhou 500 milhões de euros este ano. 100 milhões de euros foram porque manipulou os preços. Algo reconhecido, está no relatório. Chamam-lhe viscosidade dos preços. E o presidente da Autoridade da Concorrência explicou-nos, com uma candura que só lhe fica bem, que viscosidade quer dizer que quando os preços do petróleo baixam a nível internacional cá o preço baixa muito devagar; e quando os preços sobem a gasolina sobe muito depressa. Só com essa diferença de cêntimos por dia são 100 milhões de euros de lucro. As contas são estas e estamos a perder com essa opção estratégica. Uma economia mais responsável não se permite perder dessa forma.
O BE não percebeu a “dinâmica” gerada pela candidatura de Manuel Alegre
Admitiu recentemente que apoiará uma eventual candidatura de Manuel Alegre à Presidência da República. Porque é que não o fez em 2005, quando ele se candidatou como independente, sem o apoio do PS?
Não foi bem isso que eu disse. Quando ele se candidatou provou ser o candidato que tinha mais capacidade de obrigar a uma segunda volta. E acho que isso não foi percebido. O BE e muitos outros não percebemos essa dinâmica social que estava a ser gerada à volta da candidatura.
Subestimaram a candidatura e o candidato?
Não sentimos a força social que ela estava a representar. E é fundamental reconhecê-lo.
Num livro sobre a campanha de Mário Soares ele diz que falou consigo algumas vezes e que o senhor não cumpriu a sua palavra.
Ai isso ele não pode dizer. Eu não li essa parte, mas de certeza que ele não pode dizê-lo. É verdade que tentou [um acordo com o BE] e eu disse-lhe que não. Factos são factos e tenho a certeza que ele não me desmentirá. Depois disso encontrei-me várias vezes com Mãrio Soares, tenho muito gosto nisso.
Há pouco disse que afinal não assumiu apoiar uma eventual candidatura a Belém de Alegre.
Eu não posso antecipar uma decisão individual de outra pessoa. Alegre tem de dizer se é candidato ou não e até agora não o tem dito. O que eu disse foi que se houver uma candidatura como a de Manuel Alegre, que contribua para uma clarificação política e para a rejeição destas estratégias que têm conduzido à crise econõmica e à desorientação social, então certamente que ela terá uma força extraordinária.
Mesmo que seja uma candidatura apresentada e apoiada pelo PS?
Ele é que tem de escolher como aparece ou como deixa de aparecer. Mas um candidato presidencial é sempre por si próprio, é uma candidatura na independência da posição de cada um.
Nas últimas eleições presidenciais existiam dois candidatos socialistas.
Mais uma razão para pensar que Manuel Alegre é uma pessoa que afirma sempre a sua independência e a sua visão na sociedade portuguesa. Uma visão que contribua, como ele já fez em 2005, para uma clarificação sobre as grandes opções sociais em Portugal, para o combate à dívida interna, à fractura social. Desta forma, será uma candidatura que tem uma capacidade de movimentação muito importante. E as próximas eleições presidenciais eu não as subestimo. Pelo contrário, dou-lhes a maior importância porque vamos ter um Governo de maioria relativa, qualquer que ele seja, e vamos ter dificuldades sociais e económicas que vão prolongar-se nos próximos anos, com uma grande transformação política em curso. A campanha presidencial vai ser das mais clarificadoras na política portuguesa.
Entre as legislativas e as presidenciais resta somente um ano e quatro meses, sensivelmente. O horizonte das presidenciais condicionará os acordos que o BE possa fazer no Parlamento?
Não faremos acordos que não sejam sobre políticas que respondam à crise.
“Dar a Ferreira Leite e a Portas o Governo era o mesmo que pôr Dias Loureiro à frente do Banco de Portugal”
Perante um Governo minoritário do PS se surgir uma moção de censura o voto assumirá uma grande responsabilidade...
É sempre uma grande responsabilidade e o critério (diante um Governo com maioria absoluta ou sem ela) tem de ser o mesmo. Não aprovamos uma moção em função dos seus fundamentos, mas em função da vida política nacional. Não aprovámos as moções de censura do PSD e do CDS [o BE absteve-se] porque eles que queriam levar a sociedade portuguesa num caminho contrário àquele que pretendemos. Não fazemos nunca a política do quanto pior melhor. Os votos do BE nunca falham à esquerda.
Por essa lógica o BE teria, se existisse na altura, ajudado a derrubar o primeiro Governo de Cavaco Silva.
Não sou admirador do contrafactual na História. Acho que é tolice organizada em presunção intelectual. Não há nenhum direito de inventar histórias que não se passaram. Isso não me interessa. Isso é terrorismo intelectual. Se estivesse no primeiro avião que bombardeou Bagdad teria lançado a bomba ou não? Desculpe, mas isso não tem qualquer sentido.
Nós não votamos nada em que não saibamos as consequências da nossa votação. Somos um partido que representa 10 por cento do eleitorado e vai representar muito mais.
Insistimos: não pode excluir o PS. Porque não pode falar numa maioria de esquerda só com o BE e o PCP.
Excluo o PS. Não vamos fazer um acordo com o PS.
Mas fazem distinções entre o PS liderado por Sócrates e o PS com outro líder.
Não ando a fantasiar PS's.O PS é o que é e o que escolhe sempre ser.
O PS de Sócrates é então igual ao de Ferro Rodrigues.
Não, têm políticas diferentes. Mas como se percebeu Ferro Rodrigues não tinha qualquer peso do PS que fosse determinante. José Sócrates é o PS.
Ferro Rodrigues e o PS tiveram de se confrontar com o processo Casa Pia.
Ele foi abalroado por isso. Ele não tinha a liderança natural do PS que tem José Sócrates. José Sócrates é o PS profundo. É o que o Guterres tinha, é o que o Jorge Coelho tinha. Eu não discuto este e aquele PS. O que digo é que há tanta gente descontente...
Mas quando lamenta que os alegristas tenham sido excluídos das listas de candidatos às legislativas está necessariamente a fazer uma distinção.
Constato. Estou a dizer que no PS há muita gente que não quer uma política como aquela que a maioria absoluta levou a cabo. E essas pessoas são indispensáveis para uma maioria que faça governar a esquerda.
Para essa maioria que fará governar a esquerda seria compensatório que o PSD ganhasse as legislativas, tendo em conta objectivos a médio/longo prazo?
Já disse muitas vezes que não faço política de terra queimada. Quero o que melhor vá aproximando todas as políticas das respostas mais exigentes. Dar à dr.ª Manuela Ferreira Leite e ao dr. Paulo Portas o Governo era o mesmo que pôr o dr. Dias Loureiro à frente do Banco de Portugal.
Porque é que faz essa comparação entre Dias Loureiro e Manuela Ferreira Leite?
Não estou a fazer uma comparação.
Há pouco chamou-lhe criminoso.
Se é criminoso a justiça o dirá.
Mas fez dele um retrato muito pouco abonatório. É o mesmo retrato que faz de Manuela Ferreira Leite?
