Num País Que Não Respeita Os Meus Direitos Eu Não Quero Viver
Por ANA DRAGO
Segunda-feira, 08 de Março de 2004
- Carta Aberta ao primeiro-ministro
Confesso-lhe que, apesar dos avisos de amigos, não consigo conter o espanto. Não consigo perceber como foi possível que a sua bancada parlamentar tenha recusado um novo referendo que permita descriminalizar o aborto.
Dizem analistas e comentadores que, no dia 3, tudo correu como "previsto". Não creio. Aqui, no espaço sempre incompleto das convicções que vou construindo para mim, não posso senão duvidar desse senso comum que me rodeia. E sei que manter o espanto e a indignação é o único caminho que me resta para manter alguma crença no meu exercício da cidadania.
Por isso, queria que soubesse que agora que se celebra o Dia Internacional da Mulher (8 de Março), é mais um dia em que procuro novos caminhos para saber o que faço da minha revolta com a sistemática condenação do meu direito ao meu corpo. Porque, sejamos claros: não estão as mulheres da Maia e de Aveiro na barra dos tribunais exactamente porque são mulheres? Como perguntava há mais de um século uma escrava americana, também eu olho à minha volta e me pergunto: não sou eu uma mulher?
Sou. Hoje sinto que a minha revolta me faz ser todas as mulheres. Veja-se a patética arrogância.
Hoje sinto que sou todo esse lugar da experiência quotidiana de uma menoridade, um "algo de menos" que é a definição implícita de condição feminina por esse mundo fora, sistematicamente transcrita em violência sobre os seus corpos e as suas sexualidades. Sou as mulheres filipinas que vivem na periferia de Manila, com 7 filhos numa barraca, porque na sua paróquia lhe dizem que o preservativo e a pílula são pecados contra a graça procriadora que Deus lhes atribuiu. Sou a menina africana, a quem fazem uma excisão genital sem saber da sua vontade, para que não caia na corrupção dos prazeres da sua sexualidade. Sou as mulheres espancadas nas ruas da Argélia, por terem ousado mostrar os seus corpos e os seus rostos. Sou a nigeriana condenada a ser apedrejada até à morte, por ter tido um filho fora do casamento. Sou as inglesas violadas no Algarve a quem o juiz português avisou, paternalmente, que deviam saber como se vestir e comportar. Sou a lésbica italiana, insultada na Sicília porque ousa ter prazer com alguém que não um homem. Sou as mulheres agredidas pelos maridos, os pais, os irmãos: sou as 42 espanholas que morreram em 2001 vítimas de violência doméstica. Sou as mulheres de Leste que tentam escapar à pobreza, e que acabam traficadas nas redes de prostituição que se estendem de Lisboa a Xangai. Sou a iraniana sem papéis na França, que faz trabalho doméstico para um patrão que a viola sistematicamente, chantageando-a com a expulsão.
Não. É mentira. Eu não sou, não "represento" todas as mulheres do mundo. Nas categorias do corpo que ordenam o poder, sou branca antes de ser mulher, e isso é todo um mundo de distância da vivência das mulheres negras. Sou nacional da União Europeia, e isso faz toda a diferença em relação às mulheres do Leste Europeu. E, aqui dentro do nosso pequeno país, sou escolarizada e urbana, e isso parece deixar-me estranhamente longe das operárias de Castelo de Paiva que perderam os seus empregos. Afinal, sou apenas mais uma das mulheres, de tantas, que colocaram essa questão: não sou eu uma mulher?
Sou. Sou a mulher que nunca teve educação sexual na escola, ao contrário das holandesas; sou a mulher que não poderá ter três anos de licença de parto como as suecas; sou a mulher que não pode ter direito a aconselhamento no caso de uma gravidez indesejada como as americanas; sou a mulher que não terá direito a fazer um aborto em condições de segurança em Portugal, e, certamente, serei a mulher que irá parar ao banco do Tribunal se a polícia o descobrir. Ser mulher, aqui, neste pequeno país, é carregar o peso pesado de uma concepção machista que vigia o corpo feminino, e o peso morto de uma classe política sem coragem para consagrar a modernidade democrática.
