quinta-feira, abril 20

Entrevista feita pela revista Visão a Amos Oz.

Pelas terras de Amos Oz
Viu nascer o estado israelita, viu por dentro duas guerras e vê, agora, entre judeus e muçulmanos, alguns sinais de aproximação. Refugiou-se no deserto para contar histórias de gente infeliz lidas como metáfora de um país. Conversa com o escritor que dizem ser profeta
SARA BELO LUÍS / VISÃO nº 627 10 Mar. 2005

Da varanda do MishkenotShaananim , vêem-se as muralhas. Dali em diante, aponta Amos Oz , era território jordano. A memória do autor (que combateu na guerra que, em 1967, haveria de reunificar Jerusalém sob o domínio israelita) é a memória dessa cidade onde Amos Oz nasceu há 66 anos e que, daqui a pouco, deixará. Em direcção ao Sul, ao deserto do Negev e também ao silêncio que lhe permite continuar a escrever histórias de famílias infelizes nas quais – contra a sua vontade – todos tendem a ver alegorias políticas.

Daquele que escolheu para apelido a palavra hebraica que designa «coragem» não surgirão declarações idealistas sobre o conflito israelo-palestiniano . Amos Oz é o homem do compromisso sendo que este, no Médio Oriente, não quer bem dizer a mesma coisa que no mundo ocidental. Em A TaleofLoveandDarkness , o seu último livro que as Edições Asa ainda estão a traduzir para português, Amos Oz conta na primeira pessoa a história da sua família que, por vezes, também se confunde com a história do povo de Israel. Talvez por isso lhe chamem profeta. Ele é que – como adiante se confirmará – não se sente muito confortável nessa pele.

VISÃO: O que é que devia acontecer para que, no futuro, possamos dizer que os acordos de Sharm-el-Sheik foram bem sucedidos?

AMOS OZ: Teremos que ver os dois lados a recuar em certos aspectos. E ao mesmo tempo.

Em sua opinião, há condições para isso acontecer?

Não vou fazer uma profecia aqui. É difícil ser profeta em Jerusalém porque se trata de um lugar onde há demasiada competição. Pode acontecer, embora eu não espere que seja fácil nem rápido porque, em ambos os lados, existem fanáticos que tudo fazem para destruir o compromisso e, assim, construir este cemitério. A paz é uma cirurgia dolorosa entre israelitas e palestinianos.

O assassinato do antigo primeiro-ministro libanês Hariri é uma peça deste xadrez?

No sentido lato, é. Porque também ele demonstra o conflito existente não entre o Islão e o Ocidente, mas sim entre os muçulmanos e os fanáticos.

Não se trata de um choque de civilizações?

De modo nenhum. Fanáticos e fundamentalistas existem no Médio Oriente, nos Estados Unidos (e não muito longe do Governo americano) e na Europa.

E a ideia é sempre a mesma – se não gosto de alguém, então, mato-o juntamente com os seus vizinhos; se não concordo com alguma coisa, então, mando-a pelos ares. Pessoas que fazem explodir clínicas de aborto na América ou vandalizam mesquitas e sinagogas na Europa só diferem de BinLaden na escala da sua acção. A verdadeira guerra mundial é travada entre os fanáticos, para quem os fins justificam os meios, e todos nós, que por acaso até acreditamos que a vida humana é sagrada.

Foi um dos fundadores do movimento PeaceNow . Que papel compete à sociedade civil neste preciso momento?

Fico contente que tenha mencionado a sociedade civil. A sociedade civil é tolerante por definição. Acredito que a existência da sociedade civil é uma pré-condição para a democracia.

Existe uma sociedade civil em Israel?

Existe sim. E isso é o que a Europa parece ignorar. Para muitos europeus, Israel é ArielSharon e, por isso, é que nas últimas semanas os europeus se têm interrogado: O que é que aconteceu ao terrível Sharon ? Quem é este recém-nascido Sharon ? Este país é um grande fórum a céu aberto. Na Palestina, também existe uma sociedade civil nuclear. Não é muito forte, mas é o princípio de uma sociedade civil que, noutros países árabes, não chega a existir.

O Islão não tem grande apreço pela sociedade civil?

O Islão não é excepção. Temo que nenhuma religião tenha grande apreço pela sociedade civil.

Mas o que é que a sociedade civil israelita deve fazer?

Deve prosseguir com o que, até agora, tem sido feito. Deve dar todo o seu apoio de forma a promover a existência de mais compromissos pragmáticos. Não se trata de genuflectir e dizer aos palestinianos: «Abdicamos de tudo, dêem-nos o vosso amor. Vós sóis maravilhosos, nós somos terríveis. Perdoem-nos.» Neste preciso momento, penso que a sociedade civil (juntamente com os partidos de esquerda) deve impedir que a extrema direita derrube o Governo de Sharon . Isto pode parecer muito estranho, mas eu acordo a meio da noite a pensar que vou dizer aos meus delegados no knesset [parlamento de Israel] para votarem em Sharon .

O que é que, a seu ver, permitiu esta aproximação? Foi fundamental a morte de YasserArafat ?

Na sociedade israelita os problemas não são resolvidos porque, de repente, um dos partidos se arrepende e se considera um cretino. Nem sequer porque alguém inventa uma fórmula mágica que faz com que, de um momento para o outro, todos passem a adorar-se e a viver em lua-de-mel.

O « let"s makelovenotwar » do discurso pacifista tradicional...

...que, aliás, é uma declaração muito estúpida. A sociedade israelita está cansada e quer um compromisso. O que, para mim, permitiu esta aproximação foi o cansaço. E cansaço significa compromisso. E o compromisso não significa capitular, antes encontrar os outros a meio caminho . E isto pode acontecer, se se acabar com o pensamento idealista da Europa que considera que o compromisso é desonesto e oportunista.

A Europa está habituada a resolver os seus problemas com revoluções.

O que se relaciona com o facto de a Europa ser quase o mais violento dos cinco continentes. Se juntarmos todas as atrocidades cometidas por SaddamHussein e BinLaden , mesmo assim não pode justificar a quantidade de sangue inocente derramado pela Europa e pelos europeus. E esta é a razão pela qual eu considero que a Europa deveria ser um pouco mais cautelosa e táctil nos conselhos que dá aos judeus e aos muçulmanos, porque ambos foram vítimas dela.

Segundo o estereótipo europeu, é estranho que a paz esteja a ser feita por um falcão.

Não há nada de estranho nisso. Pense-se nos grandes líderes mundiais. Quem é que, na América e na União Soviética, conteve a guerra fria ? Vimos Churchill a desmantelar o império britânico, vimos De Gaulle , vimos Gorbachov , vimos Sadat a vir aqui a Jerusalém.

Falando agora na América. Foi influente a nova política americana para o Médio Oriente?

De uma forma determinante, não. Porque não é possível instaurar a democracia. Não sou daqueles pacifistas que criticam a violência a todo o custo. Às vezes, uma arma é necessária. Contudo, nesta questão, a América sabe a resposta. Em 1945, a América construiu a sociedade civil na Europa e no Japão com o Plano Marshall .

A «vergonha» de que a Europa nunca chegou a recuperar.

Mas, na minha opinião, esse foi talvez o acto mais grandioso de toda a história da humanidade. Os Estados Unidos deram uma parte do produto interno de todo aquele império a estrangeiros. Claro que o objectivo era travar Estaline e o comunismo, mas o Plano Marshall é a razão pela qual a sociedade civil europeia recuperou da crise. Por isso é que, agora, a Europa deve apoiar a sociedade civil na Palestina. A Europa tem, neste momento, a oportunidade de ser a «doadora» do Plano Marshall .

Novamente uma pergunta para o profeta: acredita mesmo que isso é possível?

Não sei se a Europa o fará, mas acredito sinceramente que o devia fazer. Pede-me profecias e, de profecias, eu só posso dar as do passado.

Defendeu que existem duas guerras no conflito israelo-palestiniano . A primeira – a justa – é aquela em que os palestinianos reivindicam um estado. A segunda – a injusta – tem a ver com os movimentos islâmicos que querem destruir Israel. A minha pergunta é: no que diz respeito a esta segunda guerra, Israel sempre fez jogo limpo?

Certamente que não. A primeira guerra travada por Israel é uma guerra de sobrevivência. A outra guerra é uma guerra travada para obter território que envolve direitos históricos e lugares sagrados.

E, em ambos os lados, esta é a história do dr.Jekill e Mr . Hyde . O problema é que, como num filme desprezível de Hollywood, os europeus sempre quiseram saber quem são os bons e quem são os maus. Os europeus sempre quiseram assinar petições contra os maus, adensar manifestações a favor dos bons e, assim, sentirem-se bem com a sua própria consciência. Mas eu tenho uma percepção diferente do conflito israelo-palestiniano . Em certo sentido, o século XX foi de fácil compreensão.

Como assim?

Colonialismo era mau, descolonização era boa. A guerra no Vietname estava errada, a saída da América do Vietname estava certa. O apartheid preconizava o mal, o fim do apartheid preconizava a perfeição. Só que tudo isto criou na cabeça dos europeus uma lógica que, aplicada ao Médio Oriente, não funciona. Porque nem israelitas nem palestinianos têm para onde ir.

Nem como escritor se sente identificado com a Europa?

Não me vejo como europeu porque, em primeiro lugar, escrevo em hebraico.

E, depois, porque não só os meus pais, que eram europeus, foram violentamente chutados da Europa como parte da minha família foi morta pela Europa. Em mim encontrará um homem que está farto de cromossomas europeus.

Mudou-se há alguns anos para o deserto. O que é que procura no Negev ?

Algum silêncio, alguma solidão e algum abandono que me permita escrever. Escrever um poema é como se fosse uma noite de amor, escrever um conto é um namoro, mas escrever um romance é um casamento.

Quando um dia lhe disseram que daria um excelente primeiro-ministro, respondeu que não era VaclavHavel . Mas qual deve ser, em sua opinião, o papel de um escritor num país destes?

Não posso responder a essa pergunta. Tudo o que posso fazer é dizer o que sinto que devo fazer. E, no meu caso, sinto que devo erguer a minha voz e gritar. Escrevo muitas vezes artigos e publico-os sempre em jornais de direita. Porque eu não quero comunicar com as pessoas que pensam da mesma forma que eu, o que quero é chegar aos outros. Também integro algumas manifestações e tenho encontros com palestinianos.

No passado, combateu na Guerra dos Seis Dias e na Batalha de YomKippur . Também é uma forma de participar?

Sim, é verdade. Nunca lutarei porque alguém discorda de mim ou por aquilo a que vulgarmente se chama interesses nacionais ou por territórios extras. Prefiro ir para a prisão a lutar nestas circunstâncias. Apenas lutarei se alguém tentar matar-me, a mim ou ao meu próximo, e se alguém tentar tornar-me num escravo. Isto é que os europeus não compreendem – que, no mundo real, se tem que escolher entre vários tons de cinzento.

Existe uma tendência para ler as suas histórias de forma alegórica. Serão elas um modo de fazer a história deste país?

Eu só quero contar a história de algumas famílias. Se vivesse numa sociedade onde não me deixassem escrever, faria como MilanKundera que, sob o domínio comunista, criava histórias alegóricas. Mas, quando pretendo defender que o conflito entre israelitas e palestinianos se resolve com um compromisso, sento-me e, numa hora, escrevo um artigo. As pessoas tendem a ler o trabalho dos escritores provenientes de qualquer zona problemática do mundo como uma alegoria acerca do modo como eles vêem o que se passa.

É uma perda de tempo considerar todos os romances dos escritores da América Latina como nada mais do que fábulas de ditadores. É uma perda de tempo ler uma história escrita por mim como nada mais do que uma simbologia da guerra israelo-palestiniana .

Não é possível escrever a História através da ficção?

Claro que é. Mas esse não é o meu ramo. Se alguém me disser que a Hannah [de O Meu Michael ] representa 0,2% da população israelita, não me importo. Não estou interessado em elegê-la primeiro-ministro.

Então começou a escrever apenas porque queria contar histórias?

Absolutamente. Não conheço ninguém que não precise de contar ou de ouvir contar histórias. E precisamos de o fazer porque temos necessidade de comparar as nossas vidas com as vidas dos outros. Um grupo de mulheres velhas sentadas a recordar tempos antigos, um grupo de homens carregados de memórias de que por vezes não se lembram, dois amantes que, à noite, na cama, contam um ao outro o que se passou. Tudo isto vem antes da religião, da política e da sociologia e não pode ser justificado pelo desejo de mudar o governo ou o mundo. Ler um romance e começar uma revolução? Este entendimento só demonstra que quem o profere não percebeu nada do romance.

Gostava que me contasse a história de quando conheceu BenGurion .

Conto essa história no meu último livro,

A Tale of Love and Darkness.Em 1959, BenGurion assinou um ensaio sobre Espinosa. E eu escrevi uma carta discordando da sua interpretação da obra de Espinosa, carta essa que, para meu espanto, foi publicada. Recebi depois um telefonema convocando-me para um encontro às seis da manhã do dia seguinte. Eu era apenas um soldado, nem sequer tinha uns sapatos para além das botas da tropa, e ia participar num debate ideológico-filosófico com o meu superior máximo?

E o que se seguiu não foi propriamente um debate.

Nada disso. Passei essa noite em claro e, no dia seguinte, tremia tanto que o secretário teve que me empurrar para dentro da sala onde estava BenGurion . Entrei e ele começou imediatamente a dar-me uma lição sobre Espinosa. Falou, falou e, quando o secretário o interrompeu, virou-se para ele e disse: «Não vê que estou a ter uma das melhores conversas dos últimos anos?» Continuou a falar e, no final, disse-me: «Gostei muito de falar consigo. Da próxima vez que estiver na cidade, apareça, por favor.»