Não, não é. Mas o PSD é um partido dos negócios, é um partido tentacular dos negócios que foram porotagonizados pelos seus maiores. Não foram por marginais do partido. Foi a estrutura essencial da governação cavaquista que fez o negócio do BPN. Oliveira e Costa dirigia a máquina fiscal do país. São imensas responsabilidades políticas de toda a teia de interesses que se construiu na gestão económica de quem tinha o poder total no partido.
Quem o ouve até parece que quer que o PS ganhe.
O PS e o PSD não são competentes para responder à crise.
Quem é que é competente?
É a resposta do BE.
O BE está preparado para ser governo agora e para responder à crise?
Estamos preparados para essa luta. E queremos ter votos de quem achar que merecemos essa confiança. Por isso é que o BE tem crescido ao longo das eleições e os eleitores nos olham como parte dessa resposta essencial. Agora quando perguntam se é com o PS que o fazemos, digo-lhe que não. É preciso uma esquerda, um partido, uma força que seja governante para esquerda e isso exige uma reconfiguração da esquerda.
A reconfiguração do BE significa o quê?
Para haver uma esquerda de maioria é preciso uma aprendizem intensíssima sobre a política. Se temos 11 por cento nas últimas eleições, precisamos de chegar a muitas mais pessoas, de aprender mais e de ganhar mais capacidades de governação. Portanto, de mais conhecimento da vida social, mais representação social e isso será feito encontrando muitas pessoas que hoje são do PS ou que são de outras cores da esquerda.
Os encontros com Manuel Alegre foram uma primeira oportunidade falhada?
Pelo contrário, foi totalmente bem conseguida. Nunca houve o objectivo, nem nosso nem de Manuel Alegre, de fazer um partido a trouxe-mouxe. Os encontros anunciaram que não eram iniciativas para eleições de curtíssimo prazo e que eram mais profundas ainda.
Ficou a ideia de que algo foi iniciado e interrompido abruptamente.
Foi iniciado e vai continuar.
Ana Sara Brito e Helena Roseta, duas figuras importantes da candidatura presidencial de Alegre, estão hoje com Antonio Costa. Isso não é uma contrariedade?
Não. Ana Sara Brito já tinha estado ligada a Costa. No caso de Roseta, é uma opcão livre que ela tem.
E do ponto de vista daquilo que poderia ser o vosso resultado em Lisboa?
Não nos prejudica. O BE é forte nas alternativas sobre Lisboa, vamos decidir sobre políticas sociais, políticas de transportes, políticas de utilização do espaço público., reabilitação urbanística.
Nunca tentaram envolver Roseta numa eventual coligação?
Nunca tivemos nenhuma reunião com Roseta sobre essa matéria. Exprimimos a nossa disposição para ter conversas nesse sentido. Mas não houve caminho para isso. E percebo. Talvez seja um pouco cedo de mais. Mas isso não prejudica em nada os projectos futuros.
Tem noção de que há eleitores que estão em dúvida sobre se votam BE ou PSD para que Sócrates não vença as eleições?
O BE representa cada vez mais eleitorados populares. Nestes comícios que fiz falei com muitas pessoas e encontrei muitos socialistas e também gente que votava PSD. Ao disputar o eleitorado popular, o BE também responde a muitas pessoas que, no interior do país e nas zonas pobres das grandes cidades, reconheciam-se no PSD e porventura agora podem ter uma posição diferente
Público, 8 de Setembro de 2009.
Louçã: “A esquerda precisa de uma força para ter maioria e essa força não é o PS”
07.09.2009 - 23h30 José Manuel Fernandes, Maria José Oliveira
O Bloco de Esquerda não será governo sozinho. Mas o líder bloquista recusa nomear com quem fará alianças. Para já, exclui o PS da “maioria de esquerda”.
PÚBLICO – A insistência do Bloco de Esquerda (BE) na necessidade de uma maioria de esquerda dão a ideia de que o Bloco quer tomar conta do PS, ou pelo menos de uma parte dele.
Francisco Louçã – Não, o que tenho dito, e que é o centro da estratégia do BE nestas eleições e que vai ser nos próximos anos, é utilizar como critério para definir a política a necessidade de resposta à crise social e em particular à recessão económica. E isso exige uma arrumação da política, das ideias, e das alternativas. Creio que o PS fracassou na gestão política da resposta à crise. Por razões que têm que ver com o absolutismo da sua maioria, a fractura social que a sua política acentuou (com o Código do Trabalho, a desregulação da vida social e com a facilitação da vida económica, com os grandes negócios a prejudicarem os interesses da economia do país, a prejudicarem o orçamento, as contas públicas) e por isso é que me parece indispensável dizer com toda a clareza que para uma esquerda que governe, para uma esquerda de maioria, é preciso formar essa maioria.
Como é que se forma essa maioria sem o PS?
Com uma recomposição que atravesse todo o espaço da política portuguesa.
Isso implica uma cisão do PS ou uma transformação do PS.
Implica uma reconfiguração, certamente com uma clarificação contra as políticas passadistas e conservadoras que têm vindo a acentuar a crise. Já existiram diálogos, como aconteceu com Manuel Alegre. É a partir desse trabalho de diálogo que se encontrarão pessoas que fazem parte de todas as cores da política e das alternativas políticas à esquerda.
Essa reconfiguração passa também pela mudança do líder do PS?
O PS fará o que quiser. A esquerda precisa sobretudo de ter uma força para ter maioria. Essa força não é o PS.
Mas tem necessariamente de ter uma parte do PS.
Tem de ter, seguramente. Tem de ter muitas pessoas que certamente hoje se reconhecem no PS ou são críticas do PS. E de muitas outras opiniões da esquerda.
Se olharmos para a Europa encontramos um conjunto de países onde forças políticas que poderemos considerar semelhantes quer ao BE quer ao PCP acabaram por conduzir os partidos socialistas a uma situação de afastamento do poder. Isso não pode acontecer também em Portugal?
Eu vejo o contrário. Acho que se tratou do fracasso dos partidos socialistas que tinham a maioria dos governos de quase todos os países da União Europeia e que conduziram ao impasse europeu, ao Pacto de Estabilidade e Crescimento, a políticas que acentuaram a recessão e a desqualificação da política social. Essas foram as causas do fracasso. E esse fracasso exige o surgimento de alternativas e cria espaços políticos novos para reconfigurações políticas, sendo o mais importante o Die Link, na Alemanha, que nas mais recentes eleições teve entre 21 e 27 por cento em alguns dos estados mais industriais e mais populosos do país.
A política está a mudar na Europa toda, embora com configurações que são muito particulares. Para mim é sempre inexplicável como é que um país de cultura como a Itália pode ter um senhor como Berlusconi a federar a direita italiana.
Porque a esquerda estava estilhaçada.
É certo. E porque o último governo de grande coligação à esquerda foi uma catástrofe do ponto de vista político e social. Efectuou políticas que avançaram mais na privatização da segurança social do que o que tinha jamais acontecido até então. Perdeu-se a sua própria base. Se a esquerda governa atacando a sua base social em vez de criar uma grande maioria para políticas sociais de combate pela igualdade, então naturalmente está perdida. E isso é o que leva ao fracasso do Governo de José Sócrates.