Não sou eu uma mulher? Que democracia é esta que acha que por isso pode tutelar a minha consciência, lugar primeiro da minha liberdade? Não é este o meu corpo? Que democracia é esta que acha que a minha condição de mulher confere ao Estado tutela sobre o meu útero, que me reduz a mera incubadora? Que democracia é esta que arrasta mulheres para tribunal, que tem a ignomínia de perscrutar os seus corpos como se na sua anatomia estivessem as marcas da perversão inabsolvível: essa ideia da mulher não querer ter o filho de uma gravidez que não desejou. Crime hediondo não cumprir a "função" de mãe, certamente contradiz a "natureza" feminina. Que democracia é esta onde sou, como tantas mulheres por esse mundo fora, algo menos do que um homem na minha cidadania?
E porque sou isto, exactamente isto, vivendo aqui, neste estatuto de cidadã menor, que lhe digo que num país em que o Estado não respeita os meus direitos, eu não quero viver.
Não, não me vou embora. Pelo contrário: este será o lugar de luta onde me irá encontrar hoje, amanhã e depois. Comigo estarão todas as mulheres e todos os homens que têm lutado pela minha cidadania plena: os das lutas passadas que abriram caminho para que eu possa estar aqui, os que estão hoje na batalha, os que ainda agora estão a chegar. Trazemos connosco gerações de mulheres votadas à clandestinidade e marcadas por discursos condenatórios, os maridos que apoiaram a sua decisão, as amigas que lhes deram a mão nas clínicas de vão de escada, os filhos que as viram sofrer na sua saúde as consequências do aborto clandestino. É porque não queremos viver assim, porque não podemos viver assim, que nos encontrará aqui as vezes necessárias até que a questão da legalização do aborto seja resolvida.
No passado dia 3, mostrou que não é um grande homem. Mostrou que não pertence aquela cepa de gente que nos momentos difíceis, nos momentos fundamentais, sabe estar à altura das situações. Acobardou-se, preferiu olhar para o lado, esconder a cara. Escolheu uma governabilidade que ficou esvaziada da defesa da dignidade, e isso é rombo indesculpável. É irreparável. Porque a partir de hoje o senhor é o exemplo de uma política vazia, que não responde a nada do que importa, que não se bate por nada do que diz acreditar. E é cúmplice consciente do discurso condenatório, da discriminação persistente contra as mulheres, da sua vivência nesse permanente estatuto de uma cidadania menor. E isso, eu, que sou mulher, não lhe posso perdoar.
Dirigente do Bloco de Esquerda
segunda-feira, março 1
Tópicos Sumaríssimos Sobre IVG
Por SOTTOMAYOR CARDIA
Segunda-feira, 01 de Março de 2004
1. A competência sexual e respectivo exercício genital são bens intrínsecos e não, apenas ou predominantemente, recursos ou meios instrumentais finalizados a permitir a reprodução de pessoas ou a continuidade de famílias, de nações ou da espécie.
2. Salvo em casos de esterilidade garantida, é prudente que a cópula heterossexual seja enquadrada em disposições eficazes preventivas da gravidez, quando esta não for desejada por ambos. O hipotético recurso ao abortamento subsequente não deve ser incluído entre essas disposições.
3. O zigoto, embrião e o feto são coisas vivas humanas; não são pessoas. O embrião é desprovido de sensibilidade álgica. O feto desenvolve-se em processo de progressiva sensibilidade e actividade. Em ambas as fases são pessoas possíveis.
4. As pessoas possíveis e respectiva singularidade são em número infinito. Pode - embora não deva - sustentar-se, por tal razão, alguma ética pan-procriativa maximizada. Optimizar-se-ia a concepturidade? Na prática, ainda assim não seria alcançado o óptimo sonhado. Nem todas as pessoas humanas possíveis seriam produzidas porque os humanos não se conduzem pelo critério de optimizar a criação. Nem todo o quantitativamente humanizável pode ser realizado. É esse um dos paradoxos do óptimo ou da moralidade optimal.
