Expliquem-me, Caramba (1)
Por A. CARVALHO LISBOA
Domingo, 05 de Outubro de 2003
Publico
Sábios do meu país
1. Para que servem os caças, os blindados e as fragatas em segunda mão que os nossos governantes agora vão comprar para as forças armadas portuguesas, quando não há helicópteros de salvamento de náufragos, nem aviões de combate aos incêndios, nem lanchas mais rápidas do que as dos negociantes das drogas, nem rebocadores de alto mar para acudir aos habituais naufrágios nas nossas costas, nem equipamento adequado para combater as marés negras?
2. E os submarinos, senhores, que vão custar mil milhões de euros? Como é que vão ser decisivos na luta contra o tráfico das drogas? São cópia aperfeiçoada do "marplano" que, há 65 anos, me maravilhava nas páginas de "O Mosquito"? Isto é, são submarinos que se podem transformar rapidamente em lanchas ultra-rápidas ou até em aviões supersónicos?
3. Para que servem, quantos são e quanto custam os elementos das nossas forças armadas, agora que não há colónias a defender, os espanhóis já nos conquistaram sem dar um tiro e os terroristas incendiários parecem ser os nossos únicos inimigos declarados?
4. E porque é que os bombeiros hão-de ser "voluntários"? E sofrer fome e sede e exaustão no apagar dos incêndios florestais? Não é o combate aos fogos uma batalha todos os anos travada? Porque é que as nossas forças armadas não fornecem, nesta verdadeira guerra, cobertura logística de comunicações, transporte e alimentação aos "soldados da paz"? E porque é que aos bombeiros portugueses se pede para serem heróis e ninguém se preocupa se são eficazes e eficientes?
5. Porque é que os soldados do RI de Abrantes saíram só com "espanadores" para apagar as labaredas que chegaram a lamber os muros do seu quartel? Nos quartéis portugueses não há mais nada para combater fogos?
Mas os fogos estão a acabar. Para o ano há mais. Mudemos de assunto.
6. Afinal para que é que vai servir a barragem do Alqueva?
7. E porque é que o Aeroporto de Lisboa há-de ser na Ota e não em Rio Frio, ou em Alverca, ou no Montijo, ou ficar em Lisboa até atingir realmente a saturação?
8. Quantos minutos se ganham num TGV de Lisboa ao Porto, ou mesmo do Porto ao Algarve, em relação a um comboio pendular? Quais os custos previstos das infra-estruturas e equipamento? Quais as receitas previstas e despesas prováveis na exploração da sua rede? Onde se irão buscar os "milhões" necessários, se a renovação da rede ferroviária tradicional está engasgada por falta de dinheiro e nem há "tostões" para conservar e reparar as estradas e as pontes e os viadutos, que teimam em cair, ou eliminar as passagens de nível que teimam em matar?
9. E porque é que a Ponte Vasco da Gama não ligou Chelas ao Barreiro?
10. Quem vai suportar a exploração dos campos de futebol de luxo gerados pelo Euro 2004? Os clubes? As câmaras? O Orçamento do Estado? Não liguem a esta pergunta, a resposta é óbvia...
11. Porque é que o Ministério da Saúde não se chama "Ministério da Doença e dos Medicamentos", já que a grande preocupação de todos é a eficiência dos serviços médicos, a rapidez e rentabilidade das operações de cirurgia e o consumo e preço dos remédios, quase ninguém se preocupando em ensinar aos portugueses os mecanismos da degradação pelas drogas e como evitá-las, nem a fazer exercício físico e a comer racionalmente para ter mais saúde? Porque é que as estações de rádio e televisão de "serviço público" não chamam a si essa missão, sabendo-se hoje, sem sombra de dúvidas, que o homem é, principalmente, aquilo que come? Porque não se incentiva a criação de restaurantes com alimentação racional? E qual a razão para os produtos dietéticos não poderem trazer nas suas embalagens a indicação dos fins a que se destinam?
12. E, se há tanta falta de médicos, porque é que se continua a restringir o acesso aos cursos de Medicina, com notas mínimas de admissão escandalosamente altas? E porque não abranger no Serviço Nacional de Saúde os técnicos das medicinas alternativas, com habilitações e competências devidamente comprovadas?
13. E porque é que se mudam os programas do ensino, sem se perguntar ao povo iletrado, sereno, mas não estúpido, e ao povo letrado acomodado e da "res publica" desinteressado, o que é que lhe fez falta na vida e gostaria de ter aprendido na escola?
Por favor, respondam-me.
Estou com 75 anos, mas ainda não fui apanhado a guiar em contramão. Não gostaria de morrer a pensar que Portugal nada mais é do que um povo pindérico de parolos permissivos, um país de pedófilos, pirómanos, pécoras, prostitutos, pederastas, proxenetas, passadores e pedinchas preguiçosos, um país de porcinas porcarias pestilentas, de permitidos peculatos e de pasquins pantomineiros com parangonas; um país pobre, porque posto de pantanas por pseudopolíticos, pernósticos, promitentes, perdulários, promíscuos e pedantes.