domingo, abril 2

O RUMO ESTRATÉGICO DO BLOCO
Mesa Nacional do Bloco de Esquerda
Este texto cumpre uma função distinta das resoluções que formam a tradição da
actividade de direcção no Bloco. Em vez de se pronunciar sobre aspectos concretos da
intervenção e sobre escolhas de curto prazo, como o faz normalmente a Mesa Nacional,
ou sobre orientações de fundo, como o faz a Convenção, este texto é um relatório que
propõe uma reflexão mais aberta sobre identidade e escolhas estratégicas. Visa discutir
hipóteses de trabalho, interpretações, ideias e projectos sem que estejam
necessariamente articulados com decisões e propostas políticas imediatas.
Este debate quer ajudar a definir prioridades para os próximos três anos, contribuindo
para impulsionar o crescimento do Bloco como uma força determinante na luta social e
política da esquerda em Portugal.
I
ntrodução: três desafios ao Bloco
Na sequência das eleições presidenciais, foram colocadas ao Bloco três questões muito
interessantes e actuais. Foram apresentadas por opositores políticos, duas por José
Manuel Fernandes, director do Público; e outra por Pedro Lomba, cronista do Diário de
Notícias. A intenção dessas críticas - que não é independente da condenação militante
que ambos alimentam contra o Bloco - é razoavelmente irrelevante para o propósito
desta discussão, porque as questões interessam em si mesmas.
A primeira injunção de José Manuel Fernandes é esta: o tempo da contracultura
acabou, e por isso as causas “fracturantes” do Bloco já não mobilizam. Assim sendo, o
PS vai recuperar os votos perdidos e voltaremos ao business as usual.
A segunda questão de Fernandes é o contrário da primeira: o Bloco só poderia
sobreviver se viesse a ser um partido igual ao PC no controlo de sindicatos e de
movimentos sociais que lhe garantissem a fidelização de uma base social.
A terceira questão, de Pedro Lomba, resume as duas anteriores: o Bloco não teve maus
resultados, mas se não cresce em cada eleição que disputa, não conseguiria alcançar o
seu objectivo, que seria o de se tornar um parceiro governamental do PS.
Qualquer destas formulações mistura desejos com realidades, ou procura domesticar o
sentido crítico e a força transformadora que o Bloco representa, condenando-o ao
estatuto de parceiro anónimo e menor no sistema político de dominação. Em qualquer
caso, responder em profundidade a estas questões é uma forma de sabermos para
onde vamos e o que queremos.
Primeira questão: a contracultura acabou?
A primeira questão de José Manuel Fernandes nasce de uma irritação tantas vezes
repetida, quer nos seus editoriais, quer em diversas análises de outros comentadores,
em particular Pacheco Pereira, que insistem na denuncia da “conspiração esquerdista”
que estaria por detrás da defesa anestesiante de “causas modernas”. Uma revista de
direita, a Sábado, ao entrevistar candidatos do Bloco, costuma precedê-las de um
editorial que apela aos leitores para “não votarem neles”, porque teme que não
percebam o perigo. O antigo director do Expresso, José António Saraiva, escreveu
vários editoriais a fulminar o Bloco, vacinando os seus leitores contra a ameaça.
A irritação resume-se em poucas palavras: o Bloco teria crescido como fenómeno
urbano alimentado pela moleza do PS guterrista e pelas novas ideias nascidas da
cultura modernista associada à “liberalização dos costumes”. Assim, teria emergido por
1
fora do sistema político, nele se instalando abusivamente e sem permissão, o que não
deixa de ser verdade.
Deduzir daqui que se trata de um fenómeno efémero é um pouco mais difícil.
Primeiro, porque o Bloco tem sete anos e foi no último que obteve os seus resultados
eleitorais mais expressivos. Esse crescimento ocorreu em circunstâncias
invariavelmente diferentes: quando Guterres governava, mas também quando esse
governo entrou em colapso; quando a direita e a extrema-direita se coligaram no
governo, mas também quando o PS conseguiu a maioria absoluta; e mesmo quando o
PS se dividiu nas presidenciais, e do seu interior se apresentou um candidato capaz de
polarizar muitos votos à sua esquerda. Este crescimento não foi efémero, mas contínuo.
Em 7 anos – e independentemente das vicissitudes e particularidades de cada eleição –
o espaço político do Bloco bem mais do que duplicou. Entre autárquicas, presidenciais e
legislativas, ele traduz hoje a opinião de 4 a 6,5 por cento dos eleitores, sendo certo que
o universo dos que já votaram Bloco pelo menos uma vez é seguramente bem maior do
que as percentagens assinaladas. Estes factos, ocorridos num espaço de tempo muito
curto, representam uma transformação profunda no mapa político português. Nada
indica que essa mudança seja efémera, e muito menos pelos argumentos invocados.
Com efeito, as pulsões de modernização cultural a que se refere Fernandes não estão a
desaparecer – parece ocorrer precisamente o contrário, se atendermos ao crescimento
de movimentos pela paridade entre homem e mulher, ao número de países que tem
legalizado o casamento de homossexuais, à facilidade com que a sociedade portuguesa
aceitou e promoveu a mudança de política sobre as drogas, e sobretudo à abertura
crescente de sectores dos movimentos populares em relação a todas as lutas pela
igualdade. É verdade que o Bloco é o principal responsável pelo facto da agenda
política nacional, nos últimos anos, ter passado a incluir um conjunto de novas
exigências civilizacionais. E é também um facto que esses temas, ante tabu, têm feito o
seu caminho na sociedade. Porque eles respondem ao atraso e ao atavismo que
continuam ainda a marcar a paisagem das ideias e práticas sociais no nosso país.
Desse ponto de vista, o mérito do Bloco - na ausência de uma tradição associativa
popularizada neste tipo de causas - foi o de procurar sintonizar novas opiniões públicas,
neste país ainda tão conservador, com os sinais do tempo. É seguro que esta coragem
contribuiu para a emergência do bloquismo, enquanto fenómeno político novo. Mas esta
agenda, ao contrário do que pensam os nossos críticos, está longe de estar esgotada.
O que mudou foi a capacidade que essas causas tiveram de contaminarem as opiniões
e se popularizarem. O Bloco não “perde espaço” porque outros sejam hoje mais
sensíveis a tal tipo de exigências. Pelo contrário.
Se formos mais exigentes sobre a ideologia que sustenta a “profecia” de Fernandes – o
fim da contracultura que esvai o potencial de crescimento do Bloco – podemos verificar
que há um intenso debate nas entranhas desta certeza.
O termo “contracultura” foi inventado nos Estados Unidos para designar a cultura hippy
dos anos sessenta – o quer parece ter pouca ligação com o nosso debate político. Mas,
se estudarmos os pontos de vista dos neo-conservadores que agora suscitam a
questão, então pode compreender-se que a contracultura, para estes autores, se tornou
um conceito muito mais amplo e ameaçador. Ao usarem o termo, estão a falar de outra
coisa que não a cultura hippy.
Os teóricos neo-conservadores radicalizaram-se nos EUA em resposta à contestação
dos anos 60 e 70, alegando que os jovens estavam possessos de niilismo, que
Nietzsche destruía os seus referenciais e que a civilização ocidental estava em perigo.
Tudo corria mal: Darwin desconstruira a criação bíblica, Marx desconstruía a sociedade
e Freud ainda por cima desconstruía o ego. Mas o que mais incomodava os neoconservadores
era a mobilização massiva de jovens contra a guerra do Vietname, e o
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desenvolvimento de uma vida alternativa à existência burguesa, representada pela
tradicional american way of life.
Um dos mais representativos neo-conservadores, Allan Bloom, escreveu em 1987 um
best-seller, “The Closing of the American Mind” (traduzido em português como “A
Cultura Inculta”, pela Europa-América, 2001) que defendia que a raiz desta
contracultura era “o projecto político do Iluminismo que queria precisamente tornar a
Bíblia e outros livros antigos, inofensivos” (p.319). O Renascimento, o racionalismo, o
espírito científico moderno, a ideia da técnica, a criação do sentido crítico com as artes
contemporâneas, todos partilhariam responsabilidades na emergência desta
contracultura que queria minar a autoridade social das elites.
Para estes neo-conservadores, a contracultura tem portanto um sentido muito preciso:
representa a Modernidade que ofende a Antiguidade. A Modernidade é para eles a
contracultura que persegue os grandes livros sagrados da cultura eterna – e portanto
religiosa – e que despreza as grandes cidades do conhecimento, Atenas e Jerusalém,
berços da civilização ocidental.
Assim, a solução neo-conservadora é simples: regressar ao espírito dos “reis-filósofos”
da Grécia, a “verdadeira comunidade” (p.325), que incorpora também o modelo de
Esparta, que faz a guerra para decidir a paz, e que mantém a religião como cimento
social. Curiosamente, muitos dos primeiros neo-conservadores, como o pai da corrente,
Leo Strauss, nem sequer eram religiosos. Mas achavam que a religião devia ser
promovida em nome da coesão social, e enquanto linguagem que as elites deviam
dominar, para aquietar as massas. O Prémio Nobel da literatura Saul Bellow, que era
amigo próximo de Bloom, retratou num romance, “Ravelstein”, a duplicidade entre a sua
própria vida e este apego público aos grandes valores conservadores da família e da
religião. Através desses valores, os neo-conservadores defendem o domínio da elite
como fim em si mesmo e como destino para além de qualquer escolha democrática. Na
melhor das hipóteses, a esta competiria confirmar e legitimar as elites.
João Carlos Espada, o nosso neo-conservador mais enfático, repete ritualmente esta
vulgata nas suas crónicas no Expresso, quando levanta a voz contra os direitos civis
dos homossexuais, a despenalização do aborto ou a ideia subversiva da paridade entre
homens e mulheres. Espada explica interminavelmente como o ideal vitoriano de uma
sociedade de gentlemen é o único modelo aceitável de partilha de responsabilidades.
Deus, Pátria, Família e George W. Bush são por isso barreiras contra a “contracultura”,
e essa guerra trava-se tanto nos jornais e televisões, como nas areias do Iraque.
Do outro lado, as culturas modernistas assumiram por todas as formas o desafio de
romper e superar a Antiguidade, de laicizar o Estado – a defesa da liberdade religiosa
foi a primeira grande batalha moderna pela liberdade –, de sustentar a democracia
como expressão de direitos inclusivos, e de promover a redistribuição como forma
essencial de justiça.
Essa agenda moderna, mais vasta e global do que a estritamente associada à
“liberalização dos costumes”, também está muito longe de esgotada. Desse ponto de
vista, a profecia de José Manuel Fernandes é duplamente inconsistente: subestima a
força da corrente de opiniões que rompe com o conservadorismo e que, por essa razão,
também não se revê nas esquerdas mais tradicionalistas e institucionalistas; e decreta
os finados de um processo de transformação cultural e social que ainda se encontra na
sua fase de desenvolvimento e ampliação.
Fernandes ignora ainda um outro factor, mais importante, que é o modo como o Bloco
vem definindo a sua própria identidade: a primeira campanha eleitoral não se dedicou
apenas nem principalmente à problemática das toxicodependências, por importante que
ela fosse e é. Essa campanha foi marcada por uma proposta concreta e detalhada de
reforma fiscal. Do mesmo modo, a última foi atravessada por uma proposta estratégica
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e concreta para a sustentabilidade da segurança social. O entendimento que o Bloco
tem dos “temas fracturantes” é muito mais amplo do que os media definiram como tal. E
assume para qualquer dessas rupturas uma ambição: a de que ganhem a maioria das
opiniões e se traduzam em política.
Ao falar para a grande maioria da população, o Bloco constrói também um novo
referencial de cultura de esquerda, que mobiliza tanto as causas do trabalho, como o
conjunto dos referenciais da transformação social. Na realidade, o que é novo em
Portugal é a afirmação de uma esquerda que considera que a luta emancipatória do
Trabalho é inseparável de todos os outros referenciais de transformação e
modernização. E que entre os diferentes conflitos que atravessam a sociedade não têm
que se estabelecer hierarquias ou subordinações ao serviço de uma visão partidária,
mas antes desenvolvimento combinado e articulação.
O Bloco nunca se prendeu nem prenderá a agendas isolacionistas, porque a
abrangência é a que pode vencer o conservadorismo e o atraso do país. Essa agenda
defende radicalmente o princípio da democracia responsável, das políticas sociais de
desenvolvimento, do pleno emprego e a reinvenção do Estado social. Essa agenda
modernista opõe-se também à guerra infinita e contribui para a mobilização do
movimento social pela Paz, o facto mais marcante da renovação das esquerdas nos
últimos anos. A própria ideia de socialismo é a mais moderna das noções da política,
porque afirma uma visão do mundo onde a representação e a hierarquia são invadidas
pela intervenção, decisão e controlo pelos produtores, pelos consumidores e pelos
cidadãos. O socialismo quer radicalizar a democracia sobre todas as escolhas sociais
fundamentais, ao mesmo tempo reclama a centralidade da responsabilidade individual
nas opções privadas de vida. O socialismo é o exacto oposto do pensamento neoconservador.
Se esta agenda se puder transformar numa cultura, então terá uma força intrínseca
muito superior à actual, e é nessa referência que se cria a força e a fidelidade de um
campo político. Para o desenvolvimento do Bloco, precisamos que esta agenda se
transforme numa cultura.
Existe ainda uma outra razão para que esta agenda lute pela conquista da hegemonia
nas esquerdas e dispute o país: é uma agenda que aprende porque é tributária do
pensamento revolucionário europeu, mas por isso mesmo não pode ignorar outras
reflexões e pensamento de esquerda a nível internacional, nem muito menos os efeitos
que o processo de globalização introduz no espaço e no tempo, comprimindo uns e
outros. Sabemos que a resposta à globalização capitalista não se encerra nos marcos
do Estado-nação, mas reclama a luta eficaz por outra globalização; e sabemos que os
problemas colocados pelos movimentos migratórios de massas impõem novas reflexões
e respostas que dêem saídas positivas aos confrontos identitários que se desenvolvem
no espaço como nos Media que tudo mundializam. Episódios recentes, como o dos
acontecimentos dos bairros de Paris ou a guerra dos cartoons, colocam na ordem do
dia a urgência dessa reflexão, e rejeitam um ponto de vista exclusivista e “ocidental”
para pensar o mundo, como rejeitam categoricamente qualquer imperialismo cultural – é
através das suas diferenças e diversidades bem como dos direitos fundamentais de
toda a população que se pode alicerçar uma globalização solidária. Uma esquerda
socialista que cresce nos confrontos com as novas realidades, é uma esquerda que se
actualiza e interroga com o mundo inteiro. Só assim poderá vencer.
A nossa resposta é portanto oposta à profecia de José Manuel Fernandes: a cultura da
modernidade contra o conservadorismo não está a morrer, está bem viva e é na sua
expansão que se cria a base de ampliação social do Bloco para disputar a maioria
política.
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Segunda questão: cristalização ideológica auto-justificativa ou movimento
aberto?
A segunda grande questão colocada por José Manuel Fernandes é a sua própria
proposta de solução: o Bloco só pode viver e sobreviver se existir como o PCP, com
uma hierarquia rígida de controlo de sindicatos e organizações sociais. Naturalmente,
como só pode haver um PC, não há solução e o destino estaria traçado, para grande
alívio dos conservadores.
Dentro desta ideia estão duas teses fortes. Primeira certeza conservadora: só há
espaço para os partidos tradicionais, dois à esquerda e dois à direita, com um modelo
de governação que torne razoavelmente indistintas as políticas dos partidos alternantes
no governo, configurando um bloco central continuista por via da orientação de cada um
desses partidos quando chega ao poder. Segunda certeza conservadora: o campo
popular organizado será sempre muito minoritário e só pode ser representado de uma
forma, pelo modelo de partido centralizado, ideologicamente uniformizado e que
disciplina os movimentos sociais que dele dependem.
Nenhuma destas certezas é certa, e são pelo contrário erradas.
Em primeiro lugar, a ideia de que a política só tem espaço para o bloco central revelouse
inconsistente com as grandes flutuações eleitorais deste último ano. Pelo contrário, o
desgaste do continuismo liberal, devido à crise social que provocou desde a recessão
de 2003 que se prolonga até aos dias de hoje, tem vindo a aumentar e não a reduzir o
espaço político para a esquerda alternativa. O PS está numa situação mais fragilizada e
o seu governo mais vulnerabilizado agora do que no início do mandato. Durante todo o
ano de 2006, o desemprego vai continuar a aumentar e as medidas do governo