5. Enquanto pessoas possíveis corpóreas, o embrião e o feto têm os direitos inerentes à qualidade de nascituros. Têm direitos, se vierem a originar uma entidade biológica que nasça. É pelo nascimento que o feto se torna pessoa. As pessoas começam quando nascem.
6. Na fase embrionária, o recurso da grávida à interrupção deve ser considerado um direito. Não é razoável legislar contra a persistente e consistente sensibilidade e mentalidade de um povo. As leis são para cumprir, não para aconselhar. E não é bom que se aconselhe a passar por experiências mais ou menos terríveis com consequências que podem ser irreversíveis, além de penosas e, não raro, letais. Conselhos desses não os deve dar uma lei. Outros o poderão fazer. Merecendo o respeito devido a todas as concepções morais e não justificada revolta contra normas iníquas.
7. O abortamento ilegal de um feto deve ser punido mediante, por exemplo, injuntiva prestação de serviços à comunidade, mas nunca através de prisão. Não é suficiente tolerância nem a "vista grossa". O desaparecimento da pena de prisão por recurso ilegal ao abortamento voluntário é, sem dúvida, razoável e justo. Em termos sanitários, a descriminalização é decisiva por abrir a possibilidade de prática de IVG em clínicas qualificadas e por médicos em regular exercício de actividade. É esse o cerne da questão. Inescapavelmente. Embora se prefira que as mulheres não sejam carcerariamente punidas por abortamentos clandestinos, e que as grávidas passem a recorrer a essa clandestinidade sem sofrer a humilhação de julgamento e mesmo a de prisão.
8. Ao direito da grávida à IVG devem corresponder os correlativos deveres dos serviços de saúde. Tanto em quantidade e organização de clínicas, como em formação cívica e deontológica dos médicos. Todavia, é escasso e seria incoerente renunciar a punição sem proporcionar assistência médica adequada e competente, em ambiente hospitalar. Não se percebe por que razão, em Portugal, se faria às escondidas uma intervenção eventualmente arriscada que apenas se deve processar com assistência médica, tal como ocorre em qualquer outro país europeu, excepto a Irlanda. O encarceramento não é apenas uma iniquidade. Qualquer criminalização é factor de graves e perigosas infecções. Renunciar à pena de prisão e manter médicos fora do processo apenas conduziria a desmotivar as televisões. Um horror só se torna escândalo se for conhecido com alguma notoriedade e, neste caso, só é conhecido se cair sob as câmaras da televisão.
9. Conviria averiguar se o n.º 3 do artigo 140.º do Código Penal pode ser mantido em vigor em Estado constitucionalmente baseado na "dignidade da pessoa humana" (na dignidade da "pessoa humana" e não na "dignidade do ser humano" ou na "dignidade de tudo quanto é humano"). Indigna é a denegação de ajuda médica a pessoas em perigo. Entre o tosco barbeiral positivismo jurídico formalista e os princípios do Estado de Direito, é curioso que tantos espiritualistas optem pela boçalidade do positivismo na sua forma mais hedionda. A mediatização de tais violências agrava a indignidade.
10. Inexistindo posição do Tribunal Constitucional sobre aquela questão, que suponho não ter sido suscitada, é urgente que a Assembleia assuma novamente as suas próprias responsabilidades, legislando para Portugal o que não foi necessário efectuar na Alemanha ou em Espanha, onde vigoram leis semelhantes à portuguesa, interpretadas todavia com sensibilidade jurídica, bom senso e dedicação dos médicos
11. Dispensam-se, em contrapartida, inefáveis procuradores propensos a reiterados erros jurídicos profissionais, identificáveis, sem lupa, em condutas de âmbito mais geral. Prescindir-se-ia de procuradores voluntariosos, de gente capaz, por exemplo, de acusar de abortamento mulheres não comprovadamente grávidas.
12. O recurso ao referendo, não obstante o precedente italiano, constituirá, se a imaginação jurídica portuguesa não for capaz de se autocontrolar, um expediente quase original vocacionado para fazer esquecer que direito penal e referendo se não casam harmoniosamente. Se não é permitido criar crimes por referendo, é incoerente que seja oferecido o ensejo de por ele os extinguir. Conviria estudar a questão, de raiz puramente político-partidária em Portugal, do ponto de vista do direito comparado.
