sexta-feira, novembro 28

Batalhas a Travar, Desafios a Vencer
Por JORGE SAMPAIO
Sexta-feira, 28 de Novembro de 2003

Ao longo dos meus mandatos como Presidente da República, muitas têm sido as ocasiões em que me insurjo contra o derrotismo e o clima depressivo em que tantos portugueses se deixam mergulhar. Admito que alguns vejam nessa minha atitude um sinal de que adiro a uma visão demasiado optimista ou, no mínimo, pouco realista sobre a situação e o futuro do País.

A verdade é outra, pois procuro assim fazer um apelo a que encontremos forma de mobilizar as nossas energias e capacidades no sentido do desenvolvimento e progresso da comunidade nacional. Até porque, no contacto directo com o quotidiano dos meus concidadãos, impressionam-me as fragilidades e bloqueamentos estruturais que ainda subsistem entre nós, não obstante todos os avanços que, em múltiplos domínios da vida social, foram conseguidos com a reinstauração e consolidação da democracia.

Com efeito, uma leitura cuidadosa dos indicadores com que, hoje, são conduzidas comparações internacionais pertinentes permite lançar luz sobre a extensão e gravidade dos problemas com que a sociedade portuguesa se confronta.

Assim, e para começar com uma referência a elementos informativos sobre a incidência da pobreza, sabe-se que, nessa perspectiva, o nosso País continua, infelizmente, a ser colocado nos últimos lugares da Europa dos Quinze, com a agravante de, entre nós, ser elevado o número de famílias pobres que permanecem nessa situação durante períodos de tempo muito alargados.

Para nos situarmos correctamente em relação à questão, vale a pena, contudo, levarmos a leitura dos números um pouco mais longe.

Assim, importa começar por afirmar que, à entrada do actual milénio, a taxa de pobreza em Portugal, continuando embora a ser elevada, era inferior à que se registava cinco ou dez anos antes e estava, apesar de tudo, menos distanciada da média europeia; e, em segundo lugar, que o progresso alcançado foi, seguramente, em boa parte, o resultado da conjugação de políticas sociais, de âmbito europeu e nacional, direccionadas para o combate sistemático às formas extremas de carência de recursos dos indivíduos e famílias (Projectos de Luta Contra a Pobreza, Rendimento Mínimo Garantido, entre outras).

Aliás, um outro indicador sobre pobreza habitualmente apresentado em estudos comparativos - taxa de incidência de pobreza antes de transferências sociais - justifica igualmente a nossa atenção.

Ele revela, para o caso português, que, na ausência de instrumentos de redistribuição de rendimento minimamente eficazes, os números da pobreza apontariam para uma situação ainda mais preocupante: com efeito, segundo os últimos números conhecidos, nada menos do que 27% das famílias portuguesas viveriam abaixo do limiar de pobreza se lhes fosse negado o acesso a prestações no âmbito do sistema de protecção social. Surpreendentemente, as comparações internacionais conduzidas na perspectiva deste último indicador não deixam de revelar ainda que alguns países europeus, conhecidos por terem níveis de pobreza baixos, apresentam taxas de pobreza antes de transferências sociais semelhantes às nossas.

Está aqui um sinal muito claro da importância crucial que a acção do Estado, nomeadamente sob a forma de políticas consistentes de bem estar, pode ter enquanto instrumento de coesão social. E se há motivo para, a este propósito, nos regozijarmos com o facto de ter havido nos últimos anos um crescimento regular das despesas sociais, aliás seguindo uma tendência que tem permitido alguma convergência com os valores médios europeus, o certo é que o patamar de protecção em que nos situamos continua a ser insuficiente. Perante as vulnerabilidades inscritas no tecido económico e social português e a modéstia das prestações sociais (especialmente as dirigidas à população idosa), qualquer recuo nesta dimensão da intervenção do Estado em prol das famílias portuguesas mais carenciadas torna-se, então, dificilmente justificável.

Até há cerca de dois anos, o desemprego em Portugal situava-se em níveis muito baixos. De uma situação de quase pleno emprego, transitou-se, porém, bruscamente, para taxas de desemprego que se aproximam da média europeia - essas reconhecidamente altas, embora em decréscimo tendencial. O espectro do desemprego de longa duração, que estava afastado do horizonte das famílias portuguesas, começa, infelizmente, para algumas delas, a adquirir contornos preocupantes. Concomitantemente, aumenta o risco de, em associação com a perda de rendimentos do trabalho, se gerarem processos acumulativos de marginalização e auto-marginalização que, a prazo, conduzam à erosão dos laços mais elementares de integração na vida colectiva e, daí, à exclusão.

Se este surto, tão intenso e repentino, de desemprego ligado ao abrandamento da economia é, por si só, revelador da fragilidade de um tecido produtivo cada vez mais submetido à concorrência internacional, não o é menos o facto de tender a aumentar, no conjunto dos desempregados, a proporção de indivíduos com níveis de instrução elevados.