continuam a penalizar os funcionários públicos, a acentuar uma lógica de privatizações
que alimentam o negocismo, e portanto a reforçar os elementos de confronto social. O
Bloco tem mais espaço político no início de 2006 do que tinha no início de 2005. O
Bloco cresceu e pode e deve continuar a crescer muito mais.
Mas é a segunda ideia que nos interpela mais directamente, porque se fosse certo que
o movimento social organizado não se pode transformar, então a viabilidade de uma
esquerda socialista popular estaria de facto posta em causa. Esta certeza de José
Manuel Fernandes deve por isso ser discutida em detalhe.
Comecemos pelos riscos actuais. O reforço da linha Jerónimo de Sousa dentro do PC,
com as suas três vitórias eleitorais (7,6% nas legislativas, 10,5% nas autárquicas, 8,6%
nas presidenciais), será apresentado como uma prova da utilidade da substituição da
“linha de direita” de Carlos Carvalhas e do retorno à corrente histórica depois de um
interregno de dez anos. Essa história, como é evidente, não pode ser assim resumida,
dado que Carvalhas foi indicado por Álvaro Cunhal como seu sucessor, nunca tendo
ousado ir muito longe em modificações da linha política – e ainda porque a história do
PCP tem sido a de afastamentos de linhas de “direita” para depois os que os puseram
de lado recuperarem as suas orientações. Em qualquer caso, esta mudança significa
para já e provavelmente no essencial dos próximos três anos um partido que quer
consolidar o domínio das organizações sociais, mesmo em prejuízo da sua
representatividade.
A primeira vítima dessa orientação pode ser a CGTP, que corre novos riscos de
fechamento com a substituição de Carvalho da Silva na sua coordenação. Ora, a CGTP
tem tido um papel fundamental como a principal organização social na criação de
mobilização política contra o governo e o seu recuo seria muito prejudicial à luta dos
trabalhadores e uma vantagem inestimável para o governo do PS. Nesta fase da luta
social, definida por mobilizações muito defensivas, os sindicatos perdem influência
organizada mas são ainda uma referência eu não se pode perder. Esta é uma questão
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fundamental que a estratégia de controlo do PC agrava porque limita a
representatividade dos sindicatos. E não pode haver uma leitura simplista das formas
de luta, porque algumas estão subordinadas a esta lógica: no sindicato de professores,
a lista que pretende subordinar o sindicato ao PC faz um discurso contra o “controlo
partidário”; as posições mais ofensivas do PC nos sindicatos assumem por vezes a
forma de propostas mais radicalizadas, como a da greve da administração pública de
Dezembro, mas enfraquecem o movimento sempre que não têm o apoio suficiente
porque se prestam a uma lógica demonstrativa segundo um calendário partidário. Essa
tentação de controlo aparelhístico está a destruir o esboço de Fórum Social Português e
a oportunidade que representava de contacto aberto e horizontal entre movimentos
sociais.
Neste contexto, a estratégia do PC é afirmar um partido sempre mais purificado
ideologicamente, mais centralizado e com uma organização social estritamente
subordinada. Essa estratégia tem uma contrapartida, que é a convicção de que este é o
processo de acumulação de forças suficiente para vir a inclinar o PS a uma negociação
e partilha de poder.
O Bloco escolheu desde o início um modelo contraditório com este, tanto pelo método
quanto pelos pressupostos. Achamos inviável, inútil e pernicioso fazer a disputa do
controlo das organizações sociais como forma de garantir a sua subordinação
hierárquica a um partido ou a outro. Pelo contrário, a intervenção dos militantes
bloquistas nos movimentos populares deve procurar desenvolver o quadro de abertura,
de pluralidade e de democracia do movimento e aí afirmar alternativas políticas. Tanto
nos sindicatos quanto nas Comissões de Trabalhadores, como noutros movimentos
sociais, esse é o processo que desenvolvemos ou para o qual contribuímos. A
legitimidade militante dos activistas do Bloco nas organizações sociais decorre da sua
capacidade de promoção de alternativas de orientação como do seu respeito pela
democracia e pluralidade orgânica desses movimentos.
De facto, temos razões muito fortes para entender que todas as organizações e
movimentos sociais devem ser abertas e plurais: essa é a condição para o seu
reconhecimento social e a sua capacidade de representação, sobretudo nos dias de
hoje. Ao contrário das sociedades menos estratificadas do início do século XX, em que
as organizações partidárias da social-democracia e depois dos partidos comunistas
organizavam comunidades mais unificadas e com uma cultura comum de referência, as
sociedades contemporâneas vivem uma multipolarização com maior dispersão de
referenciais. Há um século, o proletariado industrial directamente produtivo era
largamente maioritário entre os trabalhadores urbanos e a produção de mais-valia era
praticamente confinada a essa classe no sentido estrito. Hoje, as funções produtivas
são mais complexas e mais dispersas e o proletariado, englobando todos os
trabalhadores que são explorados e não só os directamente produtivos, é um
aglomerado mais vasto mas também mais desidentificado. Em Portugal, há menos de
um milhão e meio de operárias e operários industriais – uma percentagem muito
elevada na Europa – entre os cinco milhões e meio de trabalhadores. O reconhecimento
desta diversidade deve fazer parte da identidade das organizações sociais, ou não
serão capazes de representar o trabalho. A formação de uma esquerda política a partir
das esquerdas sociais depende dessa estratégia.
Mas o que é verdade em termos sociais é-o também em termos políticos.
Até agora, conhecemos dois tipos de tradição política de partidos: as pequenas
organizações de extrema-esquerda baseadas na propaganda, e os partidos menores ou
maiores com raízes populares, como o PC.
Nenhuma destas tradições responde à situação actual. Pior: ambas são soluções
comodistas e derrotadas. A escolha de uma pequena organização ideologicamente
6
unificada e purificada pode consolidar um referencial para efeitos internos, mas abdica
desse modo de ganhar a experiência da disputa política e social porque não quer criar a
capacidade de mobilizar e por isso não constitui uma direcção. Procura construir um
mito, mas não uma corrente social. O MRPP e o POUS são os últimos exemplos desse
caminho, à sua escala. E o PC, de outro modo, fica prisioneiro de um labirinto de autoreferências:
o partido existe porque o partido existiu, tem uma ideologia mas ela é
impronunciável porque além das ideias gerais deixou de se poder referenciar às
sociedades-mãe, a URSS e a China, e sempre que fala do seu modelo é para desmentir
a sua história óbvia de alinhamento com a política do Kremlin ao longo de dezenas de
anos. A “ideologia” reduz-se ao silêncio sobre a sua própria história.
Mas a crítica essencial a fazer a estas duas escolhas é que são estratégias impotentes:
nenhuma delas permite disputar ao PS a influência política sobre a maioria. Nenhuma
destas tradições permite responder e mobilizar a estrutura social para criar uma maioria
política. Sendo o nosso objectivo ganhar essa maioria, escolhemos outro caminho e
tanto o movimento social quanto a forma política devem ser coerentes com essa visão
estratégica.
Os movimentos sociais nascidos da luta contra a globalização foram um muito poderoso
impulso na direcção desta nossa estratégia. Quando o Bloco se formou, em 1999, foi
sob a égide da luta de Timor-leste e do que veio a ser o primeiro Forum Social Mundial.
Em 2003, este movimento dos Foruns ganhou uma imensa autoridade política com a
convocação da manifestação de 15 de Fevereiro, a primeira manifestação global por um
objectivo unificado, a “superpotência” da opinião pública contra a guerra do Iraque. Este
movimento dos movimentos ajudou-nos a definir uma visão para a esquerda moderna
sobre a luta social, com a definição de agendas abertas a partir de objectivos de
mobilização, sem hierarquias. Também nos confrontou muito depressa com alguns
conflitos internos e alinhamentos dentro dos Foruns.
Podemos por isso concluir que a refutação do prognóstico de José Manuel Fernandes
ainda não foi feita de modo categórico: ainda não existe um movimento social que, pela
sua diversidade e representatividade, demonstre que os movimentos populares do
século XXI só podem seguir caminhos de abertura e de não subordinação a um partido.
Mas ficou claro, em contrapartida, que a estratégia de aferrolhamento do movimento
popular num partido leva ao enfraquecimento: ao contrário do que sugerem os neoconservadores,
o que se passou nos últimos trinta anos foi a demonstração da
incapacidade de vários partidos de esquerda de disputarem a liderança ao PS,
permitindo a desmobilização, a divisão e o predomínio da social-democracia como
referencial político para a maioria dos trabalhadores, mesmo que não tenha nenhum
papel importante na sua organização.
Nesse sentido, a razão pela qual José Manuel Fernandes, como Pacheco Pereira, têm
tanto empenho em defender o modelo PC é que acreditam que ao movimento popular
não é possível mais do que uma atitude de resistência e de sobrevivência, e que nunca
se pode tornar um actor político determinante. A política, assim, fica reservada para o
PS e o PSD, o campo do poder, e o PC convoca uma memória que não é mais do que
uma memória, para estes pensadores da direita.
Esta análise é o desafio mais importante que é feito ao Bloco, deste ponto de vista: é ou
não possível criar uma política que, na esquerda, constitua uma alternativa ao PS e
que, portanto, procure ganhar a maioria? É possível criar uma nova tradição no
movimento popular que o transforme num decisor político, porque redefine radicalmente
as condições da própria política? Responder a esta questão é discutir as bases de uma
política socialista, que procura alicerçar o poder dos trabalhadores na extensão e
desenvolvimento da democracia contra os poderes económicos e sociais – e que
portanto procura destruir as restrições à intervenção política da maioria.
7
A nossa resposta é, por isso, que o campo de crescimento do Bloco é muito grande
precisamente porque quer representar a maioria.
Mas deve ainda ser acrescentado que existe outro elemento que os conservadores
procuram ignorar, que é a crise do sistema político, da representação partidária e
parlamentar, em particular com a desadequação dos grandes partidos que constituem
coligações inter-tribais para a partilha do poder, formando alianças de potentados e
caciques para distribuir os cargos governamentais. Esse sistema tem pouco futuro e
pode sofrer um novo golpe de credibilidade se vier a predominar a instituição dos
círculos uninominais.
A votação em Manuel Alegre, que junta muitas formas de descontentamento, é um
indicador desta tensão, mesmo que não prefigure nenhum movimento organizado e
estável. Recorde-se que Otelo obteve 17% na base de um poderoso movimento com
raízes populares, e que mesmo assim perdurou pouco, que Basílio Horta, com 14%,
anunciou um movimento que se esfumou antes de existir, que Freitas do Amaral, com
49%, proclamou também uma fundação para protagonizar uma intervenção política, e
que nada disso durou ou sequer começou.
Estes episódios revelam uma contradição: para uma parte muito importante da
população, a política é a representação eleitoral e nada mais, mas o sistema de partidos
é igualmente visto com desconfiança. Essa desconfiança, salvo demagogia populista, é
alimentada pelas formas de exclusão que os partidos tradicionalmente geraram e pelo
fechamento da política que representam.
Em resposta a esta tensão, o Bloco procurou desde sempre afirmar a viabilidade de
uma esquerda moderna como um espaço de crítica da própria política institucional – e
assim deve continuar a fazer. Não, o nosso modelo não é o dos partidos socialdemocratas
do século XIX nem o dos partidos comunistas do século XX. O nosso
modelo é o de um movimento político que seja referência nos debates nacionais e
internacionais, que seja definido por uma agenda de ruptura com a política tradicional,
que mobilize a convergência da esquerda social e política, e que por isso mantenha as
formas de movimento aberto e plural.
Esse é o modelo que permite disputar tanto a liderança ao PS como criar novos
espaços de contestação social – e as duas tarefas são completamente
interdependentes.
Por isso, o Bloco define-se por uma nova forma de delimitação ideológica que é a
agenda de rupturas com o situacionismo social. Essa agenda é a sua política socialista,
e isso inclui necessariamente as diversidades que se reconhecem nessa forma de agir
e nesses objectivos estratégicos. O Bloco incorpora por isso marxistas como outras
formas de pensamento de esquerda, vinculados a esse projecto socialista.
Terceira questão: a parábola da bicicleta
A terceira questão, colocada por Pedro Lomba, pode resumir-se à parábola da bicicleta:
tudo o que não avança, cai; se o Bloco não crescer sempre, recuará, e por isso mesmo
um bom resultado eleitoral, se não for uma subida permanente, será mau porque não
ajuda o desígnio de chegar ao poder em coligação com o PS.
O Bloco de Esquerda participou em dez eleições em menos de sete anos, três no último
ano. No conjunto destas eleições, reforçou qualitativamente a sua influência: nas
primeiras em que participou obteve 1,8%, o que era menos do que a soma de algumas
das suas componentes em algumas eleições anteriores; nas eleições de 2005-6 obteve
resultados entre os 6,5% (legislativas), 4 a 5% (autárquicas, considerando o universo
em que concorreu o Bloco) e 5,3% (presidenciais). Esses resultados exprimem alguma
consolidação e sobretudo um grande alargamento da influência do Bloco ao longo de
8
poucos anos. Não existe nenhum outro movimento político duradouro que tenha tido tal
capacidade de se afirmar alterando radicalmente o quadro político e construindo assim
a sua influência.
[O quadro seguinte resume esta evolução, comparando as eleições segundo o
seu tipo:
N: os resultados das autárquicas projectam sobre o todo nacional os votos
obtidos com as candidaturas apresentadas]
Naturalmente, este processo tem oscilações. Impor a um partido o critério de medir a
sua validade pelo avanço permanente é uma forma infantil de ignorar a dimensão
conflitiva da luta política, as mudanças de conjuntura, a possibilidade de erros e,
sobretudo, as dinâmicas de mudança que a política pode gerar. Se assim fosse,
qualquer dos partidos actuais já teria encerrado, a começar por muitos deles nas
recentes eleições presidenciais, como seria então o caso do PS, cujo candidato oficial
teve 14%. O PC já teve 45 deputados e agora tem 12 e não desaparece por isso. Todos
os partidos podem sofrer derrotas – e o Bloco sofrerá derrotas importantes – e não é
isso que determina a sua viabilidade.
Mas isso é ainda o que menos interessa na análise dos resultados das presidenciais por
parte deste ideólogo da direita, Pedro Lomba. As suas teses mais substantivas são que
o Bloco está aprisionado nos 5%, e que assim não consegue forçar um acordo com o
PS para uma coligação de governo.
A primeira tese não tem sentido. Não existe nenhum tecto para limitar o crescimento
possível da influência eleitoral do Bloco. A experiência anterior demonstra
categoricamente que, apesar de não constituir ainda uma ampla corrente social
estruturada, o Bloco é uma referência política que tem determinado mudanças na
opinião pública e mesmo novas leis que afectam muitas pessoas (violência doméstica,
política de toxicodependência, e outras depois atraiçoadas pelo PS, como a reforma
fiscal ou a restrição aos contratos a prazo). Como se disse atrás, o seu espaço político
é hoje maior graças a este percurso, como em função da crise social que se vive agora,
e que exige novas alternativas à política liberal. Muitos dos eleitores e das eleitoras que
votaram em Manuel Alegre por razões de esquerda estão mais distantes do PS do que
do Bloco e rejeitam as políticas de Sócrates. Durante os próximos três anos, a disputa
9
Evolução eleitoral do Bloco
0.5
1.5
2.5
3.5
4.5
5.5
6.5
7.5
1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
da confiança dessas pessoas será um factor importante para determinar as próximas
eleições.
Mas é a segunda tese que tem ainda mais significado. O Bloco quer crescer em
influência social, em capacidade militante, em peso eleitoral, porque quer constituir essa
alternativa necessária para a esquerda, e não porque pretenda criar uma coligação de
governo com o PS. Se há algo que todas as experiências de governo recentes
demonstram, é que a continuidade das políticas liberais destrói a solidariedade social e
que uma alternativa de esquerda requer uma nova maioria para uma política socialista.
A nossa crítica ao capitalismo não é um acessório do enunciado socialista: é a sua
essência. O capitalismo gera a exclusão da democracia económica e social e constitui
um sistema de poder. Só modificando as condições da política por via da intervenção