13. Impor, na lei, valores morais, mesmo se respeitabilíssimos ou porventura excelentes, é opção legislativa que merece o qualificativo de esquizofrenia sócio-jurídica. Invocar a palavra dada, em campanha eleitoral, para manter um anacronismo grave constitui curiosa maneira de ser fiel a compromissos. Os quais aparentemente são assumidos como promessa de bem agir e não como ameaça de mal fazer, mesmo se em nome da autoridade de ecografias sensacionais. Ou seja, nesse particular e em meu modesto entender, de populismo e demagogia contrários quer à deontologia médica, quer à jornalística.
14. Um legislador que respeite o Estado de Direito não impõe aos outros o que é contrário a consolidada cultura jurídica do seu tempo, embora se conduza, em privado, conforme o lhe que for ditado pela sua consciência moral. Não pretende que todos sejam tão virtuosos como ele próprio é ou crê que deveria ser.
15. Que se diria de legislador que argumentasse sobre o problema em apreço dizendo que todos têm direito a não-nascer contra a vontade da mãe? Dir-se-ia que confundia moral e legislação. É isso que faz a actual norma jurídica na interpretação comummente seguida. E que seria outra se, com sensibilidade jurídica adequada, se interpretasse a alínea a) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, em obediência à lei de 1984. Com efeito, a protecção da "saúde psíquica" da grávida é um bem jurídico que deveria ser respeitado. O legislador de então supôs que estava a redigir para pessoas do seu tempo.
16. A lei deve não ser paternalista. A lei moralista não deveria ser causa de sofrimento, dor, morte, perseguições, horrores. E não deveria ignorar as principais consequências da sua existência. Quantas grávidas renunciaram a abortar por causa do n.º 3 do artigo 140º? Não será bastante a "palavra do Senhor" ou a voz da consciência? Quem, grávida, não obedece nem a conselhos divinamente inspirados, nem à voz da sua consciência, abstém-se finalmente de abortar em homenagem ao (ou por temor do) n.º 3 do artigo 140º do Código Penal Português, que tantos engulhos causa aos seus mais poderosos intérpretes, veneradores e obrigados?
17. Embora, do meu ponto de vista, não se saiba o que seja democracia participativa em alternativa a democracia representativa, é óbvio que manifestações públicas pacíficas e inteligentes ajudam os decisores políticos a pensar melhor e a agir com mais independência. Com menos trevas de arcaico obscurantismo jurídico. A democracia representativa funciona melhor quando os interessados argumentam e propõem.
Professor de Teoria Política da UNL
Por SOTTOMAYOR CARDIA
Segunda-feira, 01 de Março de 2004
1. A competência sexual e respectivo exercício genital são bens intrínsecos e não, apenas ou predominantemente, recursos ou meios instrumentais finalizados a permitir a reprodução de pessoas ou a continuidade de famílias, de nações ou da espécie.
2. Salvo em casos de esterilidade garantida, é prudente que a cópula heterossexual seja enquadrada em disposições eficazes preventivas da gravidez, quando esta não for desejada por ambos. O hipotético recurso ao abortamento subsequente não deve ser incluído entre essas disposições.
3. O zigoto, embrião e o feto são coisas vivas humanas; não são pessoas. O embrião é desprovido de sensibilidade álgica. O feto desenvolve-se em processo de progressiva sensibilidade e actividade. Em ambas as fases são pessoas possíveis.
4. As pessoas possíveis e respectiva singularidade são em número infinito. Pode - embora não deva - sustentar-se, por tal razão, alguma ética pan-procriativa maximizada. Optimizar-se-ia a concepturidade? Na prática, ainda assim não seria alcançado o óptimo sonhado. Nem todas as pessoas humanas possíveis seriam produzidas porque os humanos não se conduzem pelo critério de optimizar a criação. Nem todo o quantitativamente humanizável pode ser realizado. É esse um dos paradoxos do óptimo ou da moralidade optimal.