(1) Versão, presidencial, do "porra" lusitano e plebeu
quarta-feira, outubro 8
Carta a um militante do Bloco
DN
7/10/2003
Meu caro: Suponho que nunca nos conhecemos. Cruzámo-nos _ não sei se se lembra? _ discretamente na semana passada. V. aproximou-se de mim e convidou-me a dizer «não à guerra». Sem provocação, declinei o convite, e vi-o continuar a passeata, enojado com a minha desumanidade. Em colóquios, também já nos vimos; eu no meio da plateia, num agonizante silêncio, V. numa das filas da frente, estrebuchando contra os conferencistas, a OMC, o Governo, o Papa, a Administração Bush e um conjunto de outras coisas que não consegui perceber bem, embora fossem de certeza bastante perigosas.
Entre nós, existem grandes diferenças. E não é só a gravata, que V. dispensa, ou o facto de gostarmos dos «Bernsteins» errados: eu prefiro o compositor. Ao contrário de mim, que passo férias na Manta Rota, V. é um habituée das capitais europeias e de sofisticados cenáculos onde tudo é permitido, excepto talvez rezar o terço. Ao contrário de mim, que vivo pacatamente, V. não cessa de procurar a agitação, e crê que o nosso único caminho consiste em andar para a frente. Se eu lhe citar Burke sobre a conveniência de colocarmos a realidade à frente dos nossos desejos, arrisco-me a que V. me sove ou se apiede do meu primitivismo. (Burke, bem sei, não é um dos seus autores: V. prefere Boaventura Sousa Santos, o Chomsky do Choupal.) Nunca me esqueço que V. é de intenções sérias e de um optimismo seguro: o mundo, tenhamos ou não vontade disso, há-de ser um dia rigidamente o seu mundo. E então, como preveniu Nelson Rodrigues, «acordaremos sem passado».
Os liberais da burrice chamam-lhe «alternativo», «intelectual» e preferem zombar da sua excentricidade a discutir consigo. Neste aspecto, defendo-o. Os liberais da burrice não leram às vezes dois livros completos na vida. Os liberais da burrice são bem-comportados, rotineiros, acessórios. Eu, veja bem, até admiro a existência do grupo político a que pertence: o Bloco de Esquerda. Sem o Bloco de Esquerda, V. seria do PSR ou da UDP. Convenhamos que é melhor dizer-se de esquerda, escondendo a sua pertença ao PSR ou à UDP, dois partidos que ninguém respeita lá muito. O Bloco de Esquerda foi a melhor coisa que lhe podia ter acontecido.
Agora, claro, a minha deferência termina aqui. Se muita gente teima em desconsiderá-lo, deixe-me falar-lhe da sua quota de responsabilidade no assunto. Desde logo, é um facto que V. grita em excesso. Os teóricos explicam que o seu ruído é normal porque o seu partido é um típico exemplo de um «partido-protesto», aquele que se destina às massas mas não é feito por elas. Eu não ponho em isso causa. Mas lembro-lhe que, se a essencial preocupação dos «partidos-protesto» é provar que ninguém é credível, a sua própria credibilidade também fica abalada. O Bloco de Esquerda não usa gravata mas faz política como os outros.
Depois, V. insurge-se contra tudo o que possa ser considerado comum, caduco, tradicional. V. é um individualista ético. Baralha, contextualiza, relativiza, e, às tantas, já não sabemos se devemos vestir as calças pelos pés ou pela cabeça. V. nunca proíbe, nunca se submete, nunca censura. V. não acredita numa comunidade política anterior aos indivíduos que a compõem. O eu é quem mais ordena: o eu bom cidadão e não o eu burguês ou romântico. Somos dez milhões de eus impacientes e oprimidos por não nos deixarem viver segundo a «virtude», essa ideia de felicidade comum que apenas existe na sua cabeça e que exclui impreterivelmente os cépticos e os discordantes. «A República faz-se da destruição total de tudo o que se lhe opõe», escreveu Saint-Just, que era parecido consigo, embora mais maldisposto.
Quando medito sobre a sua personalidade política, fico aterrado com o seu mundo de infinitas possibilidades. V. pretende os Estados Unidos fora do Iraque, mas não se preocupa que o Iraque acabe nas mãos de fanáticos islâmicos. V. quer referendar tudo sobre a Europa, mas não pensa se isso é possível e realista. V. avisa que este é o Governo mais à direita desde o 25 de Abril, mas esquece que já não é pelo 25 de Abril que se separam os bons e os maus Governos. V. bate-se por um mundo em mudança, mas não aceita que o mundo possa mudar contra si. O seu discurso é menos um discurso político do que uma enfiada de desejos. Talvez em breve perceba, quando entrar no Governo docemente unido ao PS, que só a oposição admite uma duradoura irresponsabilidade. O poder irresponsável acaba sempre por cair.
DN
7/10/2003
Meu caro: Suponho que nunca nos conhecemos. Cruzámo-nos _ não sei se se lembra? _ discretamente na semana passada. V. aproximou-se de mim e convidou-me a dizer «não à guerra». Sem provocação, declinei o convite, e vi-o continuar a passeata, enojado com a minha desumanidade. Em colóquios, também já nos vimos; eu no meio da plateia, num agonizante silêncio, V. numa das filas da frente, estrebuchando contra os conferencistas, a OMC, o Governo, o Papa, a Administração Bush e um conjunto de outras coisas que não consegui perceber bem, embora fossem de certeza bastante perigosas.
Entre nós, existem grandes diferenças. E não é só a gravata, que V. dispensa, ou o facto de gostarmos dos «Bernsteins» errados: eu prefiro o compositor. Ao contrário de mim, que passo férias na Manta Rota, V. é um habituée das capitais europeias e de sofisticados cenáculos onde tudo é permitido, excepto talvez rezar o terço. Ao contrário de mim, que vivo pacatamente, V. não cessa de procurar a agitação, e crê que o nosso único caminho consiste em andar para a frente. Se eu lhe citar Burke sobre a conveniência de colocarmos a realidade à frente dos nossos desejos, arrisco-me a que V. me sove ou se apiede do meu primitivismo. (Burke, bem sei, não é um dos seus autores: V. prefere Boaventura Sousa Santos, o Chomsky do Choupal.) Nunca me esqueço que V. é de intenções sérias e de um optimismo seguro: o mundo, tenhamos ou não vontade disso, há-de ser um dia rigidamente o seu mundo. E então, como preveniu Nelson Rodrigues, «acordaremos sem passado».
Os liberais da burrice chamam-lhe «alternativo», «intelectual» e preferem zombar da sua excentricidade a discutir consigo. Neste aspecto, defendo-o. Os liberais da burrice não leram às vezes dois livros completos na vida. Os liberais da burrice são bem-comportados, rotineiros, acessórios. Eu, veja bem, até admiro a existência do grupo político a que pertence: o Bloco de Esquerda. Sem o Bloco de Esquerda, V. seria do PSR ou da UDP. Convenhamos que é melhor dizer-se de esquerda, escondendo a sua pertença ao PSR ou à UDP, dois partidos que ninguém respeita lá muito. O Bloco de Esquerda foi a melhor coisa que lhe podia ter acontecido.
Agora, claro, a minha deferência termina aqui. Se muita gente teima em desconsiderá-lo, deixe-me falar-lhe da sua quota de responsabilidade no assunto. Desde logo, é um facto que V. grita em excesso. Os teóricos explicam que o seu ruído é normal porque o seu partido é um típico exemplo de um «partido-protesto», aquele que se destina às massas mas não é feito por elas. Eu não ponho em isso causa. Mas lembro-lhe que, se a essencial preocupação dos «partidos-protesto» é provar que ninguém é credível, a sua própria credibilidade também fica abalada. O Bloco de Esquerda não usa gravata mas faz política como os outros.
Depois, V. insurge-se contra tudo o que possa ser considerado comum, caduco, tradicional. V. é um individualista ético. Baralha, contextualiza, relativiza, e, às tantas, já não sabemos se devemos vestir as calças pelos pés ou pela cabeça. V. nunca proíbe, nunca se submete, nunca censura. V. não acredita numa comunidade política anterior aos indivíduos que a compõem. O eu é quem mais ordena: o eu bom cidadão e não o eu burguês ou romântico. Somos dez milhões de eus impacientes e oprimidos por não nos deixarem viver segundo a «virtude», essa ideia de felicidade comum que apenas existe na sua cabeça e que exclui impreterivelmente os cépticos e os discordantes. «A República faz-se da destruição total de tudo o que se lhe opõe», escreveu Saint-Just, que era parecido consigo, embora mais maldisposto.
Quando medito sobre a sua personalidade política, fico aterrado com o seu mundo de infinitas possibilidades. V. pretende os Estados Unidos fora do Iraque, mas não se preocupa que o Iraque acabe nas mãos de fanáticos islâmicos. V. quer referendar tudo sobre a Europa, mas não pensa se isso é possível e realista. V. avisa que este é o Governo mais à direita desde o 25 de Abril, mas esquece que já não é pelo 25 de Abril que se separam os bons e os maus Governos. V. bate-se por um mundo em mudança, mas não aceita que o mundo possa mudar contra si. O seu discurso é menos um discurso político do que uma enfiada de desejos. Talvez em breve perceba, quando entrar no Governo docemente unido ao PS, que só a oposição admite uma duradoura irresponsabilidade. O poder irresponsável acaba sempre por cair.
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