Sócrates teve a maioria absoluta, teve todas as condições para governar. Atacou os professores e hoje diz que quer ser mais delicado, ao mesmo tempo a sua ministra da Educação diz que fez uma guerra com os professores. Ora, não há guerras delicadas. O que José Sócrates fez, juntamente com Maria de Lurdes Rodrigues, foi uma guerra social para desqualificar a educação em nome do autoritarismo de Estado. E isso depois traduz-se nos resultados eleitorais.
“Somos mais responsáveis do ponto de vista europeu do que Sócrates”
Há vários pontos no programa do BE que o colocam, no limite, fora da União Europeia (UE). As nacionalizações das telecomunicações e da energia vão contra as regras do mercado aberto europeu.
Nas telecomunicações há duas empresas que dominam o país. No mercado de energia há uma empresa que domina o mercado essencial e há quatro empresas na distribuição dos combustíveis. Falar de mercado é risível. Além disso, a UE nunca procurou ter mercados. O que procura ter é oligopólios bem organizados e quer proteger a rentabilidade de empresas privadas através de rendas que o Estado lhe garante.
Veja-se aquilo que aconteceu na Galp, para dar um exemplo concreto: há uma renda que é paga a Américo Amorim e a José Eduardo dos Santos, que compraram por 1700 milhões de euros um terço de uma empresa que vale 10 mil milhões. Ou seja, só na compra já duplicaram o seu investimento. E em cinco anos de dividendos vão pagar aquilo que lhes custou a empresa.
É claro que na UE há uma política liberal que procura garantir antiliberalmente que grandes consórcios possam ter o beneficio da utilização desses bens públicos. Nós discordamos disso, mas somos europeus. Não estamos fora da UE. Pelo contrário, somos mais responsáveis do ponto de vista europeu do que José Sócrates.
Um outro ponto que não se enquadra no projecto europeu é a saída de Portugal da NATO e a extinção da NATO.
A NATO foi criada depois da guerra, no contexto da configuração da Guerra Fria, para defender o Atlântico Norte e a aliança dos EUA com os principais países europeus contra o Pacto de Varsóvia. Hoje em dia, a NATO faz intervenções militares e redefiniu o seu projecto estratégico em qualquer localização do mundo, como é o caso da operação no Afeganistão. O BE entende que não é a NATO que deve ser a força de contenção ou de prevenção ou de intervenção em conflitos militares. Isso deve derivar de uma ordem internacional que não dependa de uma estrutura hierárquica determinada pelos EUA.
É o país com mais meios militares.
Os EUA investem em tecnologia militar mais do dobro do que investe o mundo inteiro. Dominam por completo a NATO.
Nessa lógica os EUA dominariam qualquer outro organismo.
Um organismo multilateral é um organismo diferente daquele que é a NATO. Bem podem dizer que há problemas de defesa. Há, sim senhor. Mas o problema de defesa que agora estamos a viver é o problema do Afeganistão. No Afeganistão os soldados portugueses sofrem a vergonha e a humilhação de defender um governo de narcotraficantes. Na Comissão de Defesa da Assembleia da República recebemos os comandos militares portugueses, sempre à porta fechada. Mas eles dizem-nos sempre, com toda a transparência, sem hesitarem nas palavras, que o Karzai e toda a sua equipa são a cabeça da maior produção de heroína no mundo.
A ONU calcula que 90 por cento da produção de heroína no mundo está no Afeganistão, uma parte pelos talibans outra parte pelos senhores da guerra, representados por Karzai. Não há nenhuma razão de paz, nenhum projecto de contenção do terrorismo, que esteja em causa na ocupação militar do Afeganistão. Porque a intervenção na zona, no Afeganistão e no Paquistão, nunca se fará com uma guerra em que os soldados são derrotados e se precipita o prolongamento desta ocupação militar. Há uma razão política que é vergonhosa.
A alternativa, no caso de as forças da NATO saírem, é dizer para se matarem uns aos outros.
Eu sei que os defensores das ocupações militares dizem sempre que depois de a terem feito não há alternativa a ela. Mas quem financiou os mujahedins, de onde vêem os talibans, foram os EUA. Os nossos bons democratas norte-americanos financiaram o terrorismo jihadista no Afeganistão, que derrotou os russos e depois disso se degladiou em guerras civis das quais resultaram a Al-Qaeda, entre outras coisas. Tudo isso tem a marca do dinheiro e das armas norte-americanas. Que depois desta operação não tenham vergonha e ainda venham dizer, como dizem os responsáveis norte-americanos, que não há qualquer alternativa possível à ocupação que fizeram... Sempre houve alternativas e sempre ficou a situação pior.
Um “bando de malfeitores” no BCP e no BPN
Rejeitou liminarmente a hipótese de uma eventual coligação com o PS, caso este vença as eleições sem maioria absoluta. Mas o BE estaria disponível, perante um governo minoritário do PS, para aprovar, no limite, um orçamento que evitasse a queda do Executivo?
Não fazemos política por calculismo ou por arranjos em relação aos governos. Temos um compromisso com os eleitores, candidatamo-nos com ele e procuramos maioria para todas as propostas que apresentamos. Já o conseguimos: liderámos um processo na preparação do referendo sobre o aborto que teve uma maioria esmagadora no país e lançámos outras questões, como a procriação medicamente assistida. Em todas as questões procuramos maioria e um diálogo político que permita decidir sobre os assuntos que estão em cima da mesa. Portanto, votaremos sempre todas as propostas que contribuam para esse grande combate pela igualdade e pela resposta capacitada à crise económica. O que não faremos é favores a troco de qualquer vantagem política. Porque isso é o que faz o CDS, foi o que fez Daniel Campelo, isso é a forma da degradação da política. Portugal precisa de uma política diferente.
A política orçamental tem de responder à crise. Olho para esta crise e para o que o Governo fez: orçamentou dois mil milhões de euros para soluções de recurso e de emergência para a economia, mas no princípio deste Verão tinha executado 120 milhões de euros. No mesmo período as indemnizações de oito accionistas do BCP, que foram corridos do banco por terem falsificado as contas, eram de 128 milhões de euros – um problema de ética na economia, como diz o Presidente da República.
É um problema de ética, mas estas indemnizações não dependeram do Governo.
Dependeram do BCP, mas isso mostra onde estão os pesos e as medidas na economia.
O seu discurso sobre a banca e sobre os banqueiros é generalizador. Designa os banqueiros como um bando de malfeitores. Com as expectativas do BE a médio/longo prazo não teme que o seu discurso possa condicionar futuras relações com uma força económica e social importante no país?
O pressuposto não é exacto. Não generalizo porque acho que a força do meu argumento é o exemplo concreto. Não há nenhuma generalização. Falo do BCP porque o conheço muito bem. Estive meses na comissão de inquérito do BCP, conheço todos os documentos sobre o banco e ouvi os depoimentos de Goes Ferreira, Paulo Teixeira Pinto e Jardim Gonçalves. Posso dizer tostão a tostão quanto é que eles levaram a mais e quanto é que o banco perdeu nas contas que já estão disponíveis.
Fala também no BPN. São todos malfeitores?
Nesses dois casos foram um bando de malfeitores. Foram mesmo. Quando Dias Loureiro vai com [Abdul Rahman] El-Assir, que é um traficante de armas libanês, perseguido pela justiça espanhola, fazer um negócio em Porto Rico, do qual resultam 38 milhões de euros que desaparecem, isso evidentemente é uma malfeitoria. E têm de responder por isso.
A democracia é uma questão de transparência na economia. Há alguma razão para que eu cale aquilo que hoje sabemos mas que nunca se soube até agora em Portugal? Porque escândalos destes houve muitos, mas estes são os primeiros em que sabemos exactamente o que fez cada um dos protagonistas. Porque houve uma boa comissão de inquérito sobre o BPN, houve uma comissão de inquérito prejudicada sobre o BCP (mas nos temos as contas do BCP, tenho um relatório sobre todas as operações na Baía de Luanda, está tudo explicado). E as pessoas têm ou não direito de saber? Tenho obrigação de o dizer. Porque só assim as pessoas podem olhar para a realidade da economia e perceber coisas que nós nunca soubemos que existiam.
Houve o caso do Banco Espírito Santo em relação aos dinheiros do Pinochet: o Senado norte-americano fez uma investigação em 2005 que não foi publicada em Portugal. Há alguma razão para que em democracia eu não me deva referir aos detalhes dessa investigação?
Mas no caso de Angola, por exemplo, esses bancos tiveram uma atitude diferente. Porque é que nunca se ouve da sua parte uma declaração a dizer 'olha aqui está um banqueiro a fazer bem'?
Eu conheço o essencial sobre Angola: a facilidade com que o Governo português estimula a presença da fortuna da corrupção nos grandes negócios em Portugal, que são 10 por cento do BCP, uma parte do BPI e uma parte importante da Galp.
Creio que o BPI se comportou bem em relação a essas decisões sobre Angola porque não aceitou pressões que eram inaceitáveis. Nunca escondi essa minha opinião. Agora o que está em causa nos negócios sobre Angola não é propriamente a capacidade de andar a avaliar cada um deles. É perceber, e é disso que eu tenho obrigação de falar, aquilo que eu acho que prejudica o interesse económico e prejudica a verdade na economia.
A Galp tem negócios com o Brasil, que não levantam grandes problemas, com a Venezuela e com Angola. A Galp não devia fazer negócios com estes dois últimos países?
Não direi isso. Acho que deve haver relações económicas com Angola. Devemos ter uma posição clara sobre questões que têm a ver com a liberdade de imprensa, quando os jornalistas portugueses são impedidos de entrar em Angola ou há jornalistas angolanos que são presos.
Acho que Portugal deve ter relações económicas com Angola. Não deve de forma nenhuma favorecer esta lógica da acumulação a partir da corrupção.
“CSI devia estender-se aos dois milhões de pobres do país”
Uma parte do eleitorado do BE gostaria de ver o partido a ter uma maior participação no poder, a colaborar e a fazer compromissos. Houve o episódio da câmara de Lisboa, com a candidatura independente deJosé Sá Fernandes. Não sente que esse eleitorado do BE espera mais do que aquilo que ele está a oferecer?
Espero bem que o eleitorado do Bloco seja muito exigente em relação ao BE. A política faz-se com palavras claras, com intervenção e com compromissos com os eleitores. E é isso que nós fazemos. No nosso programa dizemos que não há nenhuma razão para que se sacrifique ou se troque o sentido da resposta às pessoas que esse programa dá por qualquer vantagem política de curto prazo, que se traduza inevitavelmente numa derrota das políticas sociais necessárias.
Ao PS nós não os convencemos, só os podemos vencer. Não os vamos convencer nunca. O engenheiro José Sócrates é inconvencível de uma política sobre a segurança social que seja sustentável e que responda às pessoas. E ele acha mesmo que é preciso reduzir as pensões futuras. É inconvencível de uma política sobre a educação, é inconvencível de uma visão sobre o trabalho.
É possível não reduzir as pensões futuras quando temos mais idosos do que jovens?
Temos dois milhões de pobres que são idosos. O nosso problema é que existe uma geração sacrificada que está a acabar lentamente, e acabar na indignidade: os agricultores não podiam descontar no tempo do fascismo e não têm descontos formados; com as domésticas acontecia o mesmo. São 120 euros as pensões de sobrevivência e as pensões sociais. E depois, quando avançam com o Complemento Solidário para Idosos, que é uma boa medida, obrigam as pessoas a apresentar as contas dos filhos, mesmo que estes estejam emigrados e os pais não saibam onde é que eles estão. Há 200 mil pessoas que beneficiaram de uma boa medida que devia estender-se aos dois milhões de pobres, ou a uma boa parte deles que são os idosos. Esse grande esforço é despesa, mas é uma despesa transitória.
Todos querem que as pensões mais baixas cresçam mais depressa do que as pensões mais altas. Mas no futuro vamos ter menos pensões mais baixas porque as pessoas vêm de um sistema não contributivo; e vamos ter pensões mais altas elas forem calculadas de acordo com o que as pessoas contribuíram ao longo da vida. Mas há mais pessoas acima dos 65 anos do que existem abaixo dos 15...
É preciso encontrar formas diversificadas de financiamento desse sistema a partir de uma sociedade mais moderna, que produza mais valor acrescentado. Nessa geração os grandes ganhos das economias modernas são ganhos de produtividade intensíssimos. Ou seja, há muito mais valor acrescentado por unidade de produção. Essa é uma grande decisão democrática: se se permite que haja uma diferenciação teremos uma democracia da desigualdade no acesso às condições fundamentais.
Os modelos que temos até agora para dar resposta a isso fracassaram: é o modelo da privatização. Foi experimentado no Chile, onde a ditadura de Pinochet privatizou todo o sistema de segurança social. É o primeiro caso no mundo que chegou à maturidade: essas pessoas já estão hoje na reforma. O sistema teve de ser renacionalizado e pago em dívida pública porque as pensões eram menos de metade daquilo que as pessoas tinham adquirido em seus direitos. O sistema de privatização foi um fracasso. Como aliás se vê nos fundos de investimento e nos fundos de pensões privados em Portugal, que jogam a partir de capitalização da Bolsa.
Falhando esse sistema, eu defendo um sistema público de repartição intergeracional, que tenha várias formas de financiamento, não as formas tradicionais.
O BE defende em concreto a reforma ao fim de 40 anos de trabalho e descontos. Temos uma esperança de vida que se aproxima dos 80 anos. Na prática, o rendimento do tempo de trabalho, entre o que se paga aos descendentes e o que se paga aos ascendentes por via das transferências, é metade.
40 anos é uma vida de trabalho. Não tem sentido pensar em aumentar sempre a idade obrigatória da reforma. Acho que é possível ter reformas de envelhecimento activo, que permitem às pessoas a opção de continuar a trabalhar depois de 40 anos de trabalho, com benefícios de valorização da sua pensão, diversificando as formas de integração na vida social. Nesse caso, essas pessoas também descontam.
Mas o princípio de que quem descontou 40 anos pode ter acesso à reforma em função dos valores que adquiriu do seu desconto é um bom princípio. É absurdo que na idade do desenvolvimento máximo da tecnologia e da capacidade de produção humana se tenha que aumentar a idade da reforma tendencialmente até à idade da morte. Quando foi instituído os 65 anos como idade de referência as pessoas morriam aos 65 anos. Não havia reforma. E não tem nenhum sentido, quando temos duas gerações com muito mais capacidade de produção, que não utilizemos uma parte desse produto, dessa riqueza, para as pessoas. É um grande esforço, sim senhor, mas é uma opção da democracia.
Esse esforço coincide com outro grande esforço, na área da saúde, que tende a ser a próxima bomba relógio das despesas públicas. Gastando esse dinheiro aí (no final da vida gasta-se mais na saúde), o resto fica para quê?
A despesa pública é de 45 por cento. Na média dos países da UE é superior. Portanto a despesa pública é cerca de metade do Produto Interno Bruto. Devemos discutir intensamente como é que ela é utilizada. Isso é uma opção da democracia. É total desconfiança na democracia achar que as pessoas não devem tomar parte ou não são capazes de tomar decisões tão importantes como saber se os recursos que são os seus contributos devem ou não ser utilizados para a melhoria de um serviço público que seja universal, de saúde ou de segurança social. Que têm custos acrescidos ao longo do tempo, é verdade. Mas é assim que devemos decidir. E devemos decidir se é para isso que utilizamos uma parte dos recursos que temos ou se, pelo contrário, queremos uma sociedade mais desigual e se o enriquecimento dos beneficiários do regime económico é mais vantajoso do ponto de vista democrático.
Se fizermos a opção da democracia mais igualitária temos um país que vive melhor consigo, temos uma situação de confrontação e de vida social totalmente distinta da selvática, em que os ricos se refugiam em condomínios protegidos por exércitos privados de desesperados que não têm acesso à saúde. Essa é a opção que temos de tomar. Mas também digo que é preciso poupar, que é preciso fazer custos poupados. E o Governo não os faz.
Dou um exemplo, na área da saúde: vamos gastar mais saúde? Vamos. Temos de poupar mais na saúde? Temos de poupar. O Governo deu três hospitais a consórcios privados para a gestão até 2040: dois deles, o de Vila Franca de Xira e o de Braga, vão ser entregues ao Grupo Mello, que foi corrido do Hospital Amadora-Sintra porque as contas não batiam certo, porque era incompetente, e logo a seguir deram-lhes estes hospitais por trinta anos.
Em relação ao Amadora-Sintra o resultado do inquérito foi que aquilo que o Estado gastava a tentar controlar as contas do hospital não compensava. Era uma soma nula.
Quer dizer que as contas não batem certo, que não vale a pena, não tem sentido. E a Inpecção Geral das Finanças fez um relatório que identificou 75 milhões de euros a mais gastos em custos excessivos porque os doentes eram contabilizados várias vezes quando passavam de serviço para serviço e o hospital cobrava várias vezes por cada um deles. Conheço isso muito bem.
O primeiro-ministro foi ao Parlamento dizer que estava a tomar uma medida porque havia desperdício e gastos errados no Amadora-Sintra, tirando-o ao Grupo Mello. Logo a seguir deu dois hospitais ao Grupo Mello. Portanto ficamos conversados quanto à contenção de custos. Porque se o Grupo Mello vai gerir os hospitais durante 30 anos vai pagar aos accionistas e o que estes recebem são 15 a 16 por cento. Além dos custos do hospital a remuneração do capital é 15 ou 16 por cento. Se a gestão do investimento fosse feita em dívida pública era dois por cento. Lamento muito mas é uma perda de custos.
O Bloco não será governo “sozinho”
Além da saída de Portugal da NATO, o programa do BE defende ainda o desarmamento universal e a desmilitarização das Forças Armadas. Trata-se de uma declaração de princípios. Não teme que estas tomadas de posição levem uma parte do eleitorado a nunca encarar o BE como uma real alternativa de Governo, mas sempre como uma força de contrapoder?
Esse resumo não é exacto. Propomos um conceito estratégico de defesa. Não é a desmilitarização. É preciso que haja capacidade militar, defendemo-la, mas achamos que ela deve ser adequada às necessidades do país.
Como é que vê o funcionamento das Forças Armadas se rejeita um sistema de alianças?
Devem ter sistemas de alianças e de cooperação militar. Mas propomos regras sobre isso e acho que Portugal não deve ter cooperação militar com Estados ou com países que usam sistemas de terror na sua intervenção militar, com países que violam a convenção internacional sobre o uso do fósforo branco, por exemplo, e outras armas de destruição massiva.
Mas o desarmamento universal é exequível?
Não encontra desarmamento universal no nosso programa. O que diz é que tem de haver redução das capacidades militares. Os EUA e a Rússia não estão a negociar a destruição de uma parte dos seus arsenais nucleares? Não há nenhuma razão para que essa negociação não se estenda a armas potencialmente genocidas. Há mais segurança se houver controlo. Se o Paquistão, a Coreia do Norte ou o Irão tiverem armas nucleares há mais insegurança. É claro que a extensão do armamentismo e exterminismo militar é insegurança.
Sobre a questão do contrapoder: o BE é um partido do protesto, da luta social e por isso é que é uma proposta de Governo.
A luta social compreende-se, o protesto nem tanto, uma vez que querem ser Governo. Um antigo membro do BE, Miguel Vale de Almeida, escreveu recentemente que ainda não viu “sair o Bloco da lógica do ‘quanto mais dificuldades e tensões sociais melhor’”. O que ele estava a dizer é que o BE ainda não se tornou num partido capaz de fazer os compromissos necessários para ser Governo.
Está a falar-me de uma pessoa que, com toda a liberdade, decidiu ir para o PS, como candidato. Tem uma visão diferente da política daquela que tem o BE.
Para um partido de protesto ter sucesso é conveniente que existam tensões sociais e dificuldades...
As tensões sociais estão à nossa volta. Não inventámos uma única delas. Quando queremos defender o emprego na Auto-Europa é porque há uma crise geral do sistema industrial e uma crise da procura que leva a riscos imensos de trabalhadores que estão submetidos ao Código do Trabalho. As tensões são estas. Nós respondemos às tensões sociais. Um país que tem dois milhões de pobres não tem fracturas sociais? Não há desespero? 400 mil trabalhadores temporários?
É claro que um partido protesta perante a fractura social. Só pode protestar em coerência se tiver uma alternativa. Nós queremos ser medidos, como o Governo é medido, pela capacidade de governar, de dar propostas que sejam executáveis, que façam maioria no país. Se o BE tem crescido é porque os eleitores o vêem como uma proposta coerente.
O BE, sozinho, pode um dia ser governo? Acham isso uma hipótese real?
Os eleitores vão decidir. Queremos fazer parte de uma esquerda que governe.
Então não estarão sozinhos.
Não, não seremos sozinhos.
Essa esquerda inclui o PCP?
Essa esquerda inclui quem, na altura, fizer parte de uma grande confluência por um programa político que responda ao país.
O exemplo da Auto-Europa é propício para se saber até onde podem ser feitos compromissos. A figura principal da Comissão de Trabalhadores é Antonio Chora, um dirigente do BE, que fez um compromisso com a administração só possível porque entretanto houve um novo Código do Trabalho. Nessa altura houve uma tensão na fábrica que foi interpretada comouma guerra entre bloquistas e comunistas. Lendo o programa do BE sobre o Código do Trabalho não se percebe como é que aquele acordo foi possível.
Nada nessa história bate certo, nada. O acordo que vigora foi feito antes do Código que está regulamentado. É contrário ao Código Laboral. As regras de negociação sobre a utilização dos horários de trabalho e os dias de não trabalho que são pagos têm um aumento de ordenados; têm a inclusão obrigatória dos trabalhadores com contrato a prazo como trabalhadores efectivos; têm regras que são extraordinariamente vantajosas para os trabalhadores.
Neste último acordo que foi rejeitado pelos trabalhadores houve de facto uma tensão grande. Mas os trabalhadores decidem e a Comissão de Trabalhadores aceitou a decisão do plenário, e ganharam agora a redução do lay-off. Neste contexto houve sempre posições muito diferentes. Os dois sindicalistas que mais se destacaram nos últimos anos em Portugal – Carvalho da Silva e António Chora – estavam de acordo nestas questões. Em termos concretos da luta a Comissão de Trabalhadores da Auto-Europa ganhou.
Ganhou porque negociou e teve de fazer compromissos.No programa do BE, para além da defesa da revogação do Código do Trabalho, existem regras que talvez nem os Códigos de 1975 tiveram. As vossas propostas tornam mais rígidas as negociações.
A negociação existe sempre. A negociação do Acordo de Empresa ou do Contrato Colectivo é sempre por negociação e o acordo é assinado por duas partes.
Há empresas que fazem trabalhos por turnos como se fosse trabalho normal. Há call-centers onde as pessoas trabalham 8 horas seguidas e ganham 500 euros; são 3,5 euros por hora. Isso é que é a liberalização do trabalho. A flexibilização do trabalho não é a qualificação do trabalho. Eu sei que a doutrina económica liberal nos diz que quando há desemprego há sempre uma solução: baixar os salários. E é isso que o Governo está a fazer: ao reduzir a remuneração das horas extraordinárias está a baixar os salários.
Os empresários têm em média a quarta classe e os trabalhadores são pessoas que foram sacrificadas toda a vida. É claro que precisamos de trabalho mais qualificado, portanto mais bem pago.
Quem é que cria esse trabalho mais qualificado?
A economia.
Mas as propostas do vosso programa não são no sentido de apoiar empresas em risco.
Veja a nossa política sobre o crédito: é criar credito que facilite o funcionamento da economia, nomeadamente as que estão em risco e têm capacidades tecnológicas.
No âmbito da carga fiscal não ajudam as empresas, nem há Taxa Social Única.
A Taxa Social Única é uma invenção da dr.ª Manuela Ferreira Leite para reduzir o financiamento da segurança social e facilitar o seu projecto de privatização da segurança social. O dr. Paulo Portas acha que pode resolver os problemas da pobreza no país tirando dinheiro aos mais pobres.
São feitas promessas às empresas, de que lhes vão reduzir os custos em impostos e, portanto, reduzir a receita do Estado, quando há 30 mil milhões de euros em Portugal que não pagam imposto. Em Portugal perde-se em imposto todos os anos mais do que todo défice que temos este ano. Do que precisamos é de mais clareza fiscal. Se existir um esforço fiscal mais justo, segundo as regras, todos beneficiamos.
Mas a carga fiscal global não pode crescer mais do que está.
Não fizemos nenhuma proposta para crescer a carga fiscal. Onde faz falta um apoio do Estado à economia é onde se pode fazer a diferença na criação de valor acrescentado.
Onde é que se vai buscar esse valor acrescentado?
Temos medidas de urgência a tomar agora e a nossa proposta é no pelouro da reabilitação urbana para que nas cidades grandes e médias se possa fazer uma reabilitação de casas e reduzir o peso do valor do aluguer da casa, devolver aos proprietários pobres condições para reabilitar as casas. Uma boa experiência que foi feita em França e noutros países europeus.
Na reabilitação criam-se postos de trabalho não muito qualificados...
E transitórios. É uma medida anti-crise.
A disputa bloquista é com o PS e o PSD
Existe ou não uma marcação partido a partido entre o PCP e o BE, tendo a consciência de que no dia em que se aproximarem do Governo perdem uma parte do eleitorado?
Eu não respondo pelo PCP. Não temos qualquer competição com o PCP. Isso seria total falta de visão. A nossa competição é com o PS e com o PSD. Temos diferenças de identidade, de projecto, de estratégia, de programa.
Os eleitores do BE são sobretudo jovens e os eleitores do PCP são mais idosos. Mas no país inteiro, onde o BE é a terceira força (no Algarve, todos os distritos a Norte do Tejo) o que o BE representa é o desafio político, que espero que seja o mais profundo, ao PS e também ao PSD. Esse é o nosso objectivo, a nossa disputa é essa e não nos apoucamos com outras disputas políticas. Chegar ao Governo é conseguir uma força social que nos não temos ainda.
Se esse é o vosso posicionamento não deveriam mudar de lugar na Assembleia?
Não. É um lugar histórico que temos, a nossa representação é ali.
A extrema-esquerda.
Não, a esquerda da Assembleia.
O lugar mais èsquerda da Assembleia.
É onde estamos e onde nos sentimos bem.
Há muitas pessoas do BE, ou que foram do BE, que vieram das três forças que deram origem ao Bloco. Duas delas, o PSR e UDP, mantêm a sua identidade, têm sites na Internet. No site do PSR, por exemplo, encontra-se relações com a IV Internacional. Porque é que esse relacionamento e essa identidade não são mais claras para o eleitorado?
No BE há uma grande diversidade de opiniões. E há sensibilidades e correntes históricas que fazem parte de trajectórias políticas das pessoas. Eu represento o BE. Falo pelo BE, não falo por nenhuma sensibilidade. Porque o BE é, como tem sido e como os eleitores o conhecem muito bem, uma representação política.
Mas não deixou de ter relações ao mais alto nível na IV Internacional.
Eu tenho as opiniões que tinha desde os 15 anos. O meu trabalho político todas as pessoas conhecem. Sou dirigente do BE, não faço parte de outros órgãos de direcção. Não faço parte de nenhuma outra estrutura política. O BE tem a confiança de pessoas que nunca pertenceram a outros partidos e essas pessoas têm toda a força e toda a capacidade dentro do Bloco porque determinam. Será sempre um movimento plural.
Desde os 15 anos até hoje não tem a mesma identidade na plataforma do Bloco.
São histórias diferentes. O BE tem 10 anos de actividade, responde pela sua política. Eu fui, desde novo, um socialista à esquerda.
Era um revolucionário?
Com certeza.
E hoje continua a ser um revolucionário?
Sou socialista. E sou contra o capitalismo, é verdade. É o que está escrito na plataforma do BE. O socialismo em Portugal, para nós, é um projecto contra o capitalismo. É anti-capitalista, sim senhor, com todo o gosto pelas palavras e com toda a clareza.
O PSR era o Partido Socialista Revolucionário. Foi um revolucionário. Hoje já não o é?
Eu sou o que sempre fui. Penso da mesma forma. Aprendi muito, em muitas questões. E o que aprendi, mais do que tudo, é que é preciso uma política que seja determinante e que só pode ser determinante se for muito clara. E é por isso que sobre o socialismo, ao contrário de muitos outros, no BE as coisas são tão claras que não permitem nenhuma dúvida.
O socialismo quer dizer combater a exploração e combater o capitalismo como forma de desigualdade social. Mas quer dizer também recusar os regimes de partido único ou de censura, ou de ataque à liberdade de opinião, como a China, a Coreia do Norte, a antiga União Soviética.
Qual é a tradução desse socialismo na economia?
É uma economia em que as necessidades são democraticamente estabelecidas pelo acesso público: a saúde e a educação são necessidades, são públicas.
A alimentação também é tão importante como a saúde e a educação.
Certo. Mas a alimentação é produzida de outra forma, a saúde não. Se somos desiguais perante a saúde isso quer dizer que há uma fractura irreparável no acesso às condições elementares da vida. É claro que a alimentação é suportada quando nós apoiamos os pobres.
Há um livro muito curioso do Darwin, que era visto como um protector do darwinismo social por alguns dos seus apoiantes, e que explica por que é que as sociedades humanas contrariam a selecção natural. Nós seleccionamos os processos anti-selectivos porque protegemos os pobres, apoiamos os portadores de deficiência, submetemos à competição aberta as pessoas.
O Banco Alimentar Contra a Fome é uma organização de apoio aos pobres e não é pública. Portanto não se enquadra no seu socialismo.
Enquadra-se. Há iniciativas sociais do terceitro sector, da solidariedade social, que fazem parte desse cuidar dos outros, como faz a AMI, como fazem muitos outros. Nós apreciamos esse trabalho. Ele é indispensável. Há redes sociais que a Igreja Católica tem, e que outros sectores têm, que são importantíssimos na forma de cuidar das pessoas. O que não quero é que a saúde seja espartilhada entre as condições económicas que separam dramaticamente os ricos e os pobres. A maioria dos portugueses não quer uma solução de privatização da saúde ou da segurança social.
As indemnizações nas nacionalizações são uma “questão posterior”
Voltando às nacionalizações. Em seu entender deve haver lugar para indemnizações?
Essa é uma questão posterior. A questão que está hoje na política portuguesa é saber se devemos ter o sector da energia público ou privado e se devemos privatizar, como fez José Socrates, ou se devemos desprivatizar, como nós propomos. E essa é a questão decisiva. Porque só decidindo isso é que podemos falar sobre as condições.
Está a dizer que essa é uma questão posterior e a falar para milhares de pessoas que têm acções na EDP.
Não estou a falar das acções distribuídas ao público. Estou a falar dos grandes fundos de pensões que detêm o poder accionista estratégico sobre a empresa.
Se nacionalizasse a EDP o que aconteceria a estas pessoas com acções?
Ficariam com elas. E seriam valorizadas na Bolsa.
Não seria uma empresa pública...
Uma empresa de capitais públicos pode estar na Bolsa. Porque é que não pode estar?
Então não é bem uma nacionalização.
Temos de decidir se é o Americo Amorim e o José Eduardo dos Santos que controlam a distribuição de combustíveis em Portugal. É isso que temos de decidir. Acho que é errado do ponto de vista estratégico nacional, é errado do ponto de vista económico, é errado do ponto de vista do orçamento. Perdemos dinheiro. Eu faço as contas sobre o dinheiro que perdemos do ponto de vista do orçamento. É ineficiente. Se o critério é a eficiência, e tem de ser, é ineficiente. Perdemos dinheiro.
Ainda por cima eu vejo as contas da Galp. A Galp ganhou 500 milhões de euros este ano. 100 milhões de euros foram porque manipulou os preços. Algo reconhecido, está no relatório. Chamam-lhe viscosidade dos preços. E o presidente da Autoridade da Concorrência explicou-nos, com uma candura que só lhe fica bem, que viscosidade quer dizer que quando os preços do petróleo baixam a nível internacional cá o preço baixa muito devagar; e quando os preços sobem a gasolina sobe muito depressa. Só com essa diferença de cêntimos por dia são 100 milhões de euros de lucro. As contas são estas e estamos a perder com essa opção estratégica. Uma economia mais responsável não se permite perder dessa forma.
O BE não percebeu a “dinâmica” gerada pela candidatura de Manuel Alegre
Admitiu recentemente que apoiará uma eventual candidatura de Manuel Alegre à Presidência da República. Porque é que não o fez em 2005, quando ele se candidatou como independente, sem o apoio do PS?
Não foi bem isso que eu disse. Quando ele se candidatou provou ser o candidato que tinha mais capacidade de obrigar a uma segunda volta. E acho que isso não foi percebido. O BE e muitos outros não percebemos essa dinâmica social que estava a ser gerada à volta da candidatura.
Subestimaram a candidatura e o candidato?
Não sentimos a força social que ela estava a representar. E é fundamental reconhecê-lo.
Num livro sobre a campanha de Mário Soares ele diz que falou consigo algumas vezes e que o senhor não cumpriu a sua palavra.
Ai isso ele não pode dizer. Eu não li essa parte, mas de certeza que ele não pode dizê-lo. É verdade que tentou [um acordo com o BE] e eu disse-lhe que não. Factos são factos e tenho a certeza que ele não me desmentirá. Depois disso encontrei-me várias vezes com Mãrio Soares, tenho muito gosto nisso.
Há pouco disse que afinal não assumiu apoiar uma eventual candidatura a Belém de Alegre.
Eu não posso antecipar uma decisão individual de outra pessoa. Alegre tem de dizer se é candidato ou não e até agora não o tem dito. O que eu disse foi que se houver uma candidatura como a de Manuel Alegre, que contribua para uma clarificação política e para a rejeição destas estratégias que têm conduzido à crise econõmica e à desorientação social, então certamente que ela terá uma força extraordinária.
Mesmo que seja uma candidatura apresentada e apoiada pelo PS?
Ele é que tem de escolher como aparece ou como deixa de aparecer. Mas um candidato presidencial é sempre por si próprio, é uma candidatura na independência da posição de cada um.
Nas últimas eleições presidenciais existiam dois candidatos socialistas.
Mais uma razão para pensar que Manuel Alegre é uma pessoa que afirma sempre a sua independência e a sua visão na sociedade portuguesa. Uma visão que contribua, como ele já fez em 2005, para uma clarificação sobre as grandes opções sociais em Portugal, para o combate à dívida interna, à fractura social. Desta forma, será uma candidatura que tem uma capacidade de movimentação muito importante. E as próximas eleições presidenciais eu não as subestimo. Pelo contrário, dou-lhes a maior importância porque vamos ter um Governo de maioria relativa, qualquer que ele seja, e vamos ter dificuldades sociais e económicas que vão prolongar-se nos próximos anos, com uma grande transformação política em curso. A campanha presidencial vai ser das mais clarificadoras na política portuguesa.
Entre as legislativas e as presidenciais resta somente um ano e quatro meses, sensivelmente. O horizonte das presidenciais condicionará os acordos que o BE possa fazer no Parlamento?
Não faremos acordos que não sejam sobre políticas que respondam à crise.
“Dar a Ferreira Leite e a Portas o Governo era o mesmo que pôr Dias Loureiro à frente do Banco de Portugal”
Perante um Governo minoritário do PS se surgir uma moção de censura o voto assumirá uma grande responsabilidade...
É sempre uma grande responsabilidade e o critério (diante um Governo com maioria absoluta ou sem ela) tem de ser o mesmo. Não aprovamos uma moção em função dos seus fundamentos, mas em função da vida política nacional. Não aprovámos as moções de censura do PSD e do CDS [o BE absteve-se] porque eles que queriam levar a sociedade portuguesa num caminho contrário àquele que pretendemos. Não fazemos nunca a política do quanto pior melhor. Os votos do BE nunca falham à esquerda.
Por essa lógica o BE teria, se existisse na altura, ajudado a derrubar o primeiro Governo de Cavaco Silva.
Não sou admirador do contrafactual na História. Acho que é tolice organizada em presunção intelectual. Não há nenhum direito de inventar histórias que não se passaram. Isso não me interessa. Isso é terrorismo intelectual. Se estivesse no primeiro avião que bombardeou Bagdad teria lançado a bomba ou não? Desculpe, mas isso não tem qualquer sentido.
Nós não votamos nada em que não saibamos as consequências da nossa votação. Somos um partido que representa 10 por cento do eleitorado e vai representar muito mais.
Insistimos: não pode excluir o PS. Porque não pode falar numa maioria de esquerda só com o BE e o PCP.
Excluo o PS. Não vamos fazer um acordo com o PS.
Mas fazem distinções entre o PS liderado por Sócrates e o PS com outro líder.
Não ando a fantasiar PS's.O PS é o que é e o que escolhe sempre ser.
O PS de Sócrates é então igual ao de Ferro Rodrigues.
Não, têm políticas diferentes. Mas como se percebeu Ferro Rodrigues não tinha qualquer peso do PS que fosse determinante. José Sócrates é o PS.
Ferro Rodrigues e o PS tiveram de se confrontar com o processo Casa Pia.
Ele foi abalroado por isso. Ele não tinha a liderança natural do PS que tem José Sócrates. José Sócrates é o PS profundo. É o que o Guterres tinha, é o que o Jorge Coelho tinha. Eu não discuto este e aquele PS. O que digo é que há tanta gente descontente...
Mas quando lamenta que os alegristas tenham sido excluídos das listas de candidatos às legislativas está necessariamente a fazer uma distinção.
Constato. Estou a dizer que no PS há muita gente que não quer uma política como aquela que a maioria absoluta levou a cabo. E essas pessoas são indispensáveis para uma maioria que faça governar a esquerda.
Para essa maioria que fará governar a esquerda seria compensatório que o PSD ganhasse as legislativas, tendo em conta objectivos a médio/longo prazo?
Já disse muitas vezes que não faço política de terra queimada. Quero o que melhor vá aproximando todas as políticas das respostas mais exigentes. Dar à dr.ª Manuela Ferreira Leite e ao dr. Paulo Portas o Governo era o mesmo que pôr o dr. Dias Loureiro à frente do Banco de Portugal.
Porque é que faz essa comparação entre Dias Loureiro e Manuela Ferreira Leite?
Não estou a fazer uma comparação.
Há pouco chamou-lhe criminoso.
Se é criminoso a justiça o dirá.
Mas fez dele um retrato muito pouco abonatório. É o mesmo retrato que faz de Manuela Ferreira Leite?
Não, não é. Mas o PSD é um partido dos negócios, é um partido tentacular dos negócios que foram porotagonizados pelos seus maiores. Não foram por marginais do partido. Foi a estrutura essencial da governação cavaquista que fez o negócio do BPN. Oliveira e Costa dirigia a máquina fiscal do país. São imensas responsabilidades políticas de toda a teia de interesses que se construiu na gestão económica de quem tinha o poder total no partido.
Quem o ouve até parece que quer que o PS ganhe.
O PS e o PSD não são competentes para responder à crise.
Quem é que é competente?
É a resposta do BE.
O BE está preparado para ser governo agora e para responder à crise?
Estamos preparados para essa luta. E queremos ter votos de quem achar que merecemos essa confiança. Por isso é que o BE tem crescido ao longo das eleições e os eleitores nos olham como parte dessa resposta essencial. Agora quando perguntam se é com o PS que o fazemos, digo-lhe que não. É preciso uma esquerda, um partido, uma força que seja governante para esquerda e isso exige uma reconfiguração da esquerda.
A reconfiguração do BE significa o quê?
Para haver uma esquerda de maioria é preciso uma aprendizem intensíssima sobre a política. Se temos 11 por cento nas últimas eleições, precisamos de chegar a muitas mais pessoas, de aprender mais e de ganhar mais capacidades de governação. Portanto, de mais conhecimento da vida social, mais representação social e isso será feito encontrando muitas pessoas que hoje são do PS ou que são de outras cores da esquerda.
Os encontros com Manuel Alegre foram uma primeira oportunidade falhada?
Pelo contrário, foi totalmente bem conseguida. Nunca houve o objectivo, nem nosso nem de Manuel Alegre, de fazer um partido a trouxe-mouxe. Os encontros anunciaram que não eram iniciativas para eleições de curtíssimo prazo e que eram mais profundas ainda.
Ficou a ideia de que algo foi iniciado e interrompido abruptamente.
Foi iniciado e vai continuar.
Ana Sara Brito e Helena Roseta, duas figuras importantes da candidatura presidencial de Alegre, estão hoje com Antonio Costa. Isso não é uma contrariedade?
Não. Ana Sara Brito já tinha estado ligada a Costa. No caso de Roseta, é uma opcão livre que ela tem.
E do ponto de vista daquilo que poderia ser o vosso resultado em Lisboa?
Não nos prejudica. O BE é forte nas alternativas sobre Lisboa, vamos decidir sobre políticas sociais, políticas de transportes, políticas de utilização do espaço público., reabilitação urbanística.
Nunca tentaram envolver Roseta numa eventual coligação?
Nunca tivemos nenhuma reunião com Roseta sobre essa matéria. Exprimimos a nossa disposição para ter conversas nesse sentido. Mas não houve caminho para isso. E percebo. Talvez seja um pouco cedo de mais. Mas isso não prejudica em nada os projectos futuros.
Tem noção de que há eleitores que estão em dúvida sobre se votam BE ou PSD para que Sócrates não vença as eleições?
O BE representa cada vez mais eleitorados populares. Nestes comícios que fiz falei com muitas pessoas e encontrei muitos socialistas e também gente que votava PSD. Ao disputar o eleitorado popular, o BE também responde a muitas pessoas que, no interior do país e nas zonas pobres das grandes cidades, reconheciam-se no PSD e porventura agora podem ter uma posição diferente
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