5. Enquanto pessoas possíveis corpóreas, o embrião e o feto têm os direitos inerentes à qualidade de nascituros. Têm direitos, se vierem a originar uma entidade biológica que nasça. É pelo nascimento que o feto se torna pessoa. As pessoas começam quando nascem.
6. Na fase embrionária, o recurso da grávida à interrupção deve ser considerado um direito. Não é razoável legislar contra a persistente e consistente sensibilidade e mentalidade de um povo. As leis são para cumprir, não para aconselhar. E não é bom que se aconselhe a passar por experiências mais ou menos terríveis com consequências que podem ser irreversíveis, além de penosas e, não raro, letais. Conselhos desses não os deve dar uma lei. Outros o poderão fazer. Merecendo o respeito devido a todas as concepções morais e não justificada revolta contra normas iníquas.
7. O abortamento ilegal de um feto deve ser punido mediante, por exemplo, injuntiva prestação de serviços à comunidade, mas nunca através de prisão. Não é suficiente tolerância nem a "vista grossa". O desaparecimento da pena de prisão por recurso ilegal ao abortamento voluntário é, sem dúvida, razoável e justo. Em termos sanitários, a descriminalização é decisiva por abrir a possibilidade de prática de IVG em clínicas qualificadas e por médicos em regular exercício de actividade. É esse o cerne da questão. Inescapavelmente. Embora se prefira que as mulheres não sejam carcerariamente punidas por abortamentos clandestinos, e que as grávidas passem a recorrer a essa clandestinidade sem sofrer a humilhação de julgamento e mesmo a de prisão.
8. Ao direito da grávida à IVG devem corresponder os correlativos deveres dos serviços de saúde. Tanto em quantidade e organização de clínicas, como em formação cívica e deontológica dos médicos. Todavia, é escasso e seria incoerente renunciar a punição sem proporcionar assistência médica adequada e competente, em ambiente hospitalar. Não se percebe por que razão, em Portugal, se faria às escondidas uma intervenção eventualmente arriscada que apenas se deve processar com assistência médica, tal como ocorre em qualquer outro país europeu, excepto a Irlanda. O encarceramento não é apenas uma iniquidade. Qualquer criminalização é factor de graves e perigosas infecções. Renunciar à pena de prisão e manter médicos fora do processo apenas conduziria a desmotivar as televisões. Um horror só se torna escândalo se for conhecido com alguma notoriedade e, neste caso, só é conhecido se cair sob as câmaras da televisão.
9. Conviria averiguar se o n.º 3 do artigo 140.º do Código Penal pode ser mantido em vigor em Estado constitucionalmente baseado na "dignidade da pessoa humana" (na dignidade da "pessoa humana" e não na "dignidade do ser humano" ou na "dignidade de tudo quanto é humano"). Indigna é a denegação de ajuda médica a pessoas em perigo. Entre o tosco barbeiral positivismo jurídico formalista e os princípios do Estado de Direito, é curioso que tantos espiritualistas optem pela boçalidade do positivismo na sua forma mais hedionda. A mediatização de tais violências agrava a indignidade.
10. Inexistindo posição do Tribunal Constitucional sobre aquela questão, que suponho não ter sido suscitada, é urgente que a Assembleia assuma novamente as suas próprias responsabilidades, legislando para Portugal o que não foi necessário efectuar na Alemanha ou em Espanha, onde vigoram leis semelhantes à portuguesa, interpretadas todavia com sensibilidade jurídica, bom senso e dedicação dos médicos
11. Dispensam-se, em contrapartida, inefáveis procuradores propensos a reiterados erros jurídicos profissionais, identificáveis, sem lupa, em condutas de âmbito mais geral. Prescindir-se-ia de procuradores voluntariosos, de gente capaz, por exemplo, de acusar de abortamento mulheres não comprovadamente grávidas.
12. O recurso ao referendo, não obstante o precedente italiano, constituirá, se a imaginação jurídica portuguesa não for capaz de se autocontrolar, um expediente quase original vocacionado para fazer esquecer que direito penal e referendo se não casam harmoniosamente. Se não é permitido criar crimes por referendo, é incoerente que seja oferecido o ensejo de por ele os extinguir. Conviria estudar a questão, de raiz puramente político-partidária em Portugal, do ponto de vista do direito comparado.
13. Impor, na lei, valores morais, mesmo se respeitabilíssimos ou porventura excelentes, é opção legislativa que merece o qualificativo de esquizofrenia sócio-jurídica. Invocar a palavra dada, em campanha eleitoral, para manter um anacronismo grave constitui curiosa maneira de ser fiel a compromissos. Os quais aparentemente são assumidos como promessa de bem agir e não como ameaça de mal fazer, mesmo se em nome da autoridade de ecografias sensacionais. Ou seja, nesse particular e em meu modesto entender, de populismo e demagogia contrários quer à deontologia médica, quer à jornalística.
14. Um legislador que respeite o Estado de Direito não impõe aos outros o que é contrário a consolidada cultura jurídica do seu tempo, embora se conduza, em privado, conforme o lhe que for ditado pela sua consciência moral. Não pretende que todos sejam tão virtuosos como ele próprio é ou crê que deveria ser.
15. Que se diria de legislador que argumentasse sobre o problema em apreço dizendo que todos têm direito a não-nascer contra a vontade da mãe? Dir-se-ia que confundia moral e legislação. É isso que faz a actual norma jurídica na interpretação comummente seguida. E que seria outra se, com sensibilidade jurídica adequada, se interpretasse a alínea a) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, em obediência à lei de 1984. Com efeito, a protecção da "saúde psíquica" da grávida é um bem jurídico que deveria ser respeitado. O legislador de então supôs que estava a redigir para pessoas do seu tempo.
16. A lei deve não ser paternalista. A lei moralista não deveria ser causa de sofrimento, dor, morte, perseguições, horrores. E não deveria ignorar as principais consequências da sua existência. Quantas grávidas renunciaram a abortar por causa do n.º 3 do artigo 140º? Não será bastante a "palavra do Senhor" ou a voz da consciência? Quem, grávida, não obedece nem a conselhos divinamente inspirados, nem à voz da sua consciência, abstém-se finalmente de abortar em homenagem ao (ou por temor do) n.º 3 do artigo 140º do Código Penal Português, que tantos engulhos causa aos seus mais poderosos intérpretes, veneradores e obrigados?
17. Embora, do meu ponto de vista, não se saiba o que seja democracia participativa em alternativa a democracia representativa, é óbvio que manifestações públicas pacíficas e inteligentes ajudam os decisores políticos a pensar melhor e a agir com mais independência. Com menos trevas de arcaico obscurantismo jurídico. A democracia representativa funciona melhor quando os interessados argumentam e propõem.
Professor de Teoria Política da UNL
quarta-feira, fevereiro 4
A Direita Lusitana e o 25 de Abril
Por FERNANDO ROSAS
Quarta-feira, 04 de Fevereiro de 2004
Há que reconhecer que eles já criaram uma imagem de marca, os "cavaglieri" lusitanos. Muito engomadinhos e pomposos nesse estilo de compromisso entre o vendedor de Alfa Romeos e o estagiário pretensioso de firma chique de advogados, com o seu convencionalismo postiço, esse verniz que mal tapa o caceteirismo instintivo e à flor da pele, eles são os herdeiros políticos e culturais da velha direita portuguesa de sempre. Emblematicamente agrupados, por acerto da história, nesse partido que o prof. Diogo Freitas do Amaral criou para uma tarefa que hoje confessa ter-se demonstrado inviável: reeducar democraticamente para a política parlamentar os descendentes das elites do antigo regime. Esse é o CDS/PP dos dias de hoje: o campo ideológico daquela direita lusitana que não esqueceu nada, nem aprendeu nada. E que também reconhecemos, em versão "hard", no excesso histriónico e no abuso antidemocrático do "Gauleiter" madeirense do PSD, João Jardim, ou, em versão "soft" de revista cor-de-rosa, no registo populista-delicodoce de Santana Lopes e seu séquito. São eles que comandam o actual Governo.
São eles, juntamente com outros dirigentes do PSD em registo mais discreto, que, neste 30.º aniversário da Revolução portuguesa de 1974/75, querem ajustar contas com a História. Pessoalmente, acho que têm boas razões para o fazer. O processo revolucionário originado no "25 de Abril" foi um momento histórico singular no século XX português: ele fez tremer e abalou nos seus fundamentos a arrogância de uma oligarquia longamente habituada ao privilégio, ao abuso e à prepotência impunes, vivendo próspera e placidamente à sombra de um regime antidemocrático que existia para a servir. O "25 de Abril" deixou entrever um mundo virado do avesso. E os oligarcas de hoje ainda não esqueceram, nem esquecerão tão cedo, o susto de ontem.
Essa direita, que não esquece nem aprende, escourada em alguma recente historiografia económica neoconservadora, vem contar-nos a lenda de uma economia que, nos idos de 60 e início dos 70, crescia euforicamente num processo de "convergência real" com a Europa (para o que a existência de um regime antidemocrático seria irrelevante, quando não vantajosa), até suceder a "tragédia" de Abril, interrompendo essa senda virtuosa do progresso. Escamoteiam o essencial: que esse foi um crescimento assente numa dupla e inexorável injustiça: a imensa injustiça social e regional na distribuição da riqueza e a injustiça política que proibia, reprimia e perseguia qualquer tentativa legal de expressão ou de associação visando a correcção ou a resistência a tal iniquidade. A Revolução portuguesa de 1974/75, é bom não o esquecer, foi, também, um singular momento histórico de inversão dos pesos da balança secularmente desequilibrado entre o capital e o trabalho.
A direita que vai cautelosamente destilando o discurso da reabilitação do passado e da demonização da revolução, essa mesma cujos antepassados recentes serviram a ditadura, sem estados de alma nem angústias democráticas, em lugares de topo no Estado ou no partido único, descobriu recentemente que só existia democracia em Portugal desde o início dos anos 80, quando a direita reciclada e coligada na AD regressou ao poder. Opondo essa sua democracia de projecto contra-revolucionário à revolução de Abril, espécie de prelúdio não democrático e "totalitário" da nova aurora conservadora.
Esquecem que a liberdade foi a primeira coisa a ser conquistada pela "desordem" desde o próprio dia 25 de Abril. Porque foi imposta pela iniciativa popular de massa, na rua, ao próprio movimento militar. Assaltando, desarmada, sob fogo, a sede da polícia política e impondo a sua dissolução e o julgamento dos seus responsáveis aos militares; atacando e destruindo as instalações da censura prévia; marchando sobre as cadeias da PIDE e obrigando à libertação incondicional de todos os presos políticos; conquistando as liberdades de associação e de expressão por modo próprio, muito antes da sua consagração na lei. No decurso do processo revolucionário, é sabido que essas liberdades estiveram, por vezes, sob a mira de tentações várias que ameaçariam a sua sobrevivência. Mas foi porque elas, em todas as circunstâncias, foram mais fortes e prevaleceram como conquistas inabaláveis, isto é, como realidades políticas civicamente conquistadas e não outorgadas pela generosidade de um poder previdente, que foi possível aprovar a Constituição e institucionalizar a democracia em 1976. E, já agora, que foi possível à nova direita regressar à governação com a primeira AD. É por isso que se pode dizer que a revolução, essa explosão multiforme de iniciativa popular, essa força telúrica que, muito para além dos directórios partidários ou militares, ousou partir à conquista do céu, tomar o destino nas mãos, ocupando as ruas, as casas devolutas, as terras do latifúndio, as empresas abandonadas, organizando-se por iniciativa própria e largamente espontânea \uF8E7 essa Revolução de 1974/75 foi a génese específica e distintiva da democracia portuguesa. E que é contra o que resta desse património genético que hoje se afadigam os próceres da direita portuguesa.
Mas talvez a bandeira mais apetecida desta direita regressista e nostálgica da gesta dos santos e cavaleiros seja a do colonialismo e da guerra colonial que exaltam sem pudor, condenando, isso sim, o "crime" nefando da descolonização. Quