quarta-feira, setembro 24

Ossos Mais Antigos do "Homo Sapiens" na Europa Descobertos na Roménia
Por TERESA FIRMINO
Quarta-feira, 24 de Setembro de 2003
Público

Em Fevereiro de 2002, três espeleólogos romenos descobriram uma gruta nos Montes Cárpatos, na Roménia, onde se depararam com ossos do urso das cavernas, pequenos carnívoros, mamíferos herbívoros e uma mandíbula humana. Da gruta, onde se chega através de um rio subterrâneo, só levaram a mandíbula. Que importância teria? É o fóssil mais antigo do homem moderno, o "Homo sapiens", encontrado na Europa, com cerca de 35 mil anos - diz um artigo ontem publicado na revista "Proceedings of the National Academy of Sciences".

A equipa romena começou por fazer uma pesquisa na Internet. A responsável pela exploração da gruta, Oana Moldovan, do Instituto de Espeleologia Emil Racovitza, é especialista em insectos cavernícolas, por isso procurou alguém com quem discutir o significado da mandíbula, até dar com o nome de Erik Trinkaus, antropólogo da Universidade de Washington, em St. Louis, nos EUA. Encontraram-se e a investigadora entregou a mandíbula a Trinkaus, para fazer estudos de anatomia comparada e datações por radiocarbono.

Mas a equipa precisava de alguém que mergulhasse em grutas e soubesse arqueologia. Trinkaus, que estuda a criança do Lapedo com cientistas do Instituto Português de Arqueologia (IPA), em Lisboa, acabou por chegar a Ricardo Rodrigo, do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática do IPA. Técnico de arqueologia subaquática e a acabar os estudos de arqueologia, Ricardo Rodrigo também faz mergulho em grutas.

Em Junho, partiu com Trinkaus para a Roménia e fez, com espeleólogos romenos, o reconhecimento arqueológico e topográfico da gruta, baptizada Pe\u015Ftera cu Oase, ou Gruta com Ossos. Acharam mais restos humanos, um crânio e um pedaço do occipital de dois indivíduos.

Por ora, só os dados da mandíbula são apresentados, mas já foi entregue um artigo sobre os outros ossos à revista "Journal of Human Evolution". As datações da mandíbula indicam ter 34 mil a 36 mil anos. Não é só pela idade que a mandíbula é importante: revela que as primeiras populações de homens modernos na Europa procriaram com o homem de Neandertal.

Esta é uma das grandes questões sobre a origem do homem moderno, a nossa espécie. Como surgiu? E como se relacionou com os neandertais: misturaram-se, havendo miscigenação, ou guerrearam-se, até os humanos modernos vencerem e substituírem o homem de Neandertal, ou tão-só substituíram-no devido a alguma vantagem?

Uma das teorias sobre a origem do homem moderno, a Out of Africa, diz que este surgiu no continente africano, há cerca de 150 mil anos. Há 50 mil a 40 mil anos, aconteceu a sua saída mais recente de África, e espalharam-se pela Ásia e pela Europa, substituindo outros hominídeos - como os neandertais, que foram empurrados desde o Médio Oriente e da Europa até ao último reduto, a Península Ibérica, de onde desapareceram há 28 mil anos.

A outra teoria, a multi-regional, também defende um êxodo de África, mas, em vez de ter sido do homem moderno, foi o do "Homo erectus", há 1,8 milhões de anos, que chegou à Ásia. O homem moderno evoluiu a partir deste hominídeo, em vários locais, e os neandertais contribuíram para a sua origem.

A ideia da miscigenação já tinha sido proposta, nomeadamente por Trinkaus, no princípio dos anos 80, com base em fósseis de vários indivíduos encontrados na gruta de Mlade\u010D, na República Checa. Mas a datação desses homens modernos, que apontava para os 34 mil anos, não era directa, como agora se fez, mas através das camadas onde estavam os fósseis.

Com 25 mil anos, o esqueleto da criança do Lapedo, descoberto perto de Leiria, em 1998, reforçou a hipótese de ter havido cruzamento entre neandertais e modernos. A criança já era moderna, com ancas estreitas e um queixo, mas a equipa que a estuda - coordenada pelo arqueólogo João Zilhão, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa - considera que também tem características Neandertais, como pernas curtas.

A mandíbula da Roménia é a terceira prova dessa miscigenação, sublinha Zilhão, que defende um misto da teoria Out of Africa com a multi-regional: o homem moderno veio de África, mas misturou-se com as populações da Europa e da Ásia. Os fósseis da Roménia, diz Zilhão, são do momento em que terá ocorrido o primeiro contacto. "Houve a chegada de homens modernos à Europa há 35 mil anos, num horizonte de 35 a 40 mil, e quando chegaram misturaram-se com as populações autóctones", refere o arqueólogo.

"Embora possuam características modernas distintivas, como ausência de sobrolho e queixo saliente, têm características anatómicas arcaicas. É muito provável que se devam, em parte, à procriação com as populações de neandertais, uma vez que estes eram os únicos humanos arcaicos na Europa e no Médio Oriente na altura", frisa, por sua vez, Trinkaus. Dos neandertais herdaram uma protuberância óssea atrás da orelha e uma ponte de osso que atravessa as duas margens de um buraco dentro da mandíbula, em cada um dos lados, junto aos molares.

Dez mil anos após os primeiros contactos, ainda havia traços arcaicos na criança do Lapedo, mas já se teriam perdido muitos. "Os fósseis de Oase corroboram a nossa interpretação das características da criança do Lapedo", nota Zilhão, que já tirou um curso de mergulho para, no próximo ano, se juntar à equipa para escavar a gruta.
Presidente do Banco Mundial Quer Um Maior Equilíbrio Entre Países Ricos e Pobres
Por ARTUR NEVES
Quarta-feira, 24 de Setembro de 2003
Público

"O nosso planeta não se encontra equilibrado. Muito poucos controlam demasiado e demasiados têm muito pouco com que contar". Foi nestes termos que James Wolfensohn, presidente do Banco Mundial, se dirigiu ontem aos delegados dos 184 países presentes na assembleia anual conjunta da instituição que lidera e do seu irmão gémeo, o Fundo Monetário Internacional (FMI), que se realiza no Dubai, capital dos Emiratos Árabes Unidos, lançando uma violenta crítica às políticas dos países ricos. Wolfensohn recordou que o que o conjunto destes países dispende anualmente em ajuda ao desenvolvimento não vai além de 56 mil milhões de dólares, o que contrasta fortemente com os 300 mil milhões de dólares gastos em subsídios à agricultura e os 600 mil milhões de dólares canalizados para despesas militares.