Tal facto tem sido encarado por alguns como um sintoma de que o investimento na educação começa a ser excessivo face às "necessidades" do País e da sua economia. Basta, porém, um breve exercício comparativo sobre os níveis de escolarização secundário e superior nos restantes países da UE ou nos países do alargamento, com os quais teremos inevitalmente de competir, para tomarmos consciência do atraso que ainda mantemos neste domínio. O desemprego qualificado que começa a registar-se entre nós não é uma consequência da sobreescolarização, mas, fundamentalmente, o resultado da persistência de sistemas económico-produtivos e, sobretudo, de modelos organizacionais e de gestão de recursos humanos que continuam a apostar mais em salários baixos do que em inovação dos processos, qualidade dos produtos e humanização dos postos de trabalho. Sem uma aposta estratégica, por parte das empresas, nas competências técnicas e outras disposições difundidas, em princípio, pelo sistema educativo e de formação, dificilmente atingiremos taxas de retorno aceitáveis para o investimento colectivo realizado neste domínio.

Dito isto, não quero excluir da análise outras dimensões explicativas do desencontro que entre nós se verifica entre o mundo da educação/formação e o da vida económico-profissional. Tem-se dito, creio que com razão, que algum afastamento das práticas pedagógicas em relação ao ensino experimental e à própria sensibilização para o mundo do trabalho contribui para criar nas novas gerações alguma relutância em fazer as aprendizagens essenciais ao desenvolvimento de carreiras técnicas e profissionais exigidas pelas empresas. E há quem, inclusivamente, atribua ao desmantelamento do ensino técnico-profissional responsabilidade primeira na criação do actual estado de coisas.

A verdade é que sucessivas reformas do sistema de ensino e formação não têm deixado de enfrentar o problema, quer através de revisões curriculares do sistema de ensino básico e secundário, quer através da criação de escolas profissionais, quer através da definição de ciclos de aprendizagem com carácter profissionalizante, alternativos relativamente aos percursos académicos de prosseguimento de estudos. Sabe-se, por outro lado, que, em matéria de formação profissional, chegaram a ser obtidos, após laboriosas negociações, importantes consensos e acordos formais em sede de concertação social sobre o modo de a conceber, organizar e pôr em prática.

Será insuficiente ou simplesmente inadequado todo o esforço desenvolvido neste âmbito? Será que, como acontece noutros domínios da nossa vida colectiva, há um fosso entre as reformas e os modelos institucionais "no papel" e as suas realizações práticas? Terão sido devidamente avaliadas as sucessivas experiências realizadas? Não se terão desactivado precipitadamente, em nome de uma vontade abstracta de mudar, instituições com grande acumulação de reflexão e experiência relevante? Terá havido abertura institucional suficiente para, em vez de multiplicar descoordenadamente iniciativas, procurar integrar recursos e acções para mudar o que tem de ser mudado?

Entendo que é urgente responder a estas perguntas e tirar daí as necessárias conclusões. O País tem graves défices em matéria de escolarização e formação profissional. São preocupantes os níveis de iliteracia da população portuguesa revelados por sucessivos estudos internacionais. É muito desfavorável o perfil de qualificações escolares da nossa população activa, não se vendo qualquer inflexão na tendência dos trabalhadores para se alhearem ou serem afastados da formação profissional. Não há um modelo coerente e com visibilidade pública que garanta no futuro condições para concretizar, como se impõe, programas de educação permanente ao longo da vida.

São debilidades com as quais não me conformo e que me levam a considerar o binómio educação/formação como a prioridade das prioridades políticas. Prioridade que deve envolver todos os cidadãos, mas que atribui aos Governos e serviços do Estado responsabilidades muito especiais.

Sabe-se que, a pretexto do mau funcionamento de alguns serviços e de reconhecidas ineficiências de certos sectores da máquina do Estado na utilização de recursos que lhe são afectados, se têm multiplicado acusações à "função pública", bem como apelos mais ou menos ostensivos a uma privatização generalizada de departamentos da administração. Os resultados a que, noutros países, mas também já no nosso, tem conduzido semelhante orientação - levando, em certos casos, a recuos gravosos no financiamento e, portanto, na qualidade da prestação de serviços básicos de protecção e bem estar dos cidadãos (transportes, protecção da natureza e do ambiente, saúde, educação, abastecimento de água, preservação do património científico e cultural, etc.) - fazem pensar que, afinal, o que parece conduzir a acréscimos de eficiência, produtividade e bem estar das populações no curto prazo significa muitas vezes, em período longo, mais insegurança dos cidadãos, maior instabilidade das instituições - em suma, perda de externalidades sociais indispensáveis a um desenvolvimento sustentado da economia e à criação de condições mínimas de equidade entre os cidadãos.

Na discussão sobre custos e benefícios da intervenção social do Estado, não tem sido, aliás, devidamente lembrado o facto de essa intervenção, nomeadamente no âmbito do "Welfare State", ter contribuído historicamente, de forma indirecta, para uma redistribuição do rendimento em favor dos grupos mais desfavorecidos e da própria ampliação das "classes médias".

Ora, num País que, além de criar riqueza a níveis de produtividade relativamente baixos, distribui de forma muito pouco equitativa a riqueza que produz, este lado redistribuidor implícito da acção do Estado merece ser destacado.

E aqui está outro tema que importa desenvolver.

Na verdade, se são desfavoráveis, em termos de comparações intra-europeias, os índices nacionais de produtividade, não o são menos aqueles que habitualmente se utilizam para medir o grau de equidade na repartição dos rendimentos.

Começando pela dispersão salarial, dizem-nos os números que, não obstante ligeiras melhorias obtidas na segunda metade da década de noventa, continua a haver uma proporção muito elevada de portugueses auferindo salários baixos. Os números apresentados pelas instâncias comunitárias com vista a avaliar o grau de assimetria na distribuição de rendimentos dos Estados-membros ( parte do rendimento auferido pelos 20% mais ricos em relação ao auferido pelos 20% mais pobres) colocam Portugal num incómodo primeiro lugar: sendo de 4,6 o valor médio daquele ratio na União Europeia, em Portugal ele atinge nada menos do que 6,4.

Este aspecto, lamentavelmente ausente, há muito tempo, do debate político, deve, aliás, ser encarado, entre nós, em conjugação com outro que nos remete para uma diferente dimensão das desigualdades sociais no nosso País: o das assimetrias de desenvolvimento no território, nomeadamente as que se reportam, precisamente, à repartição regional do produto.

Com o desenvolvimento de alguns pólos urbanos de média dimensão, a dicotomia litoral/interior sofreu, nas últimas décadas, algumas alterações, levando mesmo a que certos desequilíbrios regionais, quando lidos em determinada escala, surjam um tanto atenuados.

A verdade, porém, é que não cessaram os processos que impõem uma condição periférica a muitos territórios do País, quer, sobretudo, no "interior geográfico", quer, também, em zonas que consideramos pertencerem ao próprio "litoral geográfico".

Assim, na sequência de processos de inviabilização económica de explorações e actividades agro-florestais que outrora garantiam níveis aceitáveis de rendimento às famílias rurais, é no âmbito destas que vamos deparar-nos com algumas das mais dramáticas situações de carência de recursos.

Foi-se instalando entre nós a ideia de que, no quadro de uma Política Agrícola Comum, o mundo agro-rural português está condenado a definhar em silêncio. É uma espécie de postulado que temos de nos habituar a questionar. Em primeiro lugar, porque a PAC não tem de obedecer a um modelo imutável e indiscutível. Depois, porque nada impede que os mecanismos de distribuição de produtos agrícolas, que têm constituído factor de forte e injusta penalização do rendimento dos agricultores, sejam objecto de aperfeiçoamento. Finalmente, porque a reconversão das regiões agrícolas, numa perspectiva de desenvolvimento integrado e sustentável, surge, cada vez mais, como um modelo alternativo de qualidade de vida capaz de atrair populações jovens com iniciativa e sentido inovador.

No debate, que é urgente, sobre o modo de articular, com o sentido estratégico exigido pelas novas condições da globalização, recursos e centros de decisão nacionais, o conjunto de problemas ligados à agricultura e florestas - como, aliás, os que se referem à pesca ou às indústrias extractivas - não pode, pois, ser ignorado ou colocado em plano secundário.

Mas as assimetrias regionais não afectam negativamente apenas as regiões com economias baseadas na agricultura ou na exploração de recursos naturais. Também nos espaços em que outrora se desenvolveram tecidos industriais dinâmicos, quer no interior, quer no litoral, há hoje sinais evidentes de crise, em consequência tanto da própria limitação do mercado interno, quanto da dificuldade de adaptação às novas condições da concorrência internacional.

Há, felizmente, nalguns dos sectores e regiões mais afectadas, alguma movimentação dos actores económicos e institucionais locais no sentido de criar fórmulas institucionais de cooperação e projectos integrados de desenvolvimento capazes de inverter as tendências de declínio instaladas. Mas esse esforço não prescinde de uma intervenção do Estado em matéria de incentivos fiscais e parafiscais, financeiros e de política social. Creio, entretanto, que uma política de discriminação positiva em favor dos espaços menos favorecidos jamais conseguirá impor-se como efectivo instrumento de coesão nacional, se não forem desenhados, com prudência e sentido de Estado, os enquadramentos regionais pertinentes para o conjunto de medidas concretas que urge adoptar. Eis-nos confrontados, por vias travessas, com o problema da descentralização administrativa.

Apesar da crítica generalizada à persistência do centralismo do Estado e do reconhecimento, generalizado também, da vantagem em inverter essa lógica, o debate do problema suscitou num passado recente viva controvérsia, gerando uma profunda hesitação quanto aos caminhos a seguir.

Os municípios, actores de primeira linha na identificação e combate aos factores de atraso e de desigualdade na sociedade portuguesa, têm constituído a instância fundamental da descentralização administrativa. Sabemos porém que não deverá continuar a ser a única. Por três ordens de razões. Em primeiro lugar, porque as funções do Estado que podem e devem ser descentralizadas não são integráveis na actual configuração das competências jurídico-legais dos municípios. Em segundo lugar, porque as dinâmicas da coesão e da competitividade dos territórios exigem cada vez mais a gestão e a prospectiva de recursos transversais. Em terceiro lugar, porque sendo os municípios portugueses de um recorte geográfico médio relativamente elevado em termos europeus, se verifica que o nível submunicipal está em condições de ser estimulado, em correspondência aliás, com o impulso das populações locais muito expressivo em diversas regiões do país.

Tenho, em consonância com esta análise, advogado o reforço institucional dos territórios, através de uma reforma descentralizadora que abranja os três planos: o plano municipal, o plano supra-municipal e o plano das freguesias. Esse reforço será certamente decisivo para que os territórios na sua dimensão cultural, económica e social, na sua dimensão de desenvolvimento, possam ser equilibrados, mobilizadores e criativos.

Atendendo ao princípio da subsidariedade, as freguesias não podem deixar de ser revalorizadas. Os municípios poderão aceitar novas competências. Novas entidades, resultantes da aglomeração voluntária de municípios, surgirão para definir objectivos, partilhar responsabilidades e assegurar o governo de projectos e recurso comuns. Essa será a grande oportunidade para organizar os nossos territórios, combater as tendências para a fragmentação de uns e a concentração de outros, ou para a marginalização e o isolamento.

Caberá, ainda, insistir sobre um outro ponto por que me tenho batido: uma economia competitiva não é a que se baseia em baixos salários, mas sim a que dispõe de um sistema produtivo moderno, inovador e tecnologicamente avançado, capaz de produzir bens e serviços de qualidade e bem valorizados nos mercados internacionais. Não será exagero dizer que, na sociedade do conhecimento e da informação em que vivemos, a inovação é o mais importante factor de competitividade. A própria produtividade também depende da inovação em sentido amplo, designadamente na organização do trabalho, na diferenciação e qualidade dos produtos e na estratégia de comercialização. No novo contexto, o que conta é a qualificação dos recursos humanos, a sua cultura e formação técnica, para o que é fundamental aprofundar as relações entre as empresas e os sistemas científicos e tecnológicos.

A inovação resulta de um processo de confronto contínuo entre o esforço de mudança tecnológica e a capacidade de ajustamento social a essa mudança. Esta capacidade de ajustamento é fortemente condicionada pelas mentalidades e pelos comportamentos estabelecidos.

Deste modo, o sucesso de uma economia baseada na inovação repousa na vontade de transformar a situação existente, de aderir a novos procedimentos e de valorizar a aprendizagem.

O Mundo mudou bastante. O alargamento das bases da competição entre economias e a unificação dos mercados obrigam a combater os proteccionismos artificiais. Os empresários bem sucedidos são os que são capazes de enfrentar os desafios e de aproveitar as oportunidades que se lhes apresentam; os que estão abertos à inovação e à reestruturação que aumentem a produtividade e a competitividade; os que se preocupam com as questões do desenvolvimento sustentável; e os que incorporam nos seus comportamentos a dimensão ética, dentro da empresa e na relação com a sociedade.

Sem inovação, não se reforça a capacidade de concorrer no mercado europeu e no mercado mundial. Sem inovação tecnológica, dificilmente a produtividade crescerá a ritmo superior ao da média europeia - ritmo superior que é indispensável para a desejada convergência dos níveis de vida.
O Belíssimo Requiem dos Heróis Desempregados
Por EDUARDO DÂMASO
Sexta-feira, 28 de Novembro de 2003

Tenho um amigo mais velho que esteve na guerra em Angola e foi lá que viveu a maior aventura da vida dele. Rapaz de educação rural, deixou a escola cedo e aprendeu o ofício de carpinteiro. Aos dezoito anos foi incorporado nos comandos e aprendeu a matar. Veio de Angola com vinte e um anos e já só sabia a linguagem da guerra. Trouxe na mochila uma história para contar mas também não se esqueceu de trazer umas quantas granadas e mais uma ou outra lembrança daquela guerra onde acreditou que havia mesmo uns "turras" tenebrosos e, do lado dele, a malta da "companhia", os "imortais".

Tantos como ele foram para o Ultramar e vinham de lá outros. Com o mesmo nome, mas outros. Calados, muito calados nos momentos, poucos, em que não bebiam. Nunca se percebia se transportavam o rosto de um vazio ou de uma enorme tormenta interior. Talvez fossem só inadaptados à lentidão da vida que enfrentaram no pós-guerra. Um dia, o meu amigo dos comandos atirou uma granada contra uma parede qualquer numa noite de bebedeira. Não morreu ninguém mas a coisa fez estragos. Desde logo nele próprio, que teve de enfrentar a justiça, a família, os amigos e os seus infernos íntimos.

Tenho outro amigo que esteve na Guiné, nos "fuzos". Veio da guerra depois do 25 de Abril mas não se adaptou à pasmaceira da terra, muito longínqua do epicentro da revolução dos cravos que mantinha o país em chamas. O meu amigo ofereceu-se para a vida de mercenário e foi para Angola, onde havia uma guerra. Andou por lá aos tiros ao serviço da FNLA porque sim. Nunca foi de ideologias, era mesmo só para dar uns tiros e sentir o abismo das noites em que se sai sem saber de há-de haver dia. O pânico de saber se se chega ao dia seguinte transformou-se numa estranha nostalgia daquele medo que é capaz de nos empurrar para a coragem mas também para a loucura.

Um dia, muito mais tarde, já de regresso à terra, pegou em granadas e numa metralhadora e simulou um ataque contra uma boite de alterne. Era para brincar às guerras. Depois não aguentou nada do que tinha: a paz, a namorada, um bom emprego, a terra parada, o silêncio sem a tensão do metal e da pólvora a rabiscar no ar. Despejou um frasco de veneno para ratos e deixou uma carta a explicar que foi por aí porque lhe tinham acabado as granadas para se divertir.

Os meus amigos tornaram-se heróis desempregados da guerra. Há poucos portugueses dos quarenta para cima que não conheçam um ou outro destes velhos leões adormecidos no tédio da paz. É destes homens instruídos na doutrina de um trágico heroísmo para se entregarem aos elevados mas nefastos desígnios da pátria que nos fala "Os Imortais", de António Pedro Vasconcelos. E de que nos falara "O Inferno", de Joaquim Leitão, também um belo filme que, infelizmente, só vi muito depois da sua passagem pelos cinemas.

Eu não sou crítico de cinema nem me interessa ser. Os críticos hão-de ter as suas razões para dizer isto ou aquilo de certos filmes. Também não fui à guerra mas fui crescendo um pouco no medo de chegar a minha hora quando da guerra já só havia a hora do regresso dos caixões de pinho. À minha volta, como em todos as pequenas terras da chamada província, havia já muitos mortos, muitos desaparecidos em combate, muito luto. Por essa recordação de um terror que havia de vir mas, sobretudo, pelo intolerável silêncio destes trinta anos de democracia sobre a guerra, vi nos "Imortais" um bocado de mim próprio, da minha família, dos meus amigos, de um país sonâmbulo que se recusa a saber o que foi isso da guerra colonial. Como espectador deste país tocou-me.

Uma visão mais redutora sobre o filme de António Pedro Vasconcelos pode ver nele apenas uma obra dirigida aos labirintos da memória dos que ainda se lembram destas coisas. Mas estão enganados: este é um filme principalmente para todos os outros porque é uma belíssima história sobre nós, portugueses incautos das bravatas esculpidas na mais bruta das ignorâncias, manipulados por todos os mestres da gestão delinquente do poder, como o foram os próceres do antigo regime. É um belíssimo requiem desses milhares de jovens que seguiram em festa para a carnificina ultramarina, embriagados pelo perfume de uma aventura que não teria paralelo nas suas vidas, e que morreram por lá ou vieram acabar, mais tarde, na inadaptação a um país que os abandonou, ou mesmo na rotina sonâmbula de uma nova rotina que não apagou as feridas desses tempos de "cobóiada".

Roberto Alua, personagem engrandecida pela brilhante interpretação de Joaquim de Almeida não é o meu amigo dos comandos que atirou a granada contra uma parede qualquer mas podia ser. Alua é o lobo da guerra que não consegue lidar com a quietude social nem com o sentimento amoroso. Não foi educado nem para uma coisa nem para outra. É o veterano da morte que precisa de sentir de novo o cheiro do sangue e da pólvora. Mas tem uns restos de dignidade e de amor próprio que evitam a sua própria dissolução moral e ética enquanto ser humano. Acorda já muito tarde e só lhe resta a solução clássica de um combatente que não quer cair nas mãos do inimigo. De um herói perdido em território hostil.

Horácio Lobo, nas mãos de Rogério Samora, é um terrível sacana. Foi educado para a morte e precisa de matar, de estar sempre perto dela, até de a escolher como última missão suicida para não falhar um contrato. Mercenário até ao fim. Tantos houve nessas guerras civis que deixámos espalhadas pelos antigos territórios do império.

Por fim Joaquim Malarranha, ou Nicolau Breyner. Magistral figura de velho polícia manhoso que nos vai transportando para a verdade e para a compreensão dessa confraria de lutadores eternos e desses tempos tão incompreensíveis.

Em suma, "Os Imortais" é um filme que respeita integralmente a grandeza da obra literária de Carlos Vale Ferraz, particularmente em "Nó cego" e no livro "Os lobos não usam coleira" que inspira o realizador, mas tem vida própria. Deveria ser tão visto nas escolas como os livros de Carlos Vale Ferraz estudados no ensino secundário. Filme e livros são instrumentos vitais para que não se perca a memória desse trauma colectivo que atingiu Portugal ao longo de treze intermináveis anos. A guerra colonial foi o fim de um ciclo de expansão imperial iniciado 500 anos antes que arrastou oitocentos mil portugueses (quase 10 por cento da população nacional à época e 90 por cento da juventude masculina de então) para uma vida que jamais regressaria ao ponto de partida e a uma qualquer pureza originária. Para trás ficaram mais de 8 mil mortos, 15 mil deficientes e cerca de cem mil homens a sofrer de stress de guerra. Convém que tenhamos consciência disso. Todavia, como se sabe, Portugal prefere os manuais do "Big Brother" e por isso é um país que não merece ter memória.

sexta-feira, novembro 14

Explorados Temporários
Por AMÍLCAR CORREIA
Sexta-feira, 14 de Novembro de 2003

A integração europeia começou por reduzir substancialmente o número de cidadãos nacionais que emigravam em busca de melhor qualidade de vida. Como observa Chris Patten, comissário europeu das Relações Exteriores, o que se verificou na Grécia, Portugal e Espanha após a admissão à União Europeia foi, de facto, um recuo da emigração de mão-de-obra, contrariamente a algumas previsões que alertavam para eventuais avalanchas migratórias causadas pela abertura de fronteiras. A imigração ilegal combate-se com crescimento económico, sublinhava Patten, e não com pressões populistas.

Depois de todos estes anos de integração, Portugal mantém a sua peculiaridade: o país é simultaneamente um destino de imigração e origem de emigração. Para alguns investigadores, esta dualidade é única na Europa e só encontra paralelo em alguns países asiáticos.

Se o crescimento económico ajudou a suster a emigração de longa duração, o mesmo não parece estar a acontecer com a emigração temporária, que procura melhorias de qualidade de vida em outros países do continente. No ano passado, por exemplo, Portugal assistiu a um recrudescimento do número de emigrantes.

As transformações económicas dos últimos anos ainda são insuficientes para oferecer a estes trabalhadores condições de vida satisfatórias em Portugal e para desmotivar quem se sente atraído por salários mais altos na Europa. Mas há dois factos preocupantes no meio de tudo isto: os emigrantes desempenham nos países de destino tarefas que em Portugal são exercidas por imigrantes e são vítimas de todo o tipo de abusos devido a um crónico desconhecimento dos seus direitos.

Um relatório do Parlamento britânico refere que os portugueses são explorados por desconhecerem os seus direitos mais básicos. Se antes nos bastava uma mala de cartão, hoje precisamos de um manual de instruções para emigrar. É isso que o Governo pretende fazer, prevenir novos casos de exploração de trabalhadores nacionais, com o lançamento de um panfleto que contém informação sobre o mercado de trabalho temporário, os direitos laborais e os locais onde os trabalhadores podem aconselhar-se.

Trata-se de prevenir situações que se tornam cada vez mais frequentes e que já se registaram noutros países europeus, como a Alemanha, Espanha ou Holanda, quase sempre em sectores como o da construção civil. Basta dedicar uma atenção mínima aos anúncios de emprego para compreender que as cadeias de contratação de mão-de-obra para países como a Irlanda e a Inglaterra estão particularmente activas, sobretudo no sector agrícola e industrial. E com a participação de empresas de trabalho temporário nacionais, o que deverá levar a Inspecção-Geral do Trabalho a actuar com empenho.

Os novos emigrantes portugueses são trabalhadores sazonais e seguramente explorados temporários. Mas o que é certo é que os seus problemas têm sido praticamente ignorados, porque o discurso político sobre o tema tem focado muito mais as questões relacionadas com a imigração do que com a emigração. Porque, como dizia uma investigadora da Universidade de Coimbra no PÚBLICO de ontem, "é mais difícil reconhecer a pobreza do que a riqueza".

quarta-feira, novembro 12

O Discreto Sequestro da Liberdade de Expressão
Por FERNANDO ROSAS
Quarta-feira, 12 de Novembro de 2003

Mesmo com jornalistas competentes e independentes, esta função do comentador isolado e permanente pode abeirar-se, perigosamente, do comissariado ideológico

Desde há semanas a esta parte vêm-se multiplicando por parte de comentadores ou de partidos políticos à esquerda os sinais de alarme com o que se passa no campo dos "media" e os seus possíveis efeitos no exercício efectivo da liberdade de expressão e na subsistência de um real pluralismo informativo.

O Bloco de Esquerda apresentou um projecto de lei visando limitar a concentração da propriedade dos meios de comunicação social, e em torno desta problemática, que eu tenho registado, intervieram com pertinência através artigos, entrevistas ou até em livro, Miguel Sousa Tavares, Augusto Santos Silva, Vasco Vieira de Almeida e Mário Mesquita.

Os factos, na realidade, vêm-se sucedendo com alarmante rapidez. Foi a tentativa, para já travada pelo protesto da opinião pública, de privatizar o 2.º canal da RTP, cuja indefinição continua a suscitar as maiores inquietações sobre o seu futuro. Sucedeu-se a demissão da prestigiada direcção de informação da rádio TSF (da PT/Lusomundo) na sequência de preocupantes propostas de reestruturação organizativa e de programação daquela estação emissora, implicando dezenas de despedimentos e eventuais mudanças de orientação editorial (bastará atentar na autoria das propostas...).

Depois, foi a designação para director do "Diário de Notícias" de um ex-assessor de imprensa de Cavaco Silva e do ex-ministro Martins da Cruz, uma personalidade notoriamente ligada ao principal partido do Governo, o que pode vir a apressar e agravar a degenerescência direitista e tabloidizante daquele que foi um dos mais prestigiosos órgãos de referência da nossa imprensa diária, a sofrer uma espécie de "fase do PREC" de sentido inverso. Finalmente, uma noite destas constatámos que nos dois canais de televisão privada, três dos cinco principais comentadores permanentes pendurados nos telejornais são quadros destacados do PSD.

Desde logo, a modalidade de um único comentador permanente ao serviço informativo, para a qual escorregaram recentemente as televisões privadas, "relendo" sem contraditório paritário ou pelo menos relevante (com a excepção de Miguel Sousa Tavares...) as notícias do dia numa espécie de homilia pontifical, causa-me as maiores reservas. Salvo o devido e genuíno respeito pelos comentadores em causa, a modalidade em si faz-me lembrar tempos sombrios da RTP do salazarismo e do marcelismo, quando os telejornais eram comentados e reinterpretados pelos ideólogos ao serviço do regime (estou-me a lembrar do ar iracundo do Manuel Múrias) que liam longas notas a explicar-nos o verdadeiro sentido das coisas.

Mesmo com jornalistas competentes e independentes, esta função do comentador isolado e permanente (a situação seria diferente, e já se praticou na SIC, com uma sucessão de diferentes comentadores de distintas inclinações) pode abeirar-se, perigosamente, do comissariado ideológico. Mas se, ainda por cima, dos cinco comentadores permanentes da SIC e da TVI: um, Santana Lopes, é vice-presidente em funções do PSD, presidente em exercício, eleito por aquele partido, da Câmara Municipal de Lisboa e notório futuro candidato à Presidência da República; o outro, Marcelo Rebelo de Sousa, foi já líder nacional do PSD e continua hoje como "barão" destacado daquele partido, inteiramente identificado, como não esconde semanalmente, com a orientação geral da presente situação política; um terceiro, Pacheco Pereira, é deputado europeu e militante destacado do PSD, em consonância essencial com o seu programa político e orientação ideológica, a despeito de algumas divergências com a política de alianças com o PP; o quarto, o solitário membro do PS neste ramalhete, Manuel Maria Carrilho, logo por azar é um dos mais destacados e vocais críticos da actual direcção do seu partido, circunstância que largamente ocupa o espaço e o tempo da sua tribuna; o quinto, o solitário jornalista em funções, Miguel Sousa Tavares, é o único que actua como se pode esperar que actue um jornalista profissional - se ainda por cima o panorama é este, dizíamos, é certo que estamos perante um dos piores momentos de manipulação ideológica dos serviços informativos das televisões privadas.

Nada destes sintomas e realidades pode ser dissociado da perigosa concentração e cartelização que se vive em Portugal no tocante à propriedade dos meios de comunicação social. Os avisos têm surgido de todo lado, desde o Sindicato dos Jornalistas à Alta-Autoridade para a Comunicação Social, sobre o perigo da situação e sobre a ausência de meios para a prevenir e regular. Mas curiosamente, nesta área, ao contrário do que se passa na saúde, na segurança social, na educação ou na administração pública, a contra-reforma da direita é caracterizada pela abstenção legislativa e pela ausência de regulamentação: deixar o campo livre à expansão concentracionária dos grandes grupos privados de comunicação social.

Neste momento são quatro os grupos principais. O maior resulta da recente absorção da Lusomundo pela PT. As suas receitas em 2002 rondam os 676 milhões de euros e juntam ao controlo de dez empresas de TV Cabo (90 por cento da área da televisão por subscrição), três jornais diários de grande circulação ("DN", "Jornal de Notícias" e "24 Horas"), uma longa lista de revistas e jornais regionais (20 publicações ao todo), a TSF rádio, uma distribuidora, uma gráfica, uma editora, a distribuição de filmes, salas de cinema, 18 por cento no capital da agência de notícias Lusa, participações liderantes no mundo da Internet, a que se soma a posição dominante da PT na área das telecomunicações. Segue-se o grupo liderado por Pinto Balsemão, a Impresa (mais de 250 milhões de euros). Detém o canal SIC e seus sucedâneos, o semanário "Expresso", a revista "Visão" e várias outras (32 títulos no total), com forte posição na distribuição. Depois a Media Capital (217 milhões de euros) com a TVI e seus derivados, fortes posições na Internet, o Rádio Clube Português e várias outras estações de rádio e um variado leque de revistas. Finalmente, a Cofina (106,5 milhões de euros), centrada no "Correio da Manhã", no "Record" e num conjunto de outras revistas, também com posição na distribuição.

No seu conjunto, estes e outros dois ou três grupos menores (Impala, Recoletos, Sonaecom) detêm dois dos quatro canais de televisão, todas as estações de rádio (à excepção das três "antenas" públicas), toda a imprensa diária e grande parte das publicações periódicas não diárias. Tomaram posição na agência pública de notícias. Dominam a televisão por cabo e o mercado da Internet. Controlam o sector estratégico da distribuição da imprensa escrita e os meios de transmissão de dados e de audiovisual.

Ninguém pode ficar tranquilo face a este panorama cujas consequências se começam já a sentir. Inevitável afunilamento ideológico editorial (além do que antes se referiu nos canais privados de televisão, hoje a maioria da imprensa diária tem um claro alinhamento à direita). Capacidade esmagadora de pressionar politicamente os jornalistas (quase todo o emprego está na mão de quatro grupos e o desemprego expedito é a regra num ciclo de sobrexploração dos jovens profissionais: passam do estágio sem remuneração para o emprego sem garantias e para o desemprego a qualquer momento). Capacidade alargada de decidir o que pode ou não subsistir no mercado da imprensa escrita, através do controlo da distribuição e da publicidade. Anulação da concorrência entre a televisão por cabo e a rede fixa, uma vez que os detentores de grande parte da primeira e da segunda são os mesmos. A progressiva mercantilização e degradação da qualidade da oferta comunicacional e informativa, implacavelmente sujeita a critérios de lucro e de conquista de mercado. Tudo isto perante a assumida demissão do Estado da sua função reguladora, designadamente no dever que lhe cabe de contrariar a emergência de posições dominantes na TV Cabo, na rádio, na imprensa, na distribuição, tal como propunha a proposta de lei do BE e foi chumbada pela maioria de direita.

O pluralismo, a independência e a isenção da comunicação social estão, pois, em causa. Aquilo a que estamos a assistir é a um quase insensível sequestro da liberdade de expressão e do pluralismo informativo. Operado já não por força de uma censura administrativamente institucionalizada, mas de uma progressiva "espiral de silêncio" (o termo é de Pegado Liz, membro da AACS) imposta pela lógica concentracionária. Um silêncio, tendencialmente, com vítimas ideologicamente seleccionadas decorrente de processos de fusão empresarial com óbvias e inevitáveis consequências políticas, ideológicas e culturais na qualidade da informação.

Não sei se estamos perante um "primeiro poder" (Augusto Santos Silva) ou um "quarto equívoco" (Mário Mesquita). Sei que estamos perante o poder manipulatório de quem tem estado sempre no poder, mesmo quando parece lá não estar. E é com esta perspectiva, penso eu, que os cidadãos deste país devem aventurar-se a fazer-lhe frente e a impor-lhe regras. Para que dentro de pouco tempo não vegetemos no exercício meramente nominal das liberdades públicas.

segunda-feira, novembro 10

Crianças Que Vêem Muita TV Têm Mais Dificuldade em Aprender a Ler
Por ANA RIBEIRO RODRIGUES
Segunda-feira, 10 de Novembro de 2003

As crianças que têm televisão no quarto ou vivem em casas onde ela está ligada a maior parte do tempo têm mais dificuldade em aprender a ler que as outras crianças da mesma idade. A conclusão é de um estudo norte-americano sobre os hábitos de consumo dos "media" de crianças com menos de seis anos promovido pela Fundação Kaiser Family e pelo Children`s Digital Media Centers.

De acordo com o estudo, uma em cada quatro crianças com menos de dois anos tem televisão no quarto. Quando se trata de crianças até aos seis anos esse valor é de um terço, proporção idêntica à de crianças da mesma idade que vive em casas onde a TV está quase sempre ligada.

Nos lares com um exagerado consumo de televisão, 34 por cento das crianças entre os quatro e os seis anos sabem ler, menos do que os 56 por cento que vivem em casas onde o pequeno ecrã está menos vezes ligado. As crianças que vêem mais televisão dedicam menos tempo à leitura e a ocupações no exterior.

"Estas conclusões levantam definitivamente uma bandeira vermelha sobre o impacto da televisão nos hábitos de leitura das crianças. Isto tem que ser claramente uma prioridade para pesquisas futuras", sublinha Vicky Rideout, da fundação.

Sara Pereira, do Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho, disse ao PÚBLICO que a pesquisa "vem no seguimento do que tem vindo a ser debatido e investigado, com o interesse particular de incidir em crianças tão pequenas". Aquilo que para a docente é um dado novo são as conclusões relativas à dificuldade de aprender a ler motivada pelo excesso de televisão. "Nunca vi nada na Europa que evidenciasse essa conclusão", comenta.

O estudo, baseado numa avaliação aleatória feita por telefone em todo o território dos Estados Unidos a mais de mil pais de crianças entre os seis meses e os seis anos, diz que as crianças desta faixa etária passam cerca de duas horas por dia frente a um monitor. Seja a ver televisão, a utilizar o computador ou com videojogos. Sensivelmente o mesmo tempo que ocupam com actividades no exterior e mais de três vezes que o tempo dedicado à leitura.

"Ver televisão é menos importante que brincar, ler, interagir com os adultos ou falar com os familiares", refere Henry Shapiro, da academia americana de pediatria. "Ver televisão sem um dos pais é uma má experiência, sobretudo para as crianças mais pequenas", acrescenta. Mas actualmente, tendo grande parte das crianças televisão no quarto, torna-se mais difícil para os pais controlarem o que os filhos vêem.

Os "media" digitais tornaram-se igualmente parte integrante da vida das crianças. Quarenta e oito por cento dos miúdos com menos de seis anos já utilizaram o computador, sendo que 30 por cento o fazem para jogar. Mesmo os mais novos, com menos de dois anos, estão expostos aos "media" electrónicos.

Pais acreditam nos valores educativos da TV

O estudo adianta também que 27 por cento das crianças entre os quatro e os seis anos são utilizadores diários de computadores, ocupação a que dedicam cerca de uma hora. Entre os miúdos deste grupo etário metade usa o computador para jogar e um em cada quatro joga várias vezes por semana. O número de rapazes que jogam no computador é muito superior ao das raparigas, 24 contra oito por cento. Ainda assim, 80 por cento das crianças com menos de seis anos tem contacto com a leitura, embora ela lhes ocupe muito menos tempo que os computadores e a televisão.

A pesquisa mostra que os pais acreditam nos valores educativos da televisão e dos computadores. Setenta e dois por cento dos pais vêem o computador como uma ferramenta de aprendizagem importante e 43 por cento tem essa mesma percepção sobre a televisão.

Shapiro considera que o facto de as crianças estarem sentadas frente à televisão, computadores e videojogos não é necessariamente mau, mas alerta para aspectos negativos: "Tanto tempo em frente aos ecrãs pode tornar os miúdos obesos e fazer com que não durmam ou não interajam com os adultos o suficiente".

Sara Pereira concorda e mostra-se "completamente contra a TV no quarto das crianças". Para a docente, a influência que o pequeno ecrã exerce depende do meio em que a criança vive e relativiza as desvantagens. "Mesmo os aspectos negativos podem vir a tornar-se bons tópicos de discussão, se acompanhados e analisados." Sara Pereira acrescenta ainda que a televisão pode realmente ser um instrumento utilizado no sentido pedagógico, se o consumo for crítico e criterioso - o que é difícil uma criança fazer por si.

Vicky Rideout sugere ainda "que os pais devem observar quanto tempo os seus filhos gastam com os 'media' e quanto tempo dedicam a outras actividades". A academia de pediatras recomenda ainda aos pais uma cuidadosa escolha dos programas e que estes ajudem os filhos a encontrar alternativas, como praticar um desporto ou aprender a tocar um instrumento musical.

A larga maioria dos pais - 99 por cento dos inquiridos - diz que tem regras para o tipo de consumo dos "media" e 69 por cento respondeu que faz o mesmo quanto ao tempo que deixa os filhos passarem em frente à televisão. Sara Pereira entende que se essas regras forem só no sentido da proibição não funcionam. "É importante haver regulação a todos os níveis e os pais saberem o que os filhos vêem. Se os pais forem selectivos e mediarem o que as crianças vêem, à medida que vão crescendo serão elas próprias a excluir programas", salienta.