activa da grande maioria dos trabalhadores e cidadãos é que esse sistema de poder
pode ser desafiado e substituído. A questão do poder e da propriedade como
democracia e não como exclusão, do acesso igualitário às condições modernas de vida
e da redistribuição social do produto, são as questões centrais para o socialismo.
O crescimento do Bloco depende sempre da sua capacidade de mobilizar lutas sociais
para disputar essa maioria. Com essa orientação, o Bloco pode e deve crescer para
além dos 5% que eventualmente influencia hoje e, sobretudo, pode afirmar-se ainda
mais como a alternativa à esquerda.
Conclusão: o rumo estratégico do Bloco
A partir dos três desafios colocados pelos nossos opositores, este relatório discutiu
algumas das questões que se nos colocam nos próximos anos: será que o Bloco atingiu
o seu limite de crescimento eleitoral? Será que precisa de repetir a estratégia do PC
para o controlo das organizações sociais? Será que a cultura de crítica anti-capitalista
está em perda? Respondemos que não a estas três questões.
Perguntando de outra forma: existe espaço para o Bloco? O Bloco pode crescer e deve
crescer para quê? Respondemos simplesmente com a nossa estratégia política: o Bloco
pode crescer e crescerá como uma força anti-capitalista, socialista e popular para
determinar a política do país.
O Bloco não pode para isso repetir a estratégia do PC porque significaria derrota, e
alimenta o seu crescimento na disputa da influência da maioria contra a política do PS,
com a coerência de uma política anti-capitalista.
E concluímos que a chave da política para o crescimento do Bloco é uma intervenção
social organizada que desenvolve movimentos e temas de ruptura, reforçando as suas
características de movimento aberto para protagonizar uma política socialista.
O Bloco tem uma agenda clara: mais implantação e organização popular com uma
política clara de mobilização de todos os temas que constituem a sua referência social,
procurar novos espaços de acção política, criar mobilização que não nasce da
decepção mas da energia nova, agregar diversidades comprometidas com a política
socialista, combater a institucionalização promovendo modelos de acção inovadores e
inventivos, não esperando pelos partidos tradicionais e gerando energias
transformadoras à esquerda.
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Um Rumo Estratégico Alternativo:
para um Bloco de Esquerda democrático, socialista e ancorado nas lutas
sociais
Gil Garcia (BE/Amadora)
Cristina Portella (BE/Lisboa)
António Grosso (BE/Oeiras)
Ana Flor Neves (BE/Coimbra)
Eduardo Henriques (BE/Almada)
INTRODUÇÃO
Com as eleições presidenciais do passado mês de Janeiro, fechou-se um ciclo
de repetidas eleições que tinha vindo a marcar estes primeiros anos do Bloco de
Esquerda desde a sua fundação. Em sete anos, o BE participou em dez eleições. Abrese
agora um período em que, tanto quanto previsto, não haverá eleições nos próximos
três anos. A discussão do que é o BE e que rumo estratégico deve seguir é, por isso,
hoje mais do que nunca uma discussão premente no seio do partido/movimento. No
entanto, parece-nos que o texto de debate apresentado pela Comissão Política do BE
para discussão na base, e a ser aceite ou rejeitado na próxima Mesa Nacional, não
cumpre totalmente a tarefa a que se propõe. Isto porque o texto centra-se mais na
resposta aos ataques que a imprensa faz ao BE do que na análise da situação política a
que urge darmos resposta, bem como sobre o quadro mais vasto – estratégico – em
que se insere o Bloco de Esquerda.
Podemos dizer que o texto é bastante superficial naquilo que deveria ser o centro da
sua análise: a reflexão sobre a identidade e as escolhas estratégicas para o BE nos
próximos anos. Apesar disto, deixa no ar algumas das ideias centrais que nos parece
ser necessário discutir e pôr em causa, porque promovem um projecto e uma política ao
nosso ver incorrectas.
E avançamos desde já uma síntese do que pensamos e que iremos desenvolver
com um pouco mais de detalhe mais adiante: queremos um BE de massas e com
forte apoio eleitoral, mas enraizado na classe trabalhadora, cheio de militantes
conscientes de que um apoio eleitoral é totalmente insuficiente (e na verdade
ineficaz) para a construção do socialismo que queremos. Queremos, portanto, um
BE que não seja uma cópia do PCP, mas que também não seja uma fotocópia de
um PS ou de partidos “modernamente” social-democratas.
Se não revertermos o curso do actual Bloco, teremos um BE cada vez mais
eleitoralista, ausente de forma organizada e significativa do lugar onde tudo se decide a
favor ou contra o capitalismo, a favor ou contra uma nova sociedade socialista, isto é,
das lutas de massas.
Assim, é com o objectivo de questionar as ideias centrais expostas no texto “O Rumo
Estratégico do Bloco” e de propor um rumo estratégico alternativo para um Bloco,
democrático e militante, que se ancore nas lutas sociais e que venha a abrir portas para
uma verdadeira construção do socialismo, que aqui apresentamos este texto. O texto
estrutura-se em dois eixos/discussões centrais: por um lado, qual o rumo estratégico e
com que política procurará o BE consolidar e alargar o espaço político conquistado; e,
11
por outro, que modelo de partido reivindicamos. Procurámos, desta forma, responder às
perguntas de para onde vamos e o que queremos, questões correctas e oportunas
proporcionadas pelo documento apresentado pela direcção do BE.
QUE RUMO ESTRATÉGICO E QUAL A POLÍTICA PARA O BLOCO?
Dentro da situação política nacional e internacional, que rumo estratégico deve o
BE seguir, que disputas deve travar, como se deve construir? Aqui deixamos aquelas
que são as linhas que consideramos centrais para uma estratégia anti-capitalista e
combativa para um BE, socialista, democrático, militante e ancorado nas lutas sociais.
1. UM BE CONTRA O GOVERNO SÓCRATES
Vivemos hoje sob um governo de maioria absoluta do PS que, seguindo as directrizes
europeias, governa para continuar a destruir o que resta dos serviços públicos e dos
direitos dos trabalhadores. No fundo, para servir aos que mais têm e para aprofundar a
pobreza e a precariedade da maioria da população.
Por isso, queremos um BE, em primeiro lugar, na primeira linha de combate ao
governo Sócrates e que se empenhe nas diversas lutas que se desenvolvem ou
venham a desenvolver-se nesse sentido.
Achamos que o BE tem rebaixado ou abandonado algumas reivindicações
fundamentais (a semana das 35 horas para combater o desemprego, por exemplo) com
o objectivo de fazer aproximações ao PS, e se inibe em dar um combate frontal ao seu
governo, optando por batalhas laterais e superficiais, que não chamam “os bois pelos
nomes”. Veja-se, por exemplo, que tendo como centro da campanha eleitoral (nas
presidenciais) os temas dedicados à pobreza, ao desemprego e à segurança social, as
respostas políticas e programáticas não foram interligadas a um combate frontal ao
governo realmente existente no país (no caso presente ao governo de José Sócrates), o
que lhes retirou grande parte da sua força, visto ambos aspectos serem inseparáveis.
Isto porque tal orientação traria como consequência colateral um combate em
alternativa a Cavaco e a Soares, quando a orientação política central defendida pela
direcção do BE passava por centrar a campanha apenas contra o primeiro, até porque
combater Soares em pé de igualdade com Cavaco converteria o Bloco numa alternativa
anti-regime, o que pelos vistos não é a estratégia eleita.
Assim, achamos que o BE deve, em primeiríssimo lugar, lutar pelo encurtamento do
tempo de vida do governo, logo que a luta de massas e de rua ou divisões no grupo
parlamentar do PS o venha a permitir.
Nesse sentido, o BE deve igualmente exigir a Manuel Alegre – pela
responsabilidade conferida pela confiança nele depositada por mais de um milhão
de eleitores – que rompa com o grupo parlamentar do PS ou com o apoio à
maioria que no parlamento mantém em funções (e sustenta) um governo que a
grande maioria da população já não suporta, como as eleições presidenciais bem
mostraram. Aceitar como um destino natural mais de 3 anos de governo Sócrates
sem esgotar todas as possibilidades (de contestação de rua e parlamentares) de
impedir que cumpra o que nem Guterres nem Durão Barroso conseguiram
(cumprir uma legislatura completa), é da mais elementar necessidade perante à
12
gravidade da ofensiva do actual governo sobre o nível de vida, o emprego e as
conquistas de milhões de trabalhadores em Portugal, já a viver pessimamente.
2. UM BE QUE DISPUTE O APOIO NÃO SÓ ELEITORAL MAS TAMBÉM SOCIAL
DA MAIORIA DA CLASSE TRABALHADORA
Queremos um BE que dispute e ganhe influência e apoio na maioria do país, em
particular o apoio da maioria da classe trabalhadora, condição sem a qual qualquer
construção do socialismo não passa de pura miragem ou de retórica para dias de festa.
Para a conquista (e consolidação) desta influência de massas num primeiro momento, e
da confiança da maioria da classe trabalhadora num segundo momento,
é central que o Bloco de Esquerda tenha como estratégico não se resumir a
umas poucas centenas de militantes, cuja energia e empenho são normalmente
focalizados unicamente para a realização de campanhas eleitorais e largados às
dificuldades acrescidas nos períodos fora desses contextos.
Nesse sentido, não queremos um BE apenas com actividades residuais neste ou
naquele sector sócio-profissional, cuja intervenção deriva muito mais dos trabalhos
herdados das diversas sensibilidades que compõem o BE do que de uma política
deliberada de abrir novas frentes, uma hipótese perfeitamente viável tendo em vista o
actual prestígio do BE junto à classe trabalhadora.
Achamos, por isso, que devemos disputar a base do movimento sindical com o PCP,
visto que o consideramos um travão e não uma alavanca para as lutas dos
trabalhadores, como a mais recente luta da função pública o demostra. Não
concordamos com caracterização que o texto “O Rumo Estratégico do Bloco” faz do
PCP.
Nós afirmamos que o PCP, ainda que obviamente tenha apoio operário e popular
muito alargado, é na realidade o partido da aristocracia e da burocracia sindical, o
partido que desmobiliza e trai constantemente as lutas operárias e sindicais. A
CGTP é a sua correia de transmissão, dinamizando lutas controladas e desunidas,
de forma a morrerem lentamente, sem nunca permitirem a abertura de períodos
de verdadeira convulsão social.
O PCP, ainda que dinamize algumas lutas através da central sindical que dirige,
(lutas estas controladas e rigorosamente mantidas em conflitos de baixa intensidade), é
essencialmente um travão às lutas da classe trabalhadora e assim deve ser criticado
pela alternativa de esquerda que o BE já hoje representa para milhares de
trabalhadores, entre os quais se incluem milhares de eleitores da área de influência do
PCP/CDU.
O documento da Comissão Política, aliás, faz supor que “a primeira vítima” das
orientações do PCP seria a CGTP, “que corre novos riscos de fechamento com a
substituição de Carvalho da Silva”.1 As primeiras vítimas da política do PCP são os
trabalhadores, que com lutas divididas e derrotadas perdem os seus empregos ou
perdem direitos adquiridos, conseguindo o PCP, no entanto, parecer que é o seu mais
fervoroso defensor. O documento, por outro lado, dá-nos a entender essa coisa
1 ‘O Rumo Estratégico do Bloco’, página 4: “Ora a CGTP tem tido um papel fundamental como a principal
organização social na criação de mobilização política contra o governo”.
13
fantástica que é a leitura de eventuais diferenças (tácticas) que possam existir entre o
PCP e a CGTP nos colocar no mesmo campo da CGTP e de Carvalho da Silva. Talvez
por isso nunca ouvimos por parte da direcção do Bloco uma crítica pública às formas de
luta e à metodologia com que a direcção da CGTP conduz diversos processos de luta
(conduzidos invariavelmente à derrota).
Como todos sabemos, não existe uma CGTP aberta, plural e combativa como o
Bloco descreve. Basta ver o que a direcção da central fez à “representação” de
activistas próximos à sensibilidade bloquista nas estruturas directivas da CGTP,
reduzindo-os à ínfima espécie. Basta ver os estatutos da grande maioria dos sindicatos,
que por serem tão burocráticos só permitem listas únicas e “unitárias”. Na verdade, não
questionamos a importância de aprofundar as divisões dentro do PCP e/ou da CGTP de
forma a abrir um maior diálogo com sectores da base destas organizações. Mas a
estratégia implícita da análise e caracterização que se extrai do documento que temos
vindo a criticar é a promoção de um diálogo privilegiado com os sectores
(potencialmente) mais social-democratas do próprio PCP e ou da CGTP. Aprofundar a
prazo as nossas alianças com sectores que, na verdade, rompem mais pela direita do
que pela esquerda do PCP será aprofundar a prazo a consolidação dos traços mais
institucionais ou de “normalização” do próprio Bloco.
O rumo estratégico (alternativo) para nós, face a estas circunstâncias, reside na
inserção dos militantes e activistas do Bloco no mundo sindical e das lutas dos
trabalhadores, na disputa pela liderança (sem espírito ou práticas à PCP, sem
pretensões de “controleirismos” de espécie alguma) das comissões de
trabalhadores e dos sindicatos, para transformarmo-nos nos principais aliados do
mundo do trabalho na luta contra o capital.
O BE que queremos é um BE que mudou o mapa político do país e que pode e deve
mudar o mapa político do movimento sindical, lutando e empenhando-se em retirar a
alavanca da direcção do movimento sindical das mãos autoritárias e anti-democráticas
do PCP, que anestesiam e destroem a classe trabalhadora organizada e as suas lutas:
o PCP não é igual à classe trabalhadora organizada, mas sim à aristocracia e à
burocracia organizadas para destruir as lutas da classe.
Não queremos, por isso, um BE que tenha, como hoje, o seu centro nevrálgico
no parlamento, dedicando todos os seus principais dirigentes e quadros adstritos à
actividade pública, parlamentar ou eleitoral. É nesse sentido que lutamos dentro do BE
para que este não tenha, tal como parece manter o texto que aqui criticamos, a larga
maioria dos seus funcionários desligados do apoio (e dinamização) às regiões, do apoio
(e construção) de núcleos nos próximos três anos, achando que devíamos apostar nas
principais empresas do país ou em sectores estratégicos como o Metro, a Carris, a CP,
a Função Pública, os trabalhadores bancários e tantos outros sectores sócioprofissionais
que estão a ser atacados e que, no seu dia-a-dia, tanta falta sentem de
alternativas combativas.
3.UM BE COM AGENDAS ABRANGENTES, MAS COMBATIVAS
É neste sentido que estamos de acordo com agendas e campanhas políticas
muito abrangentes, que se podem concentrar numa campanha contra a guerra do
14
Iraque ou numa grande mobilização de militantes para apoiar uma greve ou
manifestação da Função Pública.
Uma agenda tão larga que defenda sempre na sua propaganda as causas
democráticas ou, como o Bloco as classifica, de direitos civis, como a legalização
do aborto, os temas relacionados com a legalização das drogas, o fim da
violência e discriminação sobre a comunidade LGBT e outras. E que promova
e/ou participe, sempre que a situação política as coloquem na ordem do dia, de
campanhas para reivindicar o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo
ou o apuramento e punição dos que violentaram e mataram a Gisberta
recentemente no Porto.
Como noutros campos, também aqui defendemos uma política combativa, que
alavanque as lutas e contribua para fazer cair um governo que governa à direita e para
a direita.
4. UM BE VERDADEIRAMENTE ANTI-CAPITALISTA
Assim, somos contra as resposta políticas que são balizadas pela manutenção
do regime democrático-burguês, de que o rebaixamento do programa do BE para
tentativas de aproximação ao PS é apenas um exemplo. “A nossa crítica ao capitalismo
não é um acessório do enunciado socialista: é a sua essência” (pág.7 do “O Rumo
Estratégico do Bloco”). Não é verdade. A nossa crítica ao capitalismo nunca aparece, a
palavra capitalismo sequer aparece em discursos ou textos do Bloco para já não falar
de socialismo, excepto uma ou outra ocasião. O mais grave, porém, nem sequer é o
abandono de uma linguagem anti-sistémica, mas a secundarização de respostas
programáticas sempre que a conjuntura as coloca na ordem do dia: como a
nacionalização de empresas que fraudulentamente são fechadas ou deslocadas mesmo
apresentando lucros; ou a redução do horário de trabalho para as 35 horas para
combater o desemprego; ou a defesa da conquista mais avançada de sectores da
classe trabalhadora (a reforma ao fim de 35 anos de trabalho em vez da uniformização
em torno de 40 anos de trabalho para todos, como se defendeu na campanha
presidencial). Em contrapartida, já vimos o BE falar da necessidade de “sacrifícios”,
formulação infeliz ainda que (sintomática e) conscientemente utilizada mais do que uma
vez, mas felizmente abandonada, assim o esperamos.
O BE também deixou de falar em revolução social, prescindindo mesmo de utilizar,
por exemplo, uma metáfora pedagógica, como a da necessidade de um novo 25 de
Abril, indispensável para a conquista de modificações sociais profundas. Nesse sentido,
fala-se em socialismo como apenas uma “ideia” e, no máximo, como uma
“radicalização” da democracia” (pág. 3), expressões que são uma perversão do que é o
socialismo e uma revisão teórica reformista não assumida.
Desta forma, o Bloco é a favor de muitas “rupturas” e teses “fracturantes” desde
que não sejam rupturas com o regime, mostrando que alimenta ilusões em
transformações (e refundações) democráticas e sociais (na Europa e em Portugal), sem
o recurso à revolução social, mas sim no marco da conquista de uma maioria social que
a partir do governo construiria o socialismo.
Somos contra a institucionalização do BE dentro do regime democrático-burguês
e achamos que para merecermos o nome de anti-capitalistas e socialistas temos
15
de ter um programa que se proponha a romper com o capitalismo. Não é preciso
adoptar nenhum modelo de partido revolucionário, nem perfilhar qualquer tipo de
modelo ou estratégia bolchevique para saber que é indispensável a uma força que
se diz anti-capitalista e pró-socialista ter a grande maioria das suas forças
organizadas no centro na classe trabalhadora.
O BE só beneficiará da sua ligação à base maioritária do país, a receber os inputs
que vêm dos que mais sofrem com o desemprego e a degradação do sistema
capitalista. Se não for assim, como chegaremos à maioria social que o BE quer
conquistar? Ou será que só queremos conquistar os votos dessa maioria social? É
importante continuar a crescer também eleitoralmente, mas esse não pode ser o nosso
objectivo primordial a que tudo se subordina.
E porque é que é tão essencial essa ligação às lutas sociais, à base dessa maioria
social, poder-se-á perguntar. Para que não nos aconteça o mesmo que aconteceu a
todas as formações que deixaram de estar firmemente implantadas e ligadas às lutas e
anseios dos seus partidários e eleitores: a degeneração. Não existem garantias de
impermeabilidade de nenhum partido ao acomodamento eleitoral e parlamentar, mas
devemos vitaminar o nosso movimento para, pelo menos, lhe dificultarmos o caminho.
Um partido cingido à luta eleitoral e parlamentar será uma força política impotente para
não só garantir consolidadamente essa importante presença na Assembleia da
República como para ser o referencial destacado do mundo do trabalho para as
transformações sociais socialistas que dizemos defender.
Por isso, é preciso dizer que não queremos um BE institucional, queremos um BE
democrático e militante em ruptura com o capitalismo! Queremos um BE que não se
proponha a construir o socialismo por via parlamentar – porque a história já mostrou
bem que isso não é possível – mas que construa o socialismo diariamente nas lutas
sociais, que devem ser hoje e sempre a alavanca da nossa política!
BE: QUE MODELO DE PARTIDO?
Acerca da discussão em redor de que modelo rejeitamos ou queremos para o
Bloco o texto da Comissão Política afirma peremptoriamente: “Não, o nosso modelo não
é o dos partidos social-democratas do século XIX nem o dos partidos comunistas do
século XX. (...) Por isso, o Bloco define-se por uma nova forma de delimitação
ideológica que é a agenda de rupturas com o situacionismo social. Essa agenda é a sua
política socialista, e isso inclui necessariamente as diversidades que se reconhecem
nessa forma de agir e nesses objectivos estratégicos” (pág. 6). Apesar desta afirmação,
a orientação global implícita não aponta política nenhuma para mudar ou rectificar o
curso essencialmente eleitoral que caracterizou o BE nestes seus primeiros seis anos.
Na verdade, o modelo de partido que se propõe para o BE, ainda que pontualmente se
afirme o contrário, é a continuação de um partido essencialmente eleitoral e
parlamentar, sem base militante significativa, tal como tem acontecido até agora. No
marco desse modelo, o BE continuaria sem ter trabalhos estruturais significativos
(porque não se aponta nenhuma orientação neste sentido) em sectores sócioprofissionais,
ligados ao mundo do trabalho, e não apresentaria qualquer aposta ou
apoio significativo às regiões afastadas do centro. Assim, as forças militantes do BE
continuariam a estar direccionadas para a realização de campanhas eleitorais e
trabalho parlamentar (onde se concentra mais de 2/3 dos funcionários do BE, a maior
parte deles ligados ao trabalho de assessoria e/ou parlamentar), e o partido continuaria
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a ser construído sem uma política para disputar de forma organizada e consciente a
liderança no movimento sindical, de forma a dotar os sindicatos (e as comissões
trabalhadores) de novas direcções combativas e a desafiar na base do movimento a
influência do PCP na sociedade e, em particular, na classe trabalhadora.
Assim sendo, ainda que se afirme que não se quer para o Bloco o modelo de
partido social-democrata, na prática são as características deste tipo de partido,
ainda que adaptadas aos “tempos modernos”, que predominam efectivamente no
que é e no que se pretende que continue a ser o actual Bloco de Esquerda.
Como se enquadra este modelo de partido que é proposto para o BE na discussão
sobre os modelos de partido historicamente existentes? Vale aqui a pena voltar a
analisar alguns pontos que nos parecem chave e debater algumas das ideias propostas
pelo texto no que toca à questão mais teórica.
Afirma-se, no texto, que a esquerda se divide há mais de um século entre dois
modelos: o modelo de partido social-democrata (século XIX) e o modelo de partido dos
Partidos Comunistas (século XX), deixando entender-se que dentro deste último modelo
se incluiria tanto o próprio PCP como os pequenos partidos de extrema-esquerda
baseados na propaganda. O Bloco seria, assim, um “modelo novo” do século XXI, que
surgiria em oposição à “defesa de modelos esquerdistas ultrapassados” (Visão,
15/02/06). Esta visão é bastante grave do ponto de vista intelectual e teórico, visto que
difunde dentro do BE, e para o exterior, aquela que é a leitura da burguesia sobre a
história da esquerda que combate o capitalismo, pelo que só o podemos considerar
como uma falsificação grosseira da história, em favor do sistema que combatemos e da
classe que o representa.
Os dois grandes modelos de partidos à esquerda, que se confrontam desde os
finais do século XIX e que persistem até hoje, são: o modelo social-democrata e o
modelo de partido revolucionário (do bolchevismo).
O modelo social-democrata assenta na premissa básica de que não é preciso
acabar com o capitalismo, mas apenas reformá-lo por dentro, conquistando uma
maioria de deputados e o governo. Este modelo de partido é essencialmente eleitoral,
um aparelho para o jogo de alternância no poder, típico de regimes democráticoburgueses
(uma das formas de dominação da burguesia para manter o capitalismo a
funcionar criando a ilusão de que o povo é que decide do seu futuro). É um partido
mais focado na sua projecção para a televisão e para os meios de comunicação, que
funciona centrado em campanhas eleitorais e tem uma fraca implantação militante, por
vezes até uma fraca implantação sindical. Este modelo foi já testado sistemática e
repetidamente ao longo de todo o século XX, com diversos governos como os de Léon
Blum e de Miterrand em França (respectivamente nas décadas de 30 e 80), os de Mário
Soares e Salvador Allende, em Portugal e no Chile (na década de 70) respectivamente,
ou, um exemplo mais actual, o governo de Lula no Brasil, com os resultados que se
conhecem: mais capitalismo e menos socialismo. A história mostra, assim, que as
tentativas destes governos de governar o capitalismo com reformas só os levou a
aprofundar as políticas que supostamente combatiam e não acabar com a raiz dos
problemas – o sistema capitalista.
O outro modelo, cronologicamente mais recente (ou moderno se quisermos),
que surge em ruptura com o próprio modelo social-democrata, é o modelo do partido
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que dirigiu com êxito a primeira revolução socialista (em 1917, na Rússia), o grande
acontecimento do século XX: o do partido bolchevique. Um modelo centrado
estruturalmente sobre o mundo do trabalho, mas cuja luta se baseia num programa que
abrange as reivindicações da grande maioria da população. Este tipo de partido
combinava a luta de massas com a actividade parlamentar, sendo a primeira estratégica
e a segunda complementar, visto que utilizava a ligação de uma força revolucionária às
massas como meio de acelerar – e potenciar – a sua experiência com as instituições do
poder burguês; o parlamentarismo era, assim, não um fim em si, mas um meio para
denunciar esse mesmo parlamentarismo e ampliar as possibilidades de audição e
crescimento de uma corrente revolucionária de massas. Ao contrário do que se diz, este
era um partido centralizado para a acção revolucionária, mas também de grande
democracia interna, que sempre conviveu com inúmeras diferenças e batalhas internas
sem qualquer tipo de expulsões, tendo mesmo chegado a formar governo com outros
partidos aliados na revolução social (1917/18), muito distante dos regimes de partido
único e ditatoriais consolidados após Stalin assumir a direcção deste partido.
Estes dois modelos persistem até hoje (como modelos antagónicos e
alternativos) e continuarão a persistir pelo tempo que a realidade de onde emergiram
continuar a existir. Na verdade, estes dois modelos de partido emergem de uma
realidade histórica, económica, social e política dada pelo capitalismo que, apesar de
todas as modificações, alterações e mutações que não negamos que entretanto se
realizaram, mantém as suas características estruturais e dominantes, que, infelizmente,
ainda estão hoje longe de estarem superadas.
Lamentavelmente, a direcção do BE realiza, na sua análise, uma amálgama
política entre a tese e a sua antítese, ou seja, entre os partidos de tipo bolchevique com
os partidos comunistas (na verdade estalinistas). De facto, aquele modelo que
identificamos hoje como o modelo de partido comunista é uma perversão do partido
revolucionário, do partido bolchevique. Os PCs são o produto de um processo de
burocratização e degenerescência da União Soviética, não sendo mais instrumentos de
luta pela transformação revolucionária da sociedade, mas a sua antítese: foram no
passado e são hoje travões ao desenvolvimento de lutas combativas que possam
desferir golpes mortais no capitalismo. Nesse sentido, a direcção do BE capitula
(conscientemente) à reacção teórica e falsificadora da história que apresenta o
estalinismo como continuidade e não como perversão (e conspurcação) do modelo de
partido revolucionário.
Não se lhes pede que se mantenham (ou se convertam, no caso de terem
abandonado) nos marcos da construção de um modelo tipo partido bolchevique.
Diga-se desde já, que somos da opinião que foi um acerto construir o Bloco como
uma proposta política fora dos marcos (de forma clara) acima recenseados. Para
se construir uma nova plataforma de unidade à esquerda, e após os traumas
herdados pelas disputas constantes entre as diversas sensibilidades nos últimos
30 anos de pós 25 de Abril, a orientação de construir um BE como o que
conhecemos foi uma orientação acertada depois de tantos anos divididos e, em
parte, improdutivos.
Agora, é da mais elementar honestidade intelectual e teórica, no campo de uma
esquerda que se pretende anti-capitalista, socialista e alternativa, como o BE se tem
vindo a definir pela boca dos seus principais dirigentes, que não se veiculem inverdades
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como a de sugerir que os pequenos partidos (na sua totalidade) da chamada “extremaesquerda”
seriam (e teriam práticas) semelhantes aos PCs, ou que todos eles seriam
tributários deste modelo de partido. Que um qualquer João Carlos Espada (hoje
assessor na presidência da república de Cavaco Silva) defenda que todos os partidos e
formações de esquerda, excepto o PS, são cópias ou continuidade do estalinismo, vá
que não vá, mas que num documento central do Bloco se venha defender, ainda que de
forma encapotada, a mesma teoria, é completamente inaceitável. Que saibamos
nenhum dos actuais dirigentes do BE e que durante cerca de 30 anos dirigiram
pequenas organizações de extrema-esquerda (até à construção do Bloco) consideram
que andaram a construir partidos segundo o modelo e os ‘tiques’ do PCP.
Que modelo de partido defendemos nós então para o BE? O Bloco desde o seu
início propôs-se a ser um partido/movimento aberto, democrático, plural e de luta pelo
socialismo, onde possam conviver diversas sensibilidades. E é este o modelo que
também defendemos.
Mas se sabemos respeitar as opiniões das diversas sensibilidades que fundaram e
incorporam o Bloco, lutamos convicta e firmemente contra que este se consolide
como um partido essencialmente eleitoral e sem base organizada, em particular,
junto à classe trabalhadora; lutamos contra a institucionalização crescente do BE
e a sua dependência quase total dos subsídios estatais, na sua grande maioria
canalizados para sucessivas (e excessivamente dispendiosas) campanhas
eleitorais e para um corpo de funcionários maioritariamente ao serviço do centro,
das sedes e do aparato parlamentar. Lutamos contra a subordinação da
intervenção nas lutas sociais e da construção de núcleos à actividade
parlamentar e mediática.
Queremos um partido/movimento de militantes, com núcleos organizados nos locais
de trabalho e de estudo, junto aos trabalhadores e aos jovens, para que possamos
determinar a nossa política através da luta social e não o contrário, para que possamos
potenciar a combatividade pela base do movimento sindical, estudantil e social e não
controlá-lo. Queremos um partido/movimento aberto e democrático, mas que não passe
cartas em branco aos seus dirigentes para tudo dizerem e tudo fazerem. Queremos um
partido/movimento verdadeiramente aberto e plural em que as opiniões divergentes não
tenham constantemente de ser alvo de sectarismo e marginalização.
O Bloco em matéria de democracia interna ainda deixa muito a desejar. A
retórica é a do pluralismo interno, mas a prática é a da marginalização de
sensibilidades à esquerda ou de activistas que por serem conotados com
posições à esquerda dentro do Bloco são sistematicamente afastados da
representação pública do BE, da possibilidade de falarem em comícios ou de
aparecerem em tempos de antena, de aparecerem sequer em folhetos de apoio à
candidatura presidencial mesmo que sejam destacados sindicalistas bloquistas
no seu sector de trabalho e intervenção sindical.
O BE convive melhor e promove sem dificuldades todas as sensibilidades e
personalidades mais moderadas do que os que internamente, por exemplo, se
destacam por defender as posições expressas neste nosso texto alternativo. Diz-me
com quem andas, diz-me que políticas sacrificas e/ou promoves, diz-me quem preferes
que se destaque publicamente pelo BE ou quem preferes que se marginalize, e nós te
diremos para onde o Bloco vai, que estratégia preside aos seus principais dirigentes e
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que futuro lhe estará reservado. Lutaremos para que não se consolide um Bloco dócil
face ao poder central, institucionalizado e mais parlamentar, mas que, inversamente,
seja mais interventivo e presente no mundo do trabalho, ancorado nas lutas sociais e
com os olhos postos nas grandes lutas pela transformação social, que virá das grandes
mobilizações de massas ou nunca virá.
DEMOCRACIA SOCIALISTA, MILITÂNCIA,
DETERMINAR A POLÍTICA A PARTIR DA LUTA SOCIAL.
Luís Pires
O Rumo Estratégico do Bloco de Esquerda
O local mais indicado para discutir, com toda a plenitude, a identidade e as escolhas
estratégicas do Bloco de Esquerda e para ajudar a definir as prioridades para os
próximos três anos, é uma discussão alargada a todos os militantes numa, Convenção
Nacional do Bloco de Esquerda, que foi por mim proposta imediatamente a seguir às
eleições.
Com ou sem Convenção Nacional está aberta a discussão sobre a “identidade” do
Bloco de Esquerda, apresentando-se ao Bloco de Esquerda, três desafios, que eu
supunha serem:
Defender uma Democracia Socialista, em alternativa ao “Socialismo” burocrático e à
Social-Democracia, defender um partido de militantes solidários com capacidade de
intervenção organizada nos movimentos sociais e determinar o pulsar da política a
partir da luta social através dinamização das lutas do proletariado e de todos os
demais oprimidos (emigrantes, mulheres, jovens, minorias sexuais, étnicas, religiosas,
etc.) excluídos, precários, etc., ou seja a nossa CLASSE SOCIAL, no sentido lato e
actual do termo.
Mas não… os três desafios colocados ao Bloco de Esquerda, foram:
…Provar ao José Manuel Fernandes que o tempo da contracultura não acabou e que o
Bloco de Esquerda não precisa de se transformar numa espécie de PC e provar ao
Pedro Lomba que o caminho para o socialismo não é um plano inclinado, sem lombas,
e que o Bloco de Esquerda não se contenta com o estatuto de ”parceiro anónimo e
menor no sistema político de dominação”.
É mau de mais para ser verdade!!!!
É preciso provar que não acabou o tempo da contracultura?
É preciso provar que não temos que ser iguais ao PCP?
É preciso provar que isto não é sempre a subir, mas que toda a gente tem altos e
baixos? ?????????
Eu não consigo entender, nem sequer quero entender, porque foram uns jornalistas a
despoletar tamanha reflexão sobre o rumo estratégico do Bloco de Esquerda…
Eu penso que ver o meu Bloco de Esquerda num discurso diletante e responsório (esta
palavra não existe, mas como é Carnaval ninguém leva a mal!!!) relativamente a dois
jornalistas da Burguesia, que todos nós, no mais íntimo dos nossos corações,
consideramos como autênticos e refinados filhos-da-puta, só posso considerar que se
trata de uma brincadeira de Carnaval de mau gosto, ou dum momento menos bom que
acontece aos melhores… É que o José Manuel Fernandes e o Pedro Lomba cumprem
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o seu papel e a resposta que merecem é o desprezo e serem pura e simplesmente
ignorados e dar-lhes importância é uma manifestação de fraqueza que eu não
esperaria.
Eu daria mais importância ao Jerónimo de Sousa, que representa um corrente política
significativamente importante no movimento dos trabalhadores, da nossa CLASSE, e
que já admite que o Bloco de Esquerda, é realmente de Esquerda (vá lá!) mas que não
tem ”projecto” e que se limita a ser um partido de “causas” mais ou menos dispersas.
Depois disto, só faltaria convidarem os ditos jornalistas para uma Mesa Nacional
alargada do BLOCO… para uma animada discussão…
O essencial do texto é mau, e o essencial é o mais importante, embora haja,
evidentemente, algumas passagens do texto, provavelmente a maioria dos parágrafos,
com que estou de acordo… no seu melhor o texto sustenta que o Bloco DE
ESQUERDA, para crescer, terá que ter uma intervenção social organizada e que
desenvolva movimentos e temas de ruptura, reforçando as suas características de
movimento aberto para protagonizar uma política socialista, rejeitando o modelo
“controleiro” do PCP, e vendo a prática democrática no seio dos movimentos sociais
como uma condição necessária para o seu fortalecimento e sucesso duradouro, embora
resvalando, sem querer, penso eu, mas que não quero deixar de criticar, para uma
concepção intelectual e pedante das mobilizações sociais que “não nascem da
decepção mas da energia nova” (formulação realmente muito infeliz… só faltaria dizer
que aqui não há lugar para vencidos da vida… felizmente que as centenas de milhares
de desempregados não vão ler isto), porque na verdade, como todos sabemos, há
muitas mobilizações que surgem por desespero, e este é também o lugar para os
desesperados, para aqueles que não têm nada a perder…
Este é na verdade o pior texto produzido pelo Bloco de Esquerda, quando ao procurar
definir a IDENTIDADE e as ESCOLHAS ESTRATÉGICA avança em polémicas inúteis e
assumidamente diletantes (…”visa discutir hipóteses de trabalho, interpretações, ideias
e projectos sem que estejam necessariamente articulados com decisões e propostas
políticas imediatas”…) com jornalistas pagos para defender o Capitalismo, esquecendo
verdades tão simples como o facto de NÃO HAVER PARTIDO SEM MILITANTES, e de
não compreenderem que o sucesso eleitoral estrondoso que tivemos estar a provocar
sintomas anestesiantes e conformistas, de que não podemos estar sempre contra
tudo… etc., etc. e que falta mais espírito solidário e de entreajuda, dentro do Bloco de
Esquerda, o que aliás deveria ser uma responsabilidade, por inerência, do estatuto de
MILITANTE.
DEMOCRACIA SOCIALISTA, MILITÂNCIA, DETERMINAR A POLÍTICA A PARTIR
DA LUTA SOCIAL.
Espero ter contribuído assim para a polémica sobre o Rumo Estratégico do Bloco de
Esquerda…
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Contribuição para o debate do Rumo Estratégico do Bloco
Complementos políticos para uma esquerda vanguardista
Rui Curado Silva, BE Coimbra
1 – Sobre a primeira questão
Uma breve análise ao potencial político do Bloco, tanto humano como ideológico, não
deixa grandes dúvidas que o terreno de intervenção política do Bloco é especialmente
vasto. Mesmo as questões “fracturantes”, assim apelidadas depreciativamente num país
fortemente conservador, representam um vasto terreno político longe de estar esgotado
que necessitará de forte empenho a curto prazo, visto algumas dessas questões se
encontrarem muito longe de estar resolvidas no nosso país. A prisão de mulheres que
abortam continua a ser uma mancha medieval na nossa sociedade e os entraves que
um certo moralismo radical de base religiosa tem colocado à modernização da medicina
são inaceitáveis num estado que se deseja laico e moderno.
O documento apresentado pela Comissão Política é já exaustivo sobre a diversidade de
temas, causas e lutas políticas onde o Bloco pode intervir, por isso cabe apenas aqui
complementar esse documento, aprofundando e propondo algumas questões da futura
política Bloco que possam contribuir para uma efectiva modernização cultural e social
do país. A pretensão de construir uma esquerda vanguardista preparada para
modernizar a sociedade ao lado dos cidadãos e dos movimentos sociais faz todo o
sentido num país extremamente conservador, onde esse conservadorismo se estende
inclusivamente à esquerda, como ficou patente nesta última eleição presidencial, onde
Jerónimo de Sousa e Manuel Alegre representaram aquilo que há de mais conservador
dentro do PCP e do PS, respectivamente. Efectivamente, durante a campanha
assistimos incrédulos ao ressuscitar de nacionalismos bacocos, da veneração de
estátuas de mármore e da glorificação da bandeira nacional, da parte de onde menos
se esperava: da própria esquerda…
Pequenos contributos para as grandes causas globais
O Bloco pode e deve alargar a sua área de intervenção aos grandes temas
civilizacionais globais: as alterações climáticas, a penúria de água potável, a penúria
energética causada pela exaustão dos combustíveis fósseis, o impacto da produtividade
global sobre os finitos recursos planetários, os grandes movimentos migratórios, as
deslocalizações selvagens de empresas, as deslocalização de práticas esclavagistas de
trabalho, etc.
O trabalho sobre estes temas de premente actualidade, de relativa complexidade e de
carácter transnacional constitui um importante contributo para que a política do Bloco
possa estar na linha da frente das grandes questões políticas. Desta forma o trabalho
político ao serviço dos cidadãos e ao lado dos movimentos sociais comportará uma
base mais sólida e preparada para a difícil confrontação com os neo-conservadores.
Pela sua dimensão o Bloco deve trabalhar a todos os níveis de internacionalismo, sem
sectarismos ou preconceitos, quer esse trabalho se desenvolva no seio dos movimentos
e fóruns sociais internacionais, quer ao nível das grandes instituições internacionais, ou
ainda produzindo trabalho específico com individualidades, intelectuais e pensadores
com intervenção na arena política global. Nos fóruns sociais o Bloco tem-se feito
representar com regularidade, mas poderá ampliar e diversificar a sua participação
futura. No entanto, junto das grandes instituições internacionais o Bloco deve tirar
partido da oportunidade de poder trabalhar de uma forma coerente e contínua em prol
de uma população internacional e multicultural, que levanta novos e aliciantes desafios
políticos. Nomeadamente no Parlamento Europeu, o Bloco necessita de alargar a sua
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representação e as suas áreas de trabalho. O trabalho conjunto com as outras forças
partidárias de esquerda é essencial, pois constitui não só uma oportunidade do Bloco
transmitir a sua visão política, mas também uma oportunidade de aprender com muitas
dessas formações políticas. Algumas destas formações trabalham há décadas em
importantes temáticas de esquerda que o Bloco tem ainda alguma dificuldade em
abordar. As parcerias políticas do Bloco a este nível não se devem restringir a uma
esquerda hermética e “pura”, dada a singularidade política do Bloco no contexto
europeu e a diversidade das formações políticas representadas no Parlamento
Europeu. Os Verdes, os partidos radicais, os Liberals de esquerda e as esquerdas
alternativas e progressistas de vários quadrantes geográficos devem ser incluídos no
arco político internacional do Bloco, para além dos seus aliados tradicionais que
defendem um socialismo alternativo como a LCR ou a Rifondazione.
O Bloco deve igualmente seguir de perto o trabalho de instituições internacionais que
investigam, estudam e intervêm nos grandes problemas globais do século XXI. Por
exemplo, o trabalho sobre o Aquecimento Global que tem a ser levado a cabo há vários
anos no seio da ONU e da União Europeia em coordenação com centros de
investigação de todo o mundo, esteve continuamente debaixo do fogo dos neoconservadores
que protegem os interesses dos grandes grupos petrolíferos. Nos
últimos anos, por várias ocasiões os neo-conservadores ensaiaram tentativas bastante
elaboradas para desacreditar o trabalho de milhares de investigadores de climatologia.
O Bloco deve por isso estar na primeira linha da defesa da independência do trabalho
de instituições que estudam as alterações climáticas, os recursos hídricos mundiais, a
diversidade biológica, a migração dos povos, os tribunais internacionais, as instituições
internacionais que protejam e defendam os cidadãos vítimas de abusos no seu país ou
no estrangeiro, etc.
Algumas dessas instituições apresentam ainda grandes problemas de funcionamento e
algum défice democrático, o Bloco deve também contribuir para que todas estas
instituições internacionais possam funcionar num quadro democrático e de imunidade a
multinacionais e a governos sem escrúpulos ávidos de falsear a realidade para a
obtenção de lucros e conquistas políticas que comportam danos graves ao planeta e à
população mundial.
No entanto, o Bloco deve combater a participação nacional em organizações com
objectivos puramente belicistas, como a NATO, cuja funcionamento interno é totalmente
anti-democrático e unipolar. Acontecimentos políticos como os de Guantanamo, o
esboço de guerra civil no Iraque, os abusos perpetrados pelos EUA através do
programa ECHELON ou a rejeição da ratificação do Protocolo de Quito por parte deste
país, deveriam servir de catalisador para colocar na agenda nacional a realização de
um referendo que permitisse a saída de Portugal da NATO.
O Bloco deve possuir no seu leque de potenciais parceiros de trabalho, não só as
formações políticas e movimentos sociais, mas também intelectuais, combatentes e
pensadores livres, cidadãos do mundo que muitas vezes sem qualquer apoio lutam
contra ditaduras, contra violações ambientais, contra abusos generalizados no trabalho
e contra injustiças sociais, raciais e de género. Por exemplo, no Médio Oriente e no
Magrebe existem numerosos intelectuais que isoladamente combatem o obscurantismo
teocrático que aí prolifera com a bênção dos grandes grupos petrolíferos americanos e
europeus, muitas vezes arriscando as suas próprias vidas e as vidas dos seus
próximos. Essas individualidades políticas corajosas merecem a atenção e apoio dos
partidos europeus do arco político do Bloco. Mas também intelectuais ocidentais que
denunciam a deriva neo-liberal com brilhantismo quer na Europa quer nos EUA (ex:
Jeremy Rifkin, Saskia Sassen, Michael Moore, Morgan Spurlock, Chomsky, Slavoj
Žižek, Bernard-Henri Lévy, etc.) devem fazer parte do leque de potenciais parcerias
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políticas do Bloco e o seu trabalho político deve ser alvo de acompanhamento e de
estudo contínuo.
Oposição global à vaga neo-conservadora
O grande combate político planetário do momento opõe-nos à vaga neo-conservadora
global que tenta controlar a política planetária através do belicismo e de mitos
económicos, como a “mão invisível”, que são apresentados como a banha da cobra
para todas as maleitas sociais. Trata-se de um ataque cerrado a modelos sociais justos
e experimentados com sucesso sobretudo na Europa, o que tem colocado debaixo de
fogo essa mesma Europa através de um anti-europeísmo permanente, abjecto e
fraudulento, que atinge sobretudo os países que mais garantias e direitos oferecem aos
seus cidadãos. Este combate só pode ser ganho se trabalharmos em conjunto com
todas as esquerdas modernas e progressistas de todas as áreas geográficas do
planeta. Isolados e agarrados à nossa própria catequese (como o defendem alguns) é
dar de mão beijada a vitória aos neo-conservadores.
O documento apresentado pela Comissão Política equaciona correctamente este
combate político, quando a caracteriza como uma agenda socialista com a ambição de
se transformar numa cultura e sobretudo quando refere que essa agenda deve ser uma
agenda aberta e que aprende.
2 – Sobre a segunda questão
A segunda questão levantada pelo texto do debate sobre o Rumo Estratégico do Bloco
interpela oportunamente os militantes entre um rumo de cristalização ideológica e um
rumo de movimento aberto. A questão é oportuna pois quem tem estado atento a
alguns dos debates internos do Bloco já deu conta certamente que existe uma corrente
ideológica conservadora e dogmática que possui uma visão da sociedade, da política e
da esquerda que cristalizou no tempo. Essa cristalização ideológica poderá ser
explicada de uma forma simples como o faz Daniel Bensaïd no livro “Les Trotskysmes”,
sendo essencialmente uma consequência do isolamento que sofreram muitos dos
movimentos trotskistas e dissidentes que se espalharam pelo mundo após a
perseguição que lhe foi movida pelos estalinistas. No entanto, esta poderá não ser a
única explicação para essa cristalização ideológica.
Uma esquerda conservadora e arcaica
O grupo de elementos liderado por Gil Garcia que coordena a actual linha política da
Ruptura/FER (que não se deve confundir com os restantes elementos do movimento)
tem sido o porta-estandarte mais visível da defesa dessa cristalização ideológica. Essa
defesa é logo bem patente na forma falseada, ingénua e ignóbil como descreve os
factos mais relevantes da história política mundial da esquerda (ler: “Rumo Estratégico
Alternativo”, os editoriais e a secção “De Olhos Bem Abertos” do jornal Ruptura
disponíveis na internet: http://www.rupturafer.org/). Trata-se de uma descrição ingénua
e falseada, pois basicamente tudo o que se passou no mundo e na esquerda para lá da
revolução de 1917/18 ou é grosseiramente ignorado ou simplesmente menosprezado. O
fim da II Guerra Mundial e a ocupação do leste da Europa pelas forças soviéticas, o
Maio de 68 e a queda do Muro de Berlim são factos que claramente não entram na
equação da linha política liderada por Gil Garcia. Esta linha tem uma visão
absolutamente cândida e dogmática dos escritos de Marx. Se Marx tivesse assistido a
todos os acontecimentos que se produziram no século XX e XXI, os seus escritos
seriam hoje certamente diferentes. Karl Marx era uma personagem política de rara
inteligência e brilhantismo que não seria certamente indiferente ao Maio de 68 e ao fim
do Bloco de Leste, como não seria indiferente às novas visões do mundo reveladas pela
24
psicanálise de Freud, a relatividade de Einstein ou o princípio de incerteza de
Heisenberg, que introduziram novas formas, genuinamente revolucionárias, de pensar e
de interpretar a realidade. Para a linha política de Gil Garcia o marxismo é interpretado
à letra e transposto peça por peça desde o século XIX até ao século XXI,
inclusivamente os seus inimigos, os sociais-democratas. Gil Garcia descobre-os nos
cantos mais recônditos do Bloco, de uma forma que roça frequentemente os contornos
do ridículo, quais moinhos de vento de La Mancha! Marx é deste modo interpretado não
como um brilhante político mas como uma medíocre divindade, como um ícone kitsch
para uma seita fiel e devotada. Considero ainda a interpretação da história da linha
política de Gil Garcia ignóbil e abjecta, pois faz uma interpretação do modelo comunista
soviético como uma simples “perversão do partido revolucionário bolchevique”, como se
erros políticos fundamentais não estivessem na génese do colapso soviético (que não é
abordado), como se este colapso fosse consequência de uma simples falha humana,
um banal erro de condução e não um importante problema mecânico. E afirmo-o
peremptoriamente, apoiado não somente na vasta documentação histórica que é hoje a
todos acessível e que não deve ser escamoteada, mas também pela dura realidade
vivida durante décadas por parte da família do autor deste texto na antiga
Checoslováquia.
A cristalização ideológica nota-se também na forma como são apresentadas as
variantes políticas de esquerda, que se resumem a apenas duas…
Movimentos políticos importantes recentes que conquistaram uma certa dimensão na
esquerda e que continuam a crescer como os Verdes, os movimentos pós-modernos,
os Liberals de esquerda do Reino Unido e dos EUA (estes apoiados por Michael Moore)
e todos as variantes que resultam da fusão destes movimentos entre eles e de fusões
com as esquerdas já existentes, tornaram a esquerda de hoje muito mais complexa e
diversa – como vem descrito no texto da Comissão Política – bem diferente do simplório
e arcaico cenário descrito por Gil Garcia de uma esquerda que se divide em apenas
duas correntes: os sociais-democratas e os revolucionários bolcheviques (estes com
duas cambiantes: pervertidos ou puros). Esta é uma interpretação política claramente
conservadora e que insiste em catalogar e delimitar abusivamente todos os militantes
do Bloco entre sociais-democratas (os maus) e bolcheviques (os bons), onde
frequentemente se usam designações como “a direita do Bloco” (os sociais-democratas
e maus) e “a esquerda do Bloco” (os bolcheviques puros, não perversos e bons).
Percebemos que a linha política de Gil Garcia vê a esquerda de uma forma linear, onde
ao longo de um eixo cartesiano se dispõem os camaradas mais à esquerda ou mais à
direita consoante os camaradas são mais bolcheviques revolucionários ou mais sociaisdemocratas
institucionais. O problema é que a política não é linear e outras dimensões
do universo das esquerdas se juntam a esta. Por exemplo, a dimensão da tolerância
(valor fundamental de esquerda) que encontra no outro extremo o autoritarismo. E neste
particular, a linha política de Gil Garcia será mais tolerante ou mais autoritária que as
restantes linhas políticas do Bloco? Será mais conservadora ou progressista? Será uma
linha política mais dogmática ou que se questiona? Será hermética ou aberta? Será
uma linha petrificada ou uma linha que evolui e aprende? Será uma linha que inclui ou
que exclui?
A verdade é que deste breve questionário a política de Gil Garcia sai muito mal
tratada e uma breve e rigorosa análise permite perceber que a corrente política que se
auto-intitula “mais à esquerda” tem afinal muito pouco de esquerda. A visão de
esquerda de Gil Garcia baseia-se em grande medida na esquerda do século XIX, século
esse em que a esquerda tal como a conhecemos hoje se começou a esboçar, mas que
no entanto ainda continha muitos tiques condicionados pelo violento ambiente político
25
do mundo que era completamente dominado por regimes autoritários de toda a espécie,
pelos resquícios da nobreza e pela nova classe de industriais que praticavam o
autoritarismo, o abuso, a vingança, a justiça sumária, o dogmatismo, a exclusão, etc.
Não espanta pois que, tal como a esquerda do século XIX, alguns desses tiques
tenham sido, fora do seu tempo e do seu ambiente político, preservados pelo discurso
político de Gil Garcia. Quem faz trabalho político no BE de Coimbra já se habituou a
assistir, da parte de alguns elementos da linha política mais próxima de Gil Garcia (que
distingo claramente dos restantes elementos mais autónomos da Ruptura), a tentativas
de autoritarismo de paróquia, dogmatismos dignos do mais fervoroso catequista,
pequenas vinganças, pretensões evangelizadoras da fé marxista com contornos de
lavagem cerebral, intimidações, fulanizações gratuitas e sobretudo muita vitimização
digna do santuário de Fátima em dias de peregrinação. Tudo isto rima com
conservadorismo e rima pouco com esquerda. E o pior é que este conservadorismo é
mal disfarçado com alguns laivos de suposta modernidade através de acções que se
pretendem revolucionárias, mas que pelo seu carácter violento, intimidativo, fulanizante
e sobretudo vazio de conteúdo político, fazem mais lembrar o hooliganismo de uma
banal claque desportiva.
As palavras “trabalhadores” e “revolução” esvaziadas do seu significado
O fraco conteúdo desta linha política encontra frequentemente refúgio nos
termos “trabalhadores” e “revolução”, duas palavras constantemente brandidas e
esvaziadas do seu verdadeiro conteúdo. Basicamente, servem para justificar
toscamente o posicionamento “mais à esquerda” à falta de melhores argumentos e
práticas. A palavra “trabalhadores” e restante vocabulário agregado (“o proletariado”,
“os patrões”, “os operários”, etc.), são palavras debitadas directamente do ideário do
século XIX, ignorando completamente as diferentes realidades que existem entre o
mundo do trabalho de hoje e o mundo do trabalho há 150 anos atrás. Na altura o mundo
do trabalho possuía uma significativa componente do sector secundário e primário que
implicava um tipo de luta e de trabalho político completamente diferente daquele que é
hoje necessário tal é a sua diversidade e complexidade, como refere o texto da
Comissão Política. Fica assim bem patente que a defesa do mundo do trabalho não é
propriamente o forte da linha política de Gil Garcia, sendo esta uma conclusão
alcançada já excluindo a candura com que alguns dos elementos que representam esta
linha política proferem este vocabulário. Proferem-no com uma tal candura que se
percebe imediatamente que não possuem grandes noções do que é o trabalho e do que
é trabalhar.
Tal como o “trabalho”, a palavra “revolução” e seus derivados são termos que
servem de instrumento para compensar as carências programáticas da linha política em
causa. O carácter revolucionário das políticas de esquerda mede-se pelo conteúdo
programático e não pela forma, pela rapidez ou pela espectacularidade da sua
aplicação em prática. É notório que a concepção revolucionária da linha política de Gil
Garcia se concentra mais sobre a forma do que sobre o conteúdo político, ficando isso
bem patente quando grande do seu discurso se centra contra institucionalização da
política de esquerda defendendo como única solução uma “corrente revolucionária de
massas”. Ora, uma corrente baseada nas massas só é revolucionária se o conteúdo
político dessa corrente for revolucionário. Nesse particular já aqui ficou registado um
conservadorismo endémico e arcaico que muito dificilmente se poderá classificar de
revolucionário. Para além do mais surgem-nos bastantes dúvidas do texto “Rumo
Estratégico Alternativo” sobre o tipo de democracia que seria praticada após a vitória
política dessa “corrente revolucionária de massas”. Percebemos que o parlamentarismo
seria excluído dessa democracia. No entanto, apesar de nem sempre funcionarem
26
como deveriam, sabemos que todas as verdadeiras democracias de hoje possuem
mecanismos de controlo e de regulação da parte dos cidadãos sobre o poder político e
judicial, quer através do voto quer através de outras mecanismos de controlo da
actividade destes órgãos de poder. Em relação à proposta da linha política descrita
ficamos sem perceber como os órgãos de poder político – os que aplicam as políticas –
serão regulados pelos cidadãos, regulação essa que é um dos pilares essenciais da
prática democrática. Este é um problema que não sendo resolvido possui a capacidade
de minar o mais romântico processo revolucionário, como aconteceu por demasiadas
vezes no passado político da esquerda. Será esta regulação implementada por
comissões de camaradas (funcionários) bem doutrinados? Ou será apenas necessário
um camarada politicamente iluminado ou um partido único infalível, dispensando os
cidadãos de qualquer mecanismo de controlo e de regulação da política e da justiça?
Conclusão: nem PCP, nem MRPP!
Este contributo para o debate do rumo estratégico do Bloco expressa aqui
claramente não só a rejeição da linha política defendida pelo “Rumo Estratégico
Alternativo”, como também o combate político às linhas essenciais dessa proposta.
Uma via que interpreta a esquerda de uma forma conservadora e arcaica faria do Bloco
uma formação política de um carácter completamente diferente, privado de diversidade
e pluralismo, fechado à aprendizagem, politicamente estanque, dogmático, virado para
o catecismo e para a evangelização política. O Bloco resumir-se-ia assim a uma
espécie de versão bolchevique “pura” do bolcheviquismo “perverso” do PCP ou uma
espécie de fotocópia em tamanho A3 do MRPP. Não estamos cá para isso …
27
CONTRIBUTO DE RUI MAIA (núcleo de Loures)
Sem querer ser “intrometido”, mas já que ainda ontem se anunciou a existência
de um texto alternativo para o Rumo do Bloco, eu gostava, não de apresentar um
texto alternativo porque me parece que o primeiro está com muita qualidade e
muito menos me considero capaz de desenvolver uma reflexão mais profunda,
mas porque penso que a resposta à primeira pergunta poderia ter enfoque
redireccionado. Parece-me também que não será desproporcionado fornecer mais
algumas reflexões por escrito para a reflexão dos autores do primeiro texto
porque como é claro, a capacidade de exposição pode ser melhorada quando
posta por escrito.
Primeira questão: a contracultura acabou?
No texto existe, em resposta à primeira questão, várias fases de uma resposta que na
minha opinião poderia ser melhorada.
Nos primeiros 5 parágrafos é efectuada uma análise mais prática daquilo que a
realidade nos tem mostrado e parece-me que a resposta é muito bem introduzida com
conceitos objectivos de análise ao espaço político actual e aos factos que levaram o
Bloco a crescer e a definir-se como um partido de lutas pelos direitos da maioria em
detrimento do normal alinhamento em forma de lobby dos partidos com representação
parlamentar até agora existentes.
Segue-se um delinear de um raciocínio que se baseia em definir o termo contracultura
fazendo uma retrospectiva sobre o surgimento do termo contracultura até à definição
mais abrangente que hoje poderá ter, enunciando várias interpretações mais ou menos
interessadas do termos contracultura, mas na minha opinião, dando muito pouco relevo
aquilo que se passa a um nível mais global e que ultrapassa as nossas fronteiras, ou
seja, o conflito social e a radicalização de um conflito de classes que está a crescer com
ambas as partes em conflito a munir-se melhor e organizando-se com mais força.
Parece-me que a resposta se preocupa demasiado em explicar a ideia de contracultura
moderna tentado deixar bem claro que os teóricos neoliberais como jmf demonstram
medo do nosso tipo de organização porque rompe com uma estabilidade política que
está claramente em oposição à estabilidade social. Obviamente que o jmf como outros
sabem aquilo que fazemos e como escolhemos fazer, e sabem também que não será
fácil acabar com o Bloco até pela orgânica dinâmica que constrói e se organiza de fora
(do social) para dentro (organização política).
O que não me parece que esteja claro na resposta e que eu gostava que fosse mais
explícito, é que o Bloco não se insere apenas numa cultura de modernidade e de
desenvolvimento social em antagonismo à violência do capitalismo e ao
conservadorismo que usa a mentira como forma de propaganda política e remete para o
futuro uma solução que cada vez é mais difícil atingir pelo caminho que a própria
doutrina ao mesmo tempo actual e arcaica delineia. O Bloco insere-se e cresce num
momento de agudização do conflito social, em que as bases para esse conflito surgem
precisamente da política conservadora e neoliberal que é utilizada nos países mais
“modernos” ou “desenvolvidos” do globo. Essa política neoliberal (e os seus adeptos,
em geral bem localizados economicamente e socialmente) que é exportada da forma
que for necessário, tem contribuído ao mesmo tempo para que a maioria da população
mundial esteja cada vez mais pobre e dependente de um pequeno grupo que detém de
forma esmagadora a riqueza e produção. Mas se por um lado são os actores e
beneficiadores da política neoliberal que tentam demonstrar que nós somos “apenas”
28
contracultura e que nos inserimos na política como um fenómeno efémero, por outro
lado, ignoraram o factor de revolta humano contra a subversão e privação, esse factor é
o verdadeiro centro, não da contracultura mas de uma atitude de resposta, mais ou
menos organizada a uma agressão constante que nas últimas décadas se agrava e que
atinge mais pessoas. A contracultura como forma de um pensamento organizado e de
sistema de organização política ou social organizado não é para mim portanto o centro
da nossa resposta, mas sim, o resultado de uma resposta que é dada, na Europa, na
América Latina, e onde mais se organizem actores sociais e políticos para defender os
interesses da maioria. Tanto mais consistente esta contra-cultura será quanto mais
objectiva e qualificada for a nossa acção, até se tornar numa alternativa social e
económica.
A política capitalista não conseguirá estrangular de forma continuada os movimentos
sociais e políticos como o Bloco, não porque estes representem grupos de elites
intelectuais mas porque são o fruto da própria política capitalista, que enquanto agride e
restringe direitos, gera filhos para a guerra social que se agudiza. A política neoliberal
gera revolta e eventualmente grupos sociais e movimentos de revolução em relação à
organização vigente, e fruto desse nascimento organizado e desse pensamento
revolucionário à época, nasce uma contracultura, contra a cultura vigente e os métodos
de organização social considerados injustos e a redistribuição obviamente escandalosa
da produção e da riqueza.
No texto refere-se ainda que “Se esta agenda se puder transformar numa cultura, então
terá uma força intrínseca muito superior à actual, e é nessa
referência que se cria a força e a fidelidade de um campo político. Para o
desenvolvimento do Bloco, precisamos
que esta agenda se transforme numa cultura.”
Parece-me que se por um lado o Bloco se deve claramente comprometer a desenvolver
esses movimentos sociais alimentando-os de política, debate e informação, sem ter
como objectivo o controlo dos mesmos (tal como faz o PC), por outro lado devemos ser
muito claros em assumir que as acções de crescimento da massa crítica a nível
nacional deve ser estritamente ligada a movimentos internacionais que vão no mesmo
sentido, quando estes forem uma realidade já existente. O Bloco não deverá observar
apenas a actividade política como forma de crescimento de um campo político, mas
sim, acentar esse crescimento sustentado numa estrutura organizacional e de acção
política que forneça a esse vasto campo político em potência um suporte organizativo e
de estrutura de comunicação e informação eficiente que possa trazer vantagem em
relação ao embate tido com um agressor social que domina neste momento quase toda
a capacidade estratégica de informação e comunicação. Não será inútil relembrar que a
luta “anti-terrorista” tem tido um enfoque não nos off-shores ou lavagem de capital e
tráfico ilegal de armas, mas sim, no controlo das organizações e das comunicações
vindas dos mais variados meios que ainda não estão dominados (pela própria sua
natureza), sejam estes os telefones fixos ou móveis ou a Internet. É necessário portanto
dotar o nosso campo social e político, a nível nacional e internacional, de um suporte
forte, não porque este suporte venha de alguma ou algumas organizações que
dominem ou definam o conceito de contracultura, mas porque essa contracultura cresce
fruto da actividade social do povo esta necessita de ser alimentada.
29
| LiNgUaDoS e ChOcHoS |
No momento em que se preparava para sair do quarto, sentiu uma mão a tocar-lhe
levemente no ombro. Virou-se apenas o suficiente para que se apercebesse que os seus lábios
já lhe tocavam. Um beijo chocho. Ora os beijos chochos são por natureza coisas
desenxabidas e sensaboronas. São a antítese da paixão que presumem anunciar.
Contraiu os músculos dos braços e, movimento contínuo, transformou um beijo chocho
num linguado. Como é óbvio aquilo não ficou por ali.
| mAnIa Da InSaTiSfAçÃo |
Este documento pretende contribuir para o debate que foi lançado pela direcção do
Bloco. É um documento que quer fazer crescer o debate e não diminuí-lo. Os seus autores
estão de acordo com as grandes linhas da análise efectuada e da caracterização do momento
político na esquerda e no país. O texto da comissão política é muito claro e em certo sentido
clarividente. Não queremos fazer por isso polémica. Procuramos aqui juntar perspectivas e
com isso precisar ideias, sobretudo no plano interno do movimento. Uma direcção que
questiona em vez de afirmar, expondo-se de forma pouco habitual na política partidária, é
uma demonstração inequívoca de uma nova forma de entender a prática dirigente. Queremos
isso e como é natural – aqui sorrimos – queremos um pouco mais.
| oUtRaS hIsTóRiAs |
O texto começa com o enquadramento da discussão, centrando-o nas questões sobre a
modernidade/antiguidade clássica ou nos debates da sociedade norte-americana dos anos
setenta. É uma discussão interessante, mas situada temporalmente e com utilidade apenas para
o debate com os nossos adversários - para compreender o neo-conservadorismo, mas não uma
nova esquerda. O facto de os nossos adversários se socorrerem dessas questões deve-se
provavelmente ao facto de o Bloco ser um fenómeno incompreensível para eles. A novidade
do Bloco deve ser entendida em 2006, 7 anos depois da sua formação, com os elementos de
novidade da sociedade portuguesa e do seu contexto internacional. O texto bate certo no sítio
certo logo de seguida.
Mas voltemos aos anos setenta para contar outra história. Num momento em que a
lógica nuclear da guerra-fria dominava o planeta, um grupo de investigadores em computação
americanos percebe que nenhum sistema de informação poderia sobreviver a uma guerra,
seguindo a lógica tradicional de guerra de fortalezas, posições e trincheiras. Seguindo essas
regras nenhum sistema de informação teria qualquer interesse ou viabilidade. Ora a solução
encontrada era mudar as regras ou, falando caro, mudar de paradigma. A solução passou por
fazer com que os sistemas de computação estivessem distribuídos, garantindo o máximo de
autonomia em cada um dos elementos, fazendo com que em caso de ataque nuclear, todos os
restantes nós se mantivessem operacionais e comunicantes. Garantia-se assim o
funcionamento global do sistema. A esse modelo de infra-estrutura deu-se o nome de
funcionamento em rede. Em 1971, com apenas 15 computadores ligados aparece aquilo que é
hoje conhecida como a Internet.
1
| Os PrImEiRoS pAsSos |
A relevância eleitoral do Bloco surge não apenas por estar por cumprir aquilo que é
definido no texto como “a agenda da modernidade”. O Bloco está na política enquanto
herdeiro dessa “agenda” - é certo - mas com uma forma de intervenção que não se coaduna
com as ferramentas tradicionais de análise política. Isto é verdade não só para adversários (de
esquerda ou de direita) mas também para companheiros de estrada. Quem quer que já tenha
passado pela tarefa de explicar o Bloco a um militante da extrema-esquerda francesa, percebe
toda a amplitude da questão.
O Bloco lança na esquerda portuguesa formas inéditas e criativas de fazer política. No
momento inicial, nasceu da união de diversos partidos grupusculares da esquerda não
parlamentar. O desafio era criar formas organizativas em que as tensões entre miscigenação e
sectarismo fossem ultrapassadas privilegiando a aprendizagem mútua e a afirmação de
unidade. Seríamos ingénuos se pensássemos que este processo decorreu sem conflitos ou
contradições, estando neste momento ultrapassado em absoluto. É no entanto um traço
dominante e que corresponde à prática organizativa maioritária. Esse desafio foi vencido, ao
ponto dos partidos fundadores se terem dissolvido em correntes políticas que
programaticamente não desejam voltar a ter expressão eleitoral própria. O Bloco tornou-se
maior que a soma das partes e venceu o primeiro desafio – nascer.
| aS pUlGaS mAtAm-Se De MuItAs MaNeIrAs |
O segundo desafio era o da credibilidade. Tal como é referido no texto esse desafio foi
ultrapassado com o sucesso eleitoral, com a capacidade de intervenção do seu grupo
parlamentar, com a notoriedade e reconhecimento dos seus dirigentes, com a firmeza das suas
escolhas nos debates que atravessaram a sociedade portuguesa. O Bloco venceu este desafio
num terreno enormemente armadilhado. Não existia em Portugal uma tradição política
autónoma das dinâmicas partidárias (aqui exceptuamos os movimentos estudantis do período
cavaquista). Entretanto surgiram mobilizações inéditas que denunciaram a hipocrisia
internacional no caso de Timor e no caso Iraquiano. Curiosamente no momento em que se
procura modificar de forma mais ampla e conservadora os direitos sociais dos assalariados, a
greve geral marcada contra o governo PSD-CDS tem uma expressão limitada e denota as
fragilidades do movimento sindical em momentos críticos de emergência social.
A credibilidade e o sucesso do Bloco resultam então de um núcleo chave de quadros
políticos que conseguiram fazer singrar a organização, apesar da inexistência de um
movimento social com continuidade temporal, com capacidade de criar quadros e consciência
social. Curiosamente algo comum noutros países da Europa do sul.
Não temos neste processo uma perspectiva mecanicista. Não pensamos que o Bloco
tenha mais ou menos mérito por se ter constituído desta forma, numa forma inversa
(simplisticamente) ao que foi o processo, p.ex, do PT Brasileiro. As pulgas matam-se de
muitas maneiras, mas apesar disso devemos ter consciência da forma como o fizemos e como
o queremos fazer.
2
| a CuLtUrA dA eFeRvEsCêNcIa |
O terceiro desafio, que é o presente e portanto aquele que é mais importante, é o de
termos a capacidade de ser maioria social. Aqui todos os olhos se arregalam. O Bloco soube
nas últimas legislativas responder de forma coerente ao desafio da institucionalização. Não
queremos ser apêndices de um governo neo-liberal do Partido Socialista. Nem, ao contrário
do PCP ou do CDS, pensamos que o sucesso da nossa intervenção institucional possa ser
medido pela capacidade de participar a qualquer preço num executivo. Ser maioria social é
um desafio muito maior, mais empolgante e genuíno do que conseguir ter no paladar o sabor
do poder governativo.
Pelo contrário, como é correctamente enunciado no texto, é necessária uma cultura
política própria capaz de no país gerar movimento, capacidade de resistência mas sobretudo
capacidade de fazer propostas que impliquem mudanças efectivas. Essa é a semente
subversiva da transformação. Justamente por isso há que considerar “que a luta emancipatória
do Trabalho é inseparável de todos os outros referenciais de transformação e modernização. E
que entre os diferentes conflitos que atravessam a sociedade não têm que se estabelecer
hierarquias ou subordinações ao serviço de uma visão partidária, mas antes desenvolvimento
combinado e articulação.”
Que cultura é então esta, que tenha capacidade de reduzir o (neo) conservadorismo a um
fenómeno inoperante no seio da sociedade portuguesa? A metáfora da rede pode ser aqui
relembrada. A ideia pode ser enunciada da seguinte maneira: há uma tensão entre as formas
clássicas de organização e novas formas que privilegiam o funcionamento organizativo em
rede, em que cada um dos nós da rede tem autonomia própria e capacidade de intervenção por
si só. O Bloco tem no seu seio boas sementes para que estas formas de informalidade possam
ganhar força. Uma nova cultura política capaz de se constituir com força em Portugal deverá
ter a capacidade de criar laços entre as pessoas, permitir que se estabeleça activismo para
além de formas centralizadas de acção e que garantam finalmente a existência de um novo
corpo social de esquerda, com quadros formados num cadinho completamente diverso
daquele que resultou do período marcado por 74 e décadas seguintes. Essa é uma das
conclusões que podemos tirar do movimento de Fóruns Sociais em geral e de outras
experiências mais locais relevantes, como alguns aspectos do movimento contra a guerra (na
Grã-Bretanha), o movimento zapatista (México), as experiências organizativas precárias em
torno do May-Day (Itália), a rede de colectivos Sans Papiers (França), as redes informativas
Indymedia (EUA) e, voltando mesmo até lá atrás, as comissões de trabalhadores e moradores
do pós-25 de Abril (Portugal). Este movimento popular é em Portugal muito incipiente, e
tanto orgânica como programaticamente embrionário. A sua experiência organizativa em
sentido lato é no entanto relevante e com consequências ao nível da nossa própria forma de
funcionar.
| oPtImIsMo |
Este terceiro desafio, o de ser maioria social, sendo muito mais empolgante que a
clássica questão da tomada do poder, encerra em si mesmo optimismo. Mas esse optimismo
não é só uma questão de crença abstracta, como seria certamente apenas há meia dúzia de
anos atrás. O Bloco tem núcleos geograficamente muito dispersos, com ritmos e experiências
muito próprias. Existimos efectivamente em todos os distritos do país. Com este optimismo
3
não queremos escamotear dificuldades. A primeira das quais resulta da necessidade que
tivemos até hoje em mimetizar o aparelho de estado. Nesse sentido a transversalidade e a
informalidade que é necessária num movimento em rede, aprofundaria o papel das direcções
locais e dos núcleos enquanto fóruns de coordenação e não como organizadores exclusivos da
agenda central / eleitoral de Lisboa. “Não, o nosso modelo não é o dos partidos sociaisdemocratas
do século XIX nem o dos partidos comunistas do século XX.” O desafio é
portanto o de criar em Portugal um movimento político capaz de ser catalizador da
efervescência social e tornar-se um fórum capaz de agregar de forma aberta a maioria dos
activistas do país. O Bloco tornar-se-á o ponto de partida da cidadania para uma intervenção
institucional, disputando o espaço dos partidos políticos tradicionais.
A “primeira certeza conservadora: só há espaço para os partidos tradicionais, dois à
esquerda e dois à direita, com um modelo de governação que tome razoavelmente indistintas
as políticas dos partidos alternantes no governo, configurando um bloco central continuista
por via da orientação de cada um desses partidos quando chega ao poder”. Para além dos
partidos do “centrão”, as formações situadas lateralmente deste espectro político, neste caso o
PCP e o PP, representando sectores sociais específicos, assumem igualmente um papel de
elemento integrador da dissidência dentro da arquitectura institucional da democracia
representativa burguesa. A participação em instituições do aparelho do Estado e a sua
manutenção ao longo do tempo pode conduzir, caso não exista um sentido apurado sobre qual
é o projecto estratégico de transformação social do Bloco, a uma integração no sistema
hegemónico. Assim, o combate à institucionalização e à rotina, passa por buscar as formas de
articulação da acção política institucional e extra institucional, num projecto que, mais do que
exercer o poder tal como ele é concebido, visa operar uma transformação radical nas relações
desiguais de poder existentes nas mais diversas esferas da vida. Essa articulação não pode ser
tão só proclamada mas sim consubstanciada nas práticas organizativas e consequentemente na
afectação de recursos materiais e humanos.
| uM pErCuRsO eM dUaS pErNaS |
Neste sentido o Bloco será uma forma original bicéfala de política, onde activistas
sociais com uma constelação de intervenções específicas se podem encontrar para definir
programas de unidade que disputem o território do aparelho de estado, da mesma forma que
disputam o espaço das vivências sociais de base, ligadas a formas não representativas do
poder político. Esta efervescência é a autonomia dos nós da rede. Este é o desafio dos
próximos anos. Manter a credibilidade e o sucesso da intervenção dos nossos eleitos ao
mesmo tempo que desenvolvemos um projecto de efervescência social capaz de se articular
com as dinâmicas da sociedade. Que se crie o terreno propício para a formação de corpo
social, de criação de cultura política, de discussões consequentes e de uma prática
organizativa onde a acção e a discussão andam lado-a-lado. Assim se formarão quadros
políticos fazendo com que no binómio “sucesso eleitoral / transformação social”, os termos
não façam sentido isoladamente.
4
| uM mOvImEnTo De MoViMeNtOs |
O Bloco não é hoje um partido frentista ou um partido onde as suas correntes sejam
estáticas no tempo. Sendo o Bloco um processo de aprendizagem colectivo, também as
correntes que lhe deram origem se transformaram drasticamente com a sua integração no
movimento. Nenhuma dessas correntes pode prescindir hoje do Bloco, tal como o Bloco veria
reduzido dramaticamente o seu arco-íris com a saída de qualquer das suas componentes. Cada
uma das correntes tem uma perspectiva específica sobre a actualidade. Todas elas são
legítimas e têm direito de se exprimir. Sobre isso não nos vamos pronunciar. Achamos que no
entanto deve ser discutida colectivamente a novidade deste modo de fazer política, as
limitações e potencialidades desse modelo.
Há duas formas de encarar este modelo. Poderíamos pensar que as correntes serviriam
para exprimir expressões programáticas próprias, partilhando entre si regras de partilha
interna de poder, criando um consenso blindado no centralismo de cada uma e numa cadeia de
comando (in)formal à qual responderiam os seus membros, condicionando debates e decisões
ao nível das diferentes instâncias do Bloco. Nesta lógica de funcionamento os bastidores
precederiam o palco.
Outra perspectiva é a de que as correntes, ainda que herdeiras de tradições próprias,
serviriam como espaços de questionamento, fóruns de debate específicos e como elementos
naturais da democracia interna. Nesta lógica o palco, melhor dizendo, os palcos, seriam
transparentes e em grande medida abertos a todos os membros do Bloco. Por esta razão
existem as mais variadas publicações no Bloco. Na exacta medida em que soubéssemos os
princípios de cada um, em todos os debates haveria clareza de posições e não seria necessário
discutir sempre as pedras basilares da nossa intervenção a partir do zero, repetindo ad
nauseam princípios e posições específicas. Isto não significa evidentemente consenso, mas
daria mais operacionalidade aos fóruns que o Bloco organiza internamente.
Aprofundar a lógica de espaço de espaços, fórum de fóruns, movimento de movimentos
deverá assentar nesta lógica de parceria em concorrência. Isto significa confiança e
conhecimento mútuo, apesar das divergências específicas. Significa reconhecimento de
legitimidade na organização colectiva interna e na vontade comum de recombinação,
aprendizagem e de criação de espaços crioulos.
| PaRoLe, PaRoLe, PaRoLe |
Uma questão final sobre as palavras. Por muitas vezes ouvimos falar sobre a “esquerda
moderna”. Faz sentido fazê-lo no contexto político e de agit-prop, mas é um pouco estranho
lê-lo em textos programáticos.
Se tomarmos como escala de análise a do tempo presente, podemos concerteza
classificar o nosso projecto de moderno em relação à agenda conservadora dos nossos
opositores. Aqui existe naturalmente uma disputa de sentidos e de significados, em que
procuramos combater a simbologia da mudança, do moderno, do progresso que tem sido
hegemonizada pela direita. Assim para a direita, as “reformas modernas” significam a
privatização dos bens públicos e a desregulamentação das relações laborais. Nesse sentido a
reapropriação por parte da esquerda desta palavra significa a disputa do seu significado,
incorporando-lhe novos valores, nomeadamente os da ampliação do cânone democrático e da
conquista de direitos sociais e políticos, relegando a direita para o campo do conservadorismo
5
e da regressão social. O resgate do significado das palavras é um bom ponto de partida na
construção da acção política. Até aqui tudo bem.
Mas o que pode causar estranheza é de facto a reafirmação deste no que se propõe ser
um texto programático. Aqui o termo moderno ou modernidade poderia assumir contornos de
análise paradigmática. Se se tomasse esse enfoque paradigmático, poder-se-ia argumentar que
a noção de modernidade se encontra intrinsecamente associada ao contexto do século XX, à
ideia de um bem absoluto, de um programa político máximo, de uma ordem social que
poderia (assim se acreditava) ser caracterizada a régua e esquadro. A ideia moderna de ordem
é a da prevalência do centro sobre a periferia, da direcção sobre as bases. É a lógica da cadeia
de comando, dos modelos de produção de Taylor ou de Ford. É a lógica da dissuasão nuclear
ou no seu limite, da máquina de extermínio nazi.
A modernidade é assim entendida como uma antítese da lógica da movimentação. Da
prevalência do processo sobre a estrutura, da dinâmica e da interacção sobre programas e
dogmas pré-estabelecidos, da mutação sobre o definitivo, do que é dialéctico sobre o que é
estritamente mecanicista.
O debate paradigmático pode e deve ser tido mas cremos que não seria este o propósito.
Referindo mais uma vez concordância com o texto, talvez preferíssemos outra palavra quando
é usada por diversas vezes o termo “esquerda moderna”.
O que abre em Portugal espaço social para um movimento como o Bloco é o final do
modelo de desenvolvimento baseado na industrialização e na mecanização. Esse era o
princípio da modernidade mas não é o princípio do momento em que vivemos. Essa é também
uma das conclusões que podemos tirar da mobilidade eleitoral que tem ganho importância nos
tempos mais recentes. Maioria absoluta do PS nas legislativas e logo de seguida maioria
absoluta da direita nas presidenciais. A fidelidade partidária, onde as eleições eram decididas
pela classe média oscilando ao centro no Bloco Central terminaram e nós próprios não só
disputamos, como potenciamos essa mobilidade. Em todas as eleições disputamos todos os
votos.
Recriar sentido para palavras, inventar conceitos e criar novos significantes será apenas
mais um dos desafios a que nos lançamos enquanto organização.
| uMa MiLiTâNcIa OnDe O cHoCho É eStRaNgEiRo |
Finalmente há um aspecto ausente do texto da direcção e que deve aqui ser relembrado.
O prazer, o gozo e boa disposição não podem nunca ser componentes menores ou um
elemento negligenciável na cultura política que desejamos construir dentro do Bloco. Não
podemos pensar os nossos militantes como sujeitos amorfos de subjectividades e que se
revejam numa militância estritamente enquadrada por um modelo institucional de
organização. Esta dimensão cruza-se com muitas das questões chave de uma cultura política
capaz de enfrentar os desafios contemporâneos da nossa organização.
Coimbra e Porto, 14 de Março de 2006
Hugo Dias - hrdias@aeiou.pt
João Luciano - joaoluc@gmail.com
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