O presidente do Banco Mundial defendeu a argumentação dos países mais pobres na recente conferência interministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), que se saldou por um rotundo fracasso. "Dois terços dos pobres do mundo dependem da agricultura para a sua subsistência. O que vêem os países em desenvolvimento? Vêem que as nações ricas colocam em cima da mesa propostas que não respondem aos seus pedidos neste domínio crucial", acusou. Em Cancún, os países pobres "acharam também inaceitável uma concepção das negociações em que se espera essencialmente que respondam a propostas formuladas pelos países ricos", acrescentou, citado pela Lusa.

Mas os países pobres também não escaparam às críticas de Wolfensohn, que recordou que estes gastam anualmente mais em defesa - 200 mil milhões de dólares - do que em educação, ao mesmo tempo que admitiu que "não há suficientes esforços corajosos e consistentes para combater a corrupção, particularmente nas esferas de influência mais elevadas".

Das promessas de Snow à paciência da China

No entanto, após o discurso de Wolfensohn, as atenções viraram-se imediatamente para a conjuntura económica dos países mais ricos. Com a multiplicação recente dos avisos de que o défice das contas públicas dos EUA constitui uma ameaça ao crescimento da economia mundial, o secretário do Tesouro norte-americano procurou ontem tranquilizar os seus pares. Depois de declarar que o défice "surgiu por causa de uma recessão e dos esforços para a combater" e de que era política económica elementar combater uma recessão através de um défice, John Snow não deixou de afirmar que o seu actual nível - a caminho dos 500 mil milhões de dólares, mais de quatro por cento do produto interno bruto (PIB) - era para si uma causa de inquietação. Snow mostrou-se convicto que é possível "reduzi-lo para metade nos próximos cinco anos, o que o traria claramente para menos de dois por cento do PIB". Uma questão de fé. Citado pela AFP, o responsável das Finanças da Administração Bush declarou que tal será possível através de maior controlo sobre a despesa e porque a economia dos EUA deverá crescer a uma taxa anualizada entre 3,5 e quatro por cento, não só nos próximos trimestres mas também de uma "forma duradoura". (O referido intervalo não foi escolhido por Snow ao acaso, uma vez que é consensual que terá que ser a esse ritmo que a maior economia do mundo terá que crescer para que o seu desemprego não aumente, tendo em conta a dinâmica demográfica dos EUA.)

John Snow foi completamente omisso quanto à questão dos níveis das taxas de câmbio, assunto que tem dominado a actualidade nos mercados financeiros depois de no fim-de-semana o G7 ter apelado a uma maior flexibilidade daquelas, o que foi interpretado como uma sinalização do abandono da política do dólar forte. Uma outra interpretação foi também a de que as economias asiáticas deveriam operar com divisas mais fortes, algo que tem vindo a ser reclamado há algum tempo pelos EUA. O ministro das Finanças da China, país que tem sido particularmente visado pelos EUA, aproveitou para ontem afirmar que Pequim "tomava nota da inquietação" dos sete principais países do mundo industrializado (e do FMI) quanto à cotação do yuan, mas explicava que esta era compatível com "um desenvolvimento económico e financeiro não só da China como da região e do mundo". Num exercício de retórica, Jin Renquing repetiu as intenções de Pequim de "melhorar o mecanismo de gestão da taxa de câmbio do yuan" - a divisa chinesa encontra-se indexada ao dólar desde 1994 - mas não avançou com nenhum calendário. Jin indicou no entanto que esse mecanismo será modificado paralelamente com o aprofundamento das reformas financeiras que o país tem em marcha, com destaque para "a liberalização dos movimentos de capitais, a remoção progressiva dos limites para o uso de divisas estrangeiras bem como a supervisão e o ajustamento da balança de pagamentos". Ou seja, Pequim não dá o braço a torcer no que ameaça transformar-se um conflito cambial com o mundo industrializado.

Caixa
Com a multiplicação recente dos avisos de que o défice das contas públicas dos EUA constitui uma ameaça ao crescimento da economia mundial, o secretário do Tesouro norte-americano procurou ontem tranquilizar os seus pares.
Une proposition de brevetage soulève la colère des partisans du logiciel libre
LE MONDE | 24.09.03 | 13h28


Les coûts des brevets, plus chers que ceux des droits d'auteur, pourraient étrangler les PME. Tout le secteur de l'innovation est concerné.
Strasbourg de notre bureau européen

Les partisans du logiciel libre réussiront-ils à faire prévaloir leur point de vue au Parlement européen ? Une centaine d'entre eux ont manifesté dans les rues de Strasbourg, mardi 23 septembre, au nom "des idées libres pour un monde libre". Ils demandent le rejet d'une proposition de directive européenne destinée à imposer des brevets sur les "inventions mises en œuvre par ordinateur". Le Parlement de Strasbourg devait se prononcer sur le texte mercredi.

Selon les partisans du logiciel libre, cette directive permettrait de breveter des œuvres de l'esprit "en tant que telles", ce qui est pour l'instant interdit par la convention de Munich sur le brevet européen. Les idées, les formules mathématiques ou les méthodes intellectuelles ne sont pas brevetables : elles sont protégées par le droit d'auteur.

L'Alliance Eurolinux affirme qu'un tel brevet menacerait tout le secteur de l'innovation : il rendrait impossible l'écriture de nouveaux logiciels, puisque celle-ci utilise des modules existants, en les combinant de différentes manières. Les représentants d'Eurolinux font valoir que le succès du logiciel libre, dont le code-source (secret de fabrication) est public, n'aurait pas été possible si les algorithmes de base avaient été monopolisés par un grand groupe. Ils considèrent en outre que la brevetabilité n'est pas adaptée à des inventions qui se produisent dans des délais brefs - trois ans environ pour l'amélioration d'un logiciel, soit moins longtemps que pour l'instruction d'un brevet. Enfin, ils font valoir que les coûts des brevets sur les logiciels, plus chers que ceux des droits d'auteur, risquent d'étrangler les PME.

Les partisans du logiciel libre ont été entendus au Parlement par les communistes, les radicaux italiens et les Verts : "A part Microsoft, on ne trouve personne qui défende l'idée du brevet", a affirmé Daniel Cohn-Bendit, président du groupe des Verts, lors d'une audition consacrée au sujet. Les Verts ont demandé que le Parlement abandonne son équipement Microsoft pour une formule de logiciel libre, "comme l'a fait par exemple la ville de Munich".

DEMANDE D'AMENDEMENTS

La rapporteuse, Arlene McCarthy (groupe du Parti des socialistes européens), est loin d'avoir épousé cette cause. Dans un communiqué, elle s'est plainte de n'avoir jamais été confrontée à une "campagne de harcèlement" aussi "agressive" de la part de "lobbyistes depuis dix ans". Elle estime qu'ils se livrent à de la "désinformation", en assurant que la directive conduira à breveter les logiciels "en tant que tels". Elle pense au contraire que ce texte permettra seulement de protéger les logiciels "qui apportent une contribution à la technique", comme le réclame l'Union des confédérations de l'industrie et des employeurs d'Europe (Unice).

Contrairement aux partisans du logiciel libre, Mme McCarthy juge qu'il est nécessaire de légiférer pour mettre fin à l'"insécurité juridique" qu'a créée l'Office européen des brevets : bien qu'il ait été chargé d'appliquer la convention de Munich, cet organisme a délivré plus de 20 000 brevets concernant des mises en œuvre par ordinateur. "Comme il se paie sur la bête, il a breveté tout et n'importe quoi, y compris des logiciels en tant que tels", affirme Gilles Savary, eurodéputé socialiste français.

Gilles Savary et Michel Rocard, président de la commission culture du Parlement, ont toutefois demandé à Mme McCarthy de clarifier le texte de la Commission. "Nous nous méfions de Frits Bolkestein, le commissaire chargé du marché intérieur, qui est un ultralibéral", indique M. Savary. "Il nous assure que ça va sans dire, nous lui répondons que ça va mieux en le disant", ajoute le député. MM. Savary et Rocard ont négocié des amendements de compromis avec certains de leurs collègues du PPE (Parti populaire européen, droite) sensibles à leur argumentation, comme la Finlandaise Piia-Noora Kauppi.

Au terme de ces amendements, une invention par ordinateur ne devrait être brevetable que si elle "met en œuvre les forces de la nature". M. Rocard explique dans un communiqué que, "lorsque l'homme utilise de la matière ou qu'il met en œuvre les forces de la nature, les coûts changent, la rémunération nécessaire est beaucoup plus forte, le brevet la rend possible en interdisant l'usage de l'invention sans rémunération". Autrement dit, explicite Gilles Savary, "il sera possible de breveter un logiciel qui pilote une chaîne de robots de peinture, parce qu'il apporte une innovation matérielle et industrielle, c'est-à-dire un avantage compétitif durable" : cet investissement justifierait l'amortissement que suppose le brevet. Marco Cappato (non inscrit), partisan du logiciel libre, ne "voit pas l'utilité de ces précisions" puisque, précise-t-il, "l'invention technique est déjà protégée par un brevet".

quinta-feira, setembro 18

Carta Aberta ao Presidente da República e ao Primeiro-ministro Contra o Medo da Europa
Por FRANCISCO LOUÇÃ
Quinta-feira, 18 de Setembro de 2003
Público

Dentro de poucos meses, Portugal estará confrontado com a decisão mais importante desde a adesão à CEE. Como Presidente da República e como primeiro-ministro, será sob o vosso mandato que se concluirá e ratificará o Tratado Constitucional da União Europeia.

Lembro-vos, senhor Presidente e senhor primeiro-ministro, que existe um compromisso solene assumido por todos os principais dirigentes políticos, incluindo-vos, no sentido de submeter às portuguesas e aos portugueses a decisão substancial acerca do seu futuro na Europa. Ora, o processo de preparação deste tratado sugere que essa promessa está em vias de ser abandonada.

A preparação da Constituição europeia tem sido, desde o início, uma fraude. Foi nomeada pelos governos e pelas maiorias parlamentares - mas não eleita - uma convenção para escrever o projecto. E foi dado a Giscard d'Estaing, o presidente nomeado dessa convenção, o poder absoluto de decidir o texto final da proposta. Este método autocrático permitiu ao presidente acrescentar 340 novos artigos já depois de ter apresentado o seu projecto à Cimeira de Salónica.

Comparado com os grandes processos constituintes, como o da Convenção de Filadélfia de 1776, da Convenção francesa de 1792, da nossa Assembleia Constituinte, sempre com representantes eleitos que escolhiam entre alternativas, este tratado europeu é o resultado de um expediente. É necessário que a democracia corrija este procedimento.

Ao formalizar um supra-Estado europeu - uma Constituição corresponde a um Estado -, este texto impõe a consagração de uma mudança de regime em todos os Estados-membros. Agravando a submissão do poder legislativo ao executivo, o tratado de Giscard também submete as próprias constituições nacionais à sua lei: doravante, disposições da nossa Constituição poderiam ser declaradas "inconstitucionais".

Jorge Miranda argumenta que a aplicação de todo o tratado internacional deveria ser subordinada à Constituição portuguesa, e tem razão: esse é o entendimento prevalecente desde Viena. Assim sendo, este tratado deveria ter a forma e o alcance do Tratado de Roma de 1957, constitutivo de uma organização internacional, não tendo primazia sobre a Constituição portuguesa. Mas o tratado de Giscard prevê explicitamente, no seu artigo I-10º, a inversão desta regra e determina o seu predomínio sobre todo o direito nacional, incluindo naturalmente a Constituição portuguesa. Ao assiná-lo, o primeiro-ministro estará a comprometer-se com essa determinação; ao ratificá-lo, o Presidente da República, que jurou fazer cumprir essa Constituição, estaria a aceitar o seu abandono. E esse seria o fim do regime tal como foi sendo concebido a partir de 25 de Abril de 1974.

Para operar esta mudança de regime, há, no entanto, duas condições práticas:

Em primeiro lugar, é preciso mudar a própria Constituição portuguesa para que esta aceite a supremacia da Constituição europeia. Mas, tendo em conta o artigo 288º da Constituição portuguesa, esta não pode ser alterada a não ser através de novo processo constituinte democrático, em questões como a independência, a separação de poderes ou a defesa dos direitos democráticos e sociais. Só violando a Constituição portuguesa se pode adaptá-la à aceitação do tratado de Giscard. A mudança de regime supõe um doce mas frio golpe constitucional.

Em segundo lugar, a criação de um facto político legitimante seria a condição necessária para fazer aceitar este tratado pelos portugueses. Assim sendo, os proponentes deste novo regime conceberam um plebiscito sem alternativas, resumindo portanto o país à escolha entre a lei de Giscard e o deserto.

Acresce que, como Vital Moreira lembrou, não tendo sido referendada a Constituição portuguesa, o referendo sobre a europeia conceder-lhe-ia imediatamente uma maior legitimidade - se votassem mais de 50 por cento -, o que seria paradoxal, porque uma das questões que está em causa é precisamente determinar a sua primazia ou não.

Pior ainda, um referendo sob essa forma só poderia ocorrer, dadas as eleições europeias e regionais, depois de Outubro de 2004, quando nada houver a fazer para corrigir o conteúdo do tratado de Giscard.

No entanto, esta estratégia colapsará se o plebiscito não tiver maioria. Tentado a argumentar entre o tudo e o nada, o Governo percebeu que poderia ficar com nada. Assim, o Governo escolhe assinar o tratado de Giscard e temo que abandone o seu compromisso de deixar essa escolha aos portugueses.

Se não houver referendo, o primeiro-ministro terá faltado à sua palavra. Mas, se este se transformar num plebiscito vazio, a democracia portuguesa é também profundamente posta em causa.

Só um referendo acerca da política europeia clarificará e reforçará uma opção europeia e será um instrumento para a refundação democrática e social que possa fazer da Europa uma convergência de políticas de paz, de emprego, de qualificações, de cultura. Por isso mesmo, só um referendo tem eficácia e poder democrático.

Obviamente, isso só pode acontecer se o referendo se realizar antes de concluído e assinado o tratado. Por isso vos proponho, senhor Presidente e senhor primeiro-ministro, que o referendo se realize o mais cedo possível para escolher sobre questões fundamentais, como a condição de um processo constituinte democrático, a primazia da Constituição portuguesa ou europeia, o modelo presidencial do Conselho Europeu, os princípios da política orçamental europeia, os objectivos de protecção social ou as opções militares da União.

Com Giscard, afirma-se hoje uma visão mesquinha da Europa. Uma Europa militarizada, uma política social para o desemprego, uma economia a gerir recessões, um autoritarismo que abandona facilmente princípios democráticos da separação de poderes. Essa política tem medo da Europa, da convergência, do respeito pela diversidade, da força constituinte da democracia. É por isso que muito do nosso futuro depende da escolha entre a Constituição de Giscard e um novo tratado que constitua na UE um avanço na cooperação de políticas económicas, monetárias, orçamentais, sociais e culturais. É preciso mais Europa com mais democracia. O medo da Europa não pode vencer.

Dirigente do Bloco de Esquerda

domingo, setembro 14

Por Um Estado ao Serviço dos Cidadãos e da Sua Segurança - Comentário
Por SÃO JOSÉ ALMEIDA
Sábado, 13 de Setembro de 2003
Público

A urgência em reinventar e redefinir a função do Estado na sociedade foi mais uma vez posta a descoberto pela queda da ponte pedonal no IC19. O assunto pode até parecer e ser mesmo menor, quando praticamente todos os dias são tornados públicos pequenos ou grandes problemas que têm a ver com a tendência galopante para a esfera do Estado democrático abandonar o seu papel de interlocutor e garante do bem estar e da segurança dos cidadãos. Mas o desleixo e o abandono da fiscalização das estradas, num primeiro plano de justificação por falta de verbas, revela uma razão mais profunda, que mais não é do que a consequência de campear em Portugal, à direita e à esquerda, uma bacoca, deslumbrada e provinciana sedução por teses já gastas e falidas de que o desenvolvimento passa exclusivamente pela livre iniciativa privada e que obedece ao recorrente ideário utópico do liberalismo económico subsidiário da máxima de Adam Smith "quanto menos Estado melhor Estado".

Ora, num país como Portugal, que está ainda mais próximo do Terceiro do que do Primeiro Mundo, e em que a afirmação do Estado moderno é ainda uma construção precária e periclitante a adopção de uma política de recuo do Estado acaba por atingir os piores resultado, ou seja, os mais escandalosamente indiciadores de que o Estado apenas é usado para a distribuição de dinheiros que servem um grupo de próximos daquilo a que se convencionou chamar o Bloco Central dos interesses.

Esta lógica da privatização, que atinge o poder em Portugal, como uma moda que ninguém se dá sequer ao trabalho de questionar, acaba por permitir até que o actual Governo se tenha dado ao luxo de avançar com despedimentos em massa dos contratados a prazo da função pública, que resulta na actual paralisia dos serviços do Estado que, em teoria, existem para servir o cidadão, quer essa paralisia se manifeste, em camas fechadas nos hospitais ou bichas ainda mais infindáveis do que eram antes nas secções de finanças. E é esta mesma lógica de desinvestimento no Estado e redução deste a mero distribuidor de receitas para alguns, que faz com que as estruturas públicas definhem ao ponto de não haver fiscalização, por exemplo das obras públicas ou dos manuais escolares, como o PÚBLICO noticiou esta semana. E que faz com que Portugal se tenha transformado numa perigosa selva onde os cidadãos se sentem entregues aos bichos, abandonados a uma sorte desconhecida, sem o mínimo de apoio ou de segurança. E permite que o presidente de um instituto estatal como o IEP dê uma conferência de imprensa tão inqualificável, que obrigou a que o ministro das Obras Públicas o demitisse, contra a vontade de parte do Governo, mas sem que tenha sido ainda dada qualquer explicação ou apurada qualquer responsabilidade de facto pela queda da ponte pedonal do IC 19, como se esta tivesse caído tão-só porque estava de pé, na mesma lógica de que todos sabemos que para morrer apenas é preciso estar vivo.

Uma lógica paralisante, que anestesia os decisores, os quais preferem perpetuar-se na mediocridade, e que está assente no consenso podre do caldo de cultura do unanimismo, fruto da inexperiência e imaturidade democrática e da falta de consciência política, que permite que se critique o confronto de ideias e de projectos políticos próprio da democracia, alegando cinicamente que isso divide os portugueses, do mesmo modo que se procura desideologizar a politica e transformá-la numa espécie de gestão de negócios de amigos em que uma mão cobre a outra. E que resulta na imagem de um país e de um poder político, económico e social promíscuo e corrupto onde, por mais catástrofes, dramas, ilegalidades ou mortes, a culpa morre solteira.

Portugal surge assim como um país de chicos espertos, em que os decisores estão tão satisfeitos consigo mesmos que se dão ao luxo de argumentar uma endémica falta de recursos como argumento coadjuvante à decisão de destruturar o que há de Estado, abstendo se sequer de se questionar sobre alternativas. Já agora algumas perguntas a título meramente aleatório. Será que alguém já parou para pensar se faz mesmo sentido, no início do século XXI, quando a gestão da água potável a nível mundial se transformou numa das questões centrais, ir privatizar a distribuição água em Portugal? Será que, além da desculpa da falta de recursos do Estado, ninguém se questiona sobre por que não se combate de facto a evasão fiscal? Será que é normal que 56 por cento das empresas portuguesas apresentem contas deficitárias, se mantenham a funcionar quando estão tecnicamente falidas e não sejam investigadas? Será que é normal que os lucros da bolsa sejam legalmente tributáveis, mas ninguém pague, sem por isso ser incomodado sequer? Será que é normal que o imposto que se pense abolir é o imposto sucessório, um imposto que é cobrado não sobre a produção ou o trabalho, mas sobre herança?

Decisores que sucessivamente encolhem os ombros, desresponsabilizando-se da forma como estão a exaurir o pouco Estado que ainda existe, em vez de o questionarem, de o melhorarem e de o colocarem de facto ao serviço do bem-estar e da segurança dos cidadãos, seja a segurança face ao banditismo, seja em relação a catástrofes. Até por que um Estado forte nas suas funções sociais é tão necessário como o mercado e a sua dinâmica são insubstituíveis, para a existência da sociedade civil, da comunidade social de cidadãos.

sexta-feira, setembro 12

«Saúdo-te Maria, cheia de graça, saúdo os teus pais, os teus filhos, todos os que te souberam amar.

É claro que conheço pouco as circunstâncias, mas é-me impossível não fazer a aproximação entre o acto horrível que te condenou e as formas de machismo que na minha opinião persistem nos meios artísticos e assimilados à esquerda. Sempre que no passado fiz esta observação, os meus interlocutores caíam das nuvens, indignados, como se a pertença a uma certa família cultural os dissociasse definitivamente de qualquer forma de barbárie, discriminação racial ou sexual.

No entanto, basta abrir os olhos ou acender a televisão para observar exemplos. É raro o dia em que se não vêem filmes ou telefilmes, às vezes até realizados por mulheres, com cenas de casais - tristemente banalizadas - em que o tom sobe e a bofetada parte, para fechar a boca à rapariga, à mulher, à fémea, e não é o fim do mundo. Não é de qualquer modo o fim do casal, o fim do diálogo, e os protagonistas em geral reconfortam-se depois rapidamente. Como se fosse vulgarmente aceite que uma pancada não é nada de grave no interior da intimidade, apenas uma pontuação na leve música do amor.

Gostaria de gritar até ficar rouca, até que a minha voz se assemelhe à tua, essa voz que me obceca e ressoa em mim como um devastador pedido de socorro: uma bofetada nunca é um acidente. Uma pancada vem sempre carregada de sentido, de um sentido de destruição, seja imediato e físico, seja interior e moral. Defender certos valores de justiça, de igualdade e de liberdade é integrar plenamente uma ética, em todos os nossos actos, no seio da grande confusão dos discursos, das linguagens e das atitudes em que banhamos e que nos deixa embrutecidos, nos torna selvagens, nos anestesia.

Lukum (nome que o pai dava a Marie). Acabo de ler no dicionário que 'rahat lokum' quer dizer em árabe 'o repouso da garganta'. Sabias isto?»

Maria de Medeiros, citada por Prado Coelho, no Público de 12 de Set de 2003, a propósito do assassinato de Marie Trintignant. Texto originial publicado no Cahiers de Cinema.

quinta-feira, setembro 11

Memorial dos Anos Felizes
Por LUIS SEPÚLVEDA
Quinta-feira, 11 de Setembro de 2003
Público


Os mil dias do Governo de Unidade Popular foram muito duros, intensos, sofridos e ditosos. Dormíamos pouco. Vivíamos em todo o lado e em lado nenhum. Tivemos problemas sérios e procurámos soluções. Esses mil dias podem ser acompanhados de qualquer adjectivo, mas se há uma grande verdade é que, para todos aqueles e aquelas que tivemos a honra de ser militantes do processo revolucionário chileno, foram dias felizes, e essa felicidade é e será sempre nossa, permanece e permanecerá inalterável.

Queridas companheiras, queridos companheiros. Quem de nós pode esquecer o sorriso dos irmãos Weibel, de Carlos Lorca, de Miguel Enríquez, de Bautista von Schowen, de Isidoro Carrilo, de La Payita, de Pepe Carrasco, de Lumi Videla, de Dago Pérez, de Sérgio Leiva, de Arnoldo Camú, de todas e todos os que hoje, trinta anos mais tarde, não estão connosco mas vivem em nós?

Cada uma e cada um tem na sua memória um álbum particular de recordações felizes daqueles dias em que demos tudo, e parecia-nos que dávamos muito pouco, porque tínhamos gravado na pele os versos do poeta cubano Fayad Jamis: "por esta revolução haverá que dar tudo, haverá que dar tudo, e nunca será o suficiente". Houve quem no cómodo e cobarde cepticismo desfrutou de um tempo morto a que chamaram juventude. Nós, sim, tivemos juventude, e foi vital, rebelde, inconformista, incandescente, porque se forjou nos trabalhos voluntários, nas frias noites da acção e propaganda. Não houve beijos de amor mais fogosos do que aqueles que se deram no fragor das brigadas muralistas. Aquele que beijou uma rapariga da brigada Ramon Parra ou Elmo Catalán beijou o céu e não houve espada capaz de tirar esse sabor dos lábios.

Outros, na atroz cobardia dos que criticaram sem dar nada, sem se queimar, sem arriscarem, sem conhecer o magnífico sentimento de fazer o que é justo e no momento justo, nas suas mansões sem glória, comendo na prata que herdaram dos comendados e bebendo puro suor dos operários, avisavam que estávamos a cometer excessos. Claro que cometemos erros. Éramos autodidactas na grande tarefa de transformar a sociedade chilena. Metemos muitas vezes o pé na argola mas nunca as mãos nos bens do povo. Enquanto outros conspiravam, nós alfabetizávamos. Enquanto outros se aferravam com fúria homicida aos seus bens mal adquiridos, pois a propriedade da terra vem sempre do roubo, nós permitimos que os párias da terra olhassem pela primeira vez para os olhos do patrão e lhe dissessem: "Grande filho-da-puta, exploraste-me, tal como aos meus pais e avós, mas aos meus filhos e aos filhos dos meus filhos não os explorarás." E essas palavras são parte do nosso legado feliz, da nossa memória feliz.

Fumávamos "marijuana" dos Andes misturada com tabaco doce dos Baracoas. Ouvíamos os Quilapayún e Janis Joplin. Cantávamos com Victor Jara, os Inti Illimani e os The Mamas and Papas. Dançávamos com Hector Pavez, Margot Loyola, e os quatro rapazes de Liverpool fizeram suspirar os nossos corações. Usámos calças à boca de sino e as nossas raparigas minissaias que excitavam Deus e o Diabo. E tínhamos maneiras próprias de estar, que com uma só palavra diziam quem éramos e o que sonhávamos: Olá, companheira, olá companheiro. E com isso ficava tudo dito.

Angel Parra, Rolando Alarcón, Isabel Parra e mil cantores populares deram-nos uma nova dimensão do amor, esse formidável verbo que começámos a conjugar à nossa maneira.

Traçámos metas impossíveis, SUL-realistas, e cumprimo-las. Por uma vez na nossa história, todos os meninos do Chile mamaram meio litro de leite, de leite branco e justo, de leite necessário e proletário, porque o pagaram justamente os que produziam a riqueza. Um dia fez-se a grande conferência da UNCTAD [Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento], e os arquitectos, e os engenheiros, e os capatazes opinaram que não era possível levantar o grande edifício que nos mostraria como um povo em marcha, mas os nossos pedreiros, electricistas, estucadores e professores de capacete salpicado de gesso disseram que sim, que era possível, e fizeram-no. Mais tarde foi o edifício da juventude chilena. Quem não comeu algum dia na UNCTAD, chamado também edifício Gabriela Mistral e que mais tarde foi usurpado pelos assassinos? Todavia, ele aí está e aí permanecerá como um enorme testemunho desses mil dias em que tudo foi possível.

Os que não tinham imaginação nem lugar nesse reino do possível, do dito possível, conspiravam contra o sol, contra o mar, contra o Verão a partir das suas mansões de Reñaca ou Papudo. Mas nos balneários populares as famílias dos operários tinham pela primeira vez a possibilidade de estar ao sol, junto ao mar, que de verdade nos banhou tranquilo. Jogaram ao pôr-do-sol, passearam de mão dada, amaram-se, fizeram planos possíveis, enquanto as crianças eram entretidas pelos voluntários da Federação de Estudantes do Chile, e divertiam-se com os títeres, o teatro, as aulas de música e de pintura dadas por artistas militantes de um povo em marcha.

Hoje, trinta anos depois, alguns dos que não tiveram a ousadia de se envolver, de dar tudo, ufanam-se de uma estranha capacidade premonitória que lhes permitiu vaticinar o desastre e os aconselhou a manter-se à margem. Miseráveis, pobres miseráveis que perderam a oportunidade mais bela de fazer história, mas de a fazer justa. Esses mesmos são hoje os paladinos da reconciliação e apontam-nos os "excessos". Mas esses iluminados nunca mencionam um desses excessos em particular: Provocámos o imperialismo ianque quando nacionalizámos o cobre? Esquecem que o fizemos com tanta suavidade, inclusivamente pagando indemnizações, que chegámos a ser alvo de críticas da própria esquerda. Mas fizemo-lo assim porque não queríamos a confrontação directa com o inimigo da humanidade. Soubemos responder às provocações com vigor e com violência quando ela foi precisa, mas nunca provocámos. O nosso tempo era o tempo dos construtores, prestávamos toda a atenção à argamassa que uniria os ladrilhos da grande casa chilena, e nenhuma à conjura porque éramos e somos mulheres e homens de honra.

A maior expressão cultural de um povo é a sua organização, e fomos um povo muito culto porque a nossa organização, polifacetada, plural, às vezes docemente anárquica, orientava-nos para a vida. O sonho de Salvador Allende era elevar a expectativa de vida dos chilenos para os níveis dos países desenvolvidos. O seu desafio pessoal era permitir que cada chileno tivesse vinte anos mais para desenvolver a sua capacidade criadora, o seu engenho, e para que a velhice deixasse de ser um espaço de miséria e derrota, e fosse, pelo contrário, a soma de uma experiência, a herança de um povo.

Numa entrevista com Roberto Rossellini, o companheiro Presidente conta-lhe que as suas mãos de médico tinham realizado mil e quinhentas autópsias, que as suas mãos de médico conheciam a atroz força da morte e a precária fortaleza da vida. Salvador Allende foi o líder mais preclaro da América Latina, a vida era a sua companhia, e a vida foi a nossa bandeira de luta.

A trinta anos do crime, há miseráveis que interpretam o suicídio de Allende como uma derrota. Não entendem as razões de um homem leal, que no fragor do combate entendeu que o seu último sacrifício evitaria ao seu povo a máxima das humilhações: ver o seu dirigente, o seu líder, algemado e à mercê dos tiranos.

Queridas companheiras, queridos companheiros: não há maior honra do que a de ter sido companheiros de luta e de sonho como Salvador Allende. Não há maior orgulho do que esses mil dias liderados pelo companheiro Presidente.

Não somos vítimas nem do destino nem da ira de um deus enlouquecido. A história oficial, a mentira como razão de Estado, apresenta-nos como responsáveis de um crime que, cada vez que tentam explicar, as palavras fogem das suas bocas, pois não querem ser parte do vocabulário da vergonha. Se a nossa intenção de fazer do Chile um país justo, feliz e digno nos faz culpados, então assumimos a culpa com orgulho. A prisão, a tortura, os desaparecimentos, o roubo, o exílio, o não ter um país para onde voltar, a dor, se tudo isso era o preço a pagar pelo nosso esforço justiceiro, então saiba-se que o pagámos com o orgulho dos que não renunciaram à sua dignidade, dos que resistiram nos interrogatórios, dos que morreram no exílio, dos que regressaram para lutar contra a ditadura, dos que ainda assim sonham e se organizam, dos que não participam na farsa pseudodemocrática dos administradores do legado da ditadura.

Juntamente com Salvador Allende fomos protagonistas dos mil dias mais plenos, belos e intensos da história do Chile. Sobre nós deixaram cair todo o horror, mas não conseguiram apagar dos nossos corações o Memorial dos Anos Mais Felizes.

Quando, nos momentos mais duros dos nossos mil dias, a provocação do fascismo, da direita, do imperialismo ianque, fazia com que a ira se instalasse perigosamente nos nossos ânimos, o companheiro Presidente aconselhava-nos: "Vão para vossas casas, beijem as vossas mulheres, acariciem os vossos filhos." Agora, a trinta anos da grande traição, que a proximidade dos nossos, que a recordação dos que faltam, e o orgulho de tudo o que fizemos sejam os grandes convocantes do que devemos lembrar. Que as palavras "Companheira" e "Companheiro" soem como uma carícia, e bebamos com orgulho o vinho digno das mulheres e dos homens que deram tudo, que deram tudo pensando que não era o suficiente.
La mobilisation contre les atteintes du Patriot Act aux libertés individuelles prend de l'ampleur
LE MONDE | 10.09.03 | 13h32 • MIS A JOUR LE 10.09.03 | 15h35
Washington de notre correspondant

Ce jour-là, George W. Bush et John Ashcroft ont compris que la situation était plus grave qu'ils ne le pensaient. Le 22 juillet, par 309 voix contre 118, la Chambre des représentants a voté un amendement qui rendait inapplicable l'une des dispositions du Patriot Act, cette "loi patriotique" adoptée, en octobre 2001, pour renforcer les pouvoirs de la police dans la recherche d'éventuels terroristes sur le territoire américain. L'auteur de l'amendement n'était pas un farouche opposant démocrate de Detroit ou de San Francisco, mais un républicain de l'Idaho, Butch Otter, que ses votes classent parmi les plus conservateurs.

Prié d'organiser rapidement une contre-offensive, M. Ashcroft s'est lancé dans une tournée des Etats-Unis pour défendre le Patriot Act. Depuis qu'elle a été promulguée par M. Bush, cette loi a mauvaise réputation. Elle est dénoncée par les organisations de défense des droits de l'homme, dont l'une a même engagé une action en justice, accusant l'Etat fédéral de violer la Constitution. Cent soixante collectivités, dont trois Etats - l'Idaho, le Vermont et l'Alaska - et des grandes villes, comme Philadelphie ou Cleveland, ont voté contre son application sur leur territoire.

En janvier, quand le ministre de la justice a commencé à approcher les parlementaires en vue de prolonger cette loi par un "Patriot II", son projet a vite été transmis à des opposants, qui l'ont publié sur Internet. Les présidents des commissions des affaires judiciaires de la Chambre et du Sénat, tous deux républicains, ont fait savoir à M. Ashcroft que ce n'était pas la peine d'insister.

Dans le Patriot Act, qui s'étale sur 342 pages, c'est surtout la section 215 qui provoque l'inquiétude et la colère. Elle permet au FBI (Bureau fédéral d'enquêtes) d'"ordonner à toute organisation ou à toute personne, y compris les bibliothèques, les hôpitaux et les entreprises, de lui communiquer des dossiers personnels et des informations sur n'importe qui, en indiquant simplement que ces éléments sont "recherchés" dans le cadre d'une enquête concernant le terrorisme", résume la Fondation People for the American Way, dans un document publié mardi 9 septembre. En outre, la police peut imposer à celui qui communique ces données de garder le silence sur cette démarche. Des informations personnelles peuvent ainsi être communiquées à la police à l'insu de l'intéressé.

Après les attentats du 11 septembre, le gouvernement a cherché à renforcer l'arsenal judiciaire dont disposaient les services de police et de renseignement pour traquer les suspects. N'était-il pas absurde, par exemple, que le FBI eût renoncé à fouiller l'ordinateur portable du Français Zacarias Moussaoui, détenu depuis la mi-août, parce qu'il lui avait paru impossible d'obtenir de la justice le mandat nécessaire ?

Les mesures proposées au Congrès par M. Ashcroft, devenues le Patriot Act, consistent donc, principalement, à ouvrir des brèches dans le mur légal séparant, depuis les années 1970, les activités de police judiciaire et de renseignement. Les policiers peuvent maintenant employer les moyens du contre-espionnage, et les informations obtenues par les agents de la CIA (Agence centrale de renseignement) peuvent être utilisées pour inculper un suspect et pour obtenir sa condamnation par un tribunal.

Le ministre de la justice s'est heurté, dès le début, à de fortes résistances. Les "libéraux", c'est-à-dire la gauche, et les "libertariens", de droite, se sont unis pour défendre les libertés individuelles contre les incursions de l'Etat. La loi a fini par passer, pourtant, à un moment où l'on comptait beaucoup de gens prêts à "renoncer à la liberté pour obtenir la sécurité", selon la formule de Jefferson - "ceux-là n'auront et ne méritent ni l'une ni l'autre", ajoutait, il y a deux siècles, l'auteur de la Déclaration d'indépendance. Un sondage de l'institut Gallup montrait, en janvier 2002, que 49 % des Américains approuvaient les initiatives du gouvernement pour lutter contre le terrorisme à condition qu'elles respectent les libertés fondamentales, mais que 47 % d'entre eux étaient prêts à soutenir ces mesures même si elles violaient les libertés.

Un an et demi plus tard, le climat a changé : il n'y a plus que 29 % des Américains pour approuver des dispositions qui enfreindraient les libertés, tandis que 67 % d'entre eux les refusent. Selon le même institut, 55 % des Américains estiment que le gouvernement a respecté l'équilibre entre sécurité et liberté, mais les élus, les militants des droits de l'homme, les avocats, ne partagent pas, en général, cette quiétude.

"Nous avons utilisé les outils fournis par le Patriot Act pour assumer notre responsabilité, qui est de protéger le peuple américain", a déclaré M. Ashcroft en terminant sa tournée, mardi, à New York. Comme aux quinze autres étapes de son périple, commencé le 20 août, le ministre de la justice s'est adressé, dans une sale fermée, à un public de policiers et de magistrats. Dehors, des manifestants, répondant à l'appel de l'American Civil Liberties Union et d'autres organisations de défense des libertés, criaient : "Hé ! Ashcroft, tu abandonnes la Déclaration des droits !", "Ashcroft, rentre chez toi !"

Patrick Jarreau

• ARTICLE PARU DANS L'EDITION DU 11.09.03
Washington Fez Tudo para Derrubar Allende
Por PASCAL RICHÉ*
Quinta-feira, 11 de Setembro de 2003
jornal.publico.pt

No dia 19 de Fevereiro, durante uma mesa redonda com estudantes de liceu, o secretário de Estado norte-americano, Colin Powell, foi interrogado sobre "o golpe de Estado que os Estados Unidos organizaram no Chile, em 1973". Sem pôr em causa a pergunta, o chefe da política externa americana respondeu: "Não é uma parte da história de que possamos orgulhar-nos." Pela primeira vez, um responsável norte-americano reconhecia o papel dos EUA no levantamento militar contra Salvador Allende. O comentário teve o condão de enervar alguns dos actores da época. William Rogers, encarregado da América Latina no Departamento de Estado nos anos 70, acusou Powell de "alimentar uma patranha".

Assim, desde a desclassificação dos documentos relativos a este período, decidida pelo Presidente Clinton, as dúvidas acabaram: "Se os Estados Unidos não participaram directamente na conjura de 11 de Setembro de 1973, fizeram tudo para preparar o terreno para um golpe militar contra Allende, que era um dirigente democraticamente eleito. A sua responsabilidade não é menos grave", afirma Peter Kornbluh, investigador dos Arquivos de Segurança Nacional, em Washington.

48 horas para um plano de acção
Kornbluh, 47 anos, jogou um grande papel, em 1999 e 2000, para facilitar a desclassificação dos arquivos da CIA. Sempre que a agência de informações resistia a publicar certos documentos, ele convocava a imprensa. Explorando a enorme massa de papéis desde então no domínio público (1), acaba de publicar o livro "The Pinochet File" (The New Press). É o quadro mais completo até hoje sobre o papel desempenhado pelos Estados Unidos no Chile.

A implicação norte-americana começa logo no dia 15 de Setembro de 1970, decorridos apenas onze dias sobre a eleição de Allende. Durante uma reunião na Casa Branca, o Presidente Nixon ordena à CIA que impeça a investidura do líder socialista, prevista para o diz 4 de Novembro. As notas manuscritas tomadas durante uma reunião pelo director da agência, Richard Helms, testemunham-no: "Uma possibilidade em dez talvez, mas salvar o Chile!" "Não implicar a embaixada.". "Dez milhões de dólares, ou mais se for preciso.". "Trabalho a tempo inteiro, os nossos melhores homens.". "48 horas para um plano de acção.".

Helms leva estas orientações para os seus serviços: "O Presidente Nixon decidiu que um regime Allende no Chile não é aceitável para os Estados Unidos. Pede à agência que impeça Allende de aceder ao poder, ou que o deponha ["unseat him"]. Não era preciso ser mais claro. Uma "task force" foi criada, confiada ao agente David Philips. Foi o projecto "Fubelt" (2). Henry Kissinger, conselheiro para a Segurança Nacional, supervisionaria tudo.

O lançamento da Track II
A CIA desenvolve a Track II (Pista 2), assim chamada para a distinguir da campanha contra Allende realizada em cooperação com a embaixada americana e o Presidente chileno democrata-cristão, Eduardo Frei. O objectivo da Track II é identificar os militares capazes de levar a bom porto um "putsch" e de lhes levar uma ajuda financeira e um apoio técnico.

Quatro "bandeiras falsas" (agentes capazes de esconder a nacionalidade americana) são enviados para Santiago para reforçar a "estação" da CIA. Apenas descobrem "um único dirigente militar de estatura nacional aparentemente decidido a expulsar Allende pela força", mas mesmo ele é insuficientemente brilhante: trata-se do general na situação de reforma Roberto Viaux, que já tinha, sem sucesso, tentado derrubar Eduardo Frei, em 1969.

Apesar da opinião desfavorável do embaixador Edward Korry, o posto da CIA em Santiago advoga o apoio directo a um "putsch". No dia 5 de Outubro, Kissinger dá luz verde. Vinte e quatro horas depois, a CIA, em Langley (sede da agência nos arredores de Washington) envia uma mensagem para a sua equipa em Santiago: "X [nome censurado] ordena-vos que contactem o Exército para lhe fazerem saber que o Governo americano deseja uma solução militar e a apoiará, agora ou mais tarde.".

Há um obstáculo no caminho dos candidatos ao "putsch". Chama-se René Schneider, é o chefe das forças armadas e tem o agravo de obedecer à Constituição e ao primado do poder civil sobre o militar. A CIA decide então "apadrinhar", no momento oportuno, o seu rapto. Financia e arma Viaux e os jovens oficiais que lhe estão próximos. Quando o ex-general pretende tentar o golpe, a CIA opõe-se, julgando a acção prematura. "Preserve os seus efectivos. Virá o tempo em que o senhor e os seus amigos poderão agir. Continua a ter o nosso apoio."

Porém Viaux não ouve. Rapta Schneider e mata-o, mas a conspiração fracassa. A CIA tenta abafar a questão, continuando a financiar o grupo de amotinados e comprando o seu silêncio com 35 mil dólares. Nixon envia a Frei um mensagem de condolências pelo "repugnante acontecimento".

"Fracassou, o filho da mãe"
Allende acede ao poder no dia 4 de Novembro de 1970. O episódio Schneider arrefeceu Washington. Porém o objectivo "derrubar" Allende permanece, como o testemunham as actas do Conselho Nacional de Segurança do dia 6 de Novembro. "Temos de fazer o possível para o prejudicar, para o fazer cair", diz então o secretário da Defesa, Melvin Laird.

A ideia de ajudar directamente os conspiradores foi enterrada, mas todos os esforços são feitos para criar "um clima de golpe de Estado": levantamento de um "bloqueio invisível", financiamento do jornal de direita "El Mercúrio" e do Partido Nacional, etc. O grupo de telecomunicações ITT ajuda a CIA a favorecer o caos económico. Mas sem tomar muitas precauções: alguns documentos chegam ao "Washington Post", que publica um artigo sobre as conspirações norte-americanas.

Indignação em Santiago, idem no Congresso americano. Nixon fica furioso com o embaixador Korry, cujas palavras são mencionadas nos documentos da ITT reproduzidos pelo Post (ele explica que Nixon lhe ordenou que fizesse o possível para impedir a chegada de Allende ao poder). "De onde é que isto saiu?" - enerva-se Nixon numa conversa telefónica, acrescentando: "Pronto, é verdade. Ele recebeu essa ordem. Mas falhou, o filho da mãe! Esse é que é o problema. Ele devia ter impedido Allende de chegar ao poder!"

"Golpe de Estado próximo da perfeição"
O Congresso abre um inquérito. Apesar das pressões dos "duros" do escritório da CIA em Santiago, a agência desaprova qualquer ajuda directa aos candidatos golpistas. No dia 8 de Setembro de 1973, a agência é avisada de um golpe de Estado em preparação. Alerta a Casa Branca. No dia 11, transmite um pedido dos conjurados: os Estados Unidos ajudá-los-ão se as coisas correrem mal? Washington não vê necessidade de responder: "O golpe de Estado ficou próximo da perfeição", declara entusiasmado o tenente-coronel Patrick Ryan, encarregado das forças navais americanas em Valparaíso, num relatório que envia a Washington.

(1) www.gwu-edu/~nsarchiv/latin_america/chile.htm

(2) O código do Chile no jargão da CIA

*Exclusivo Público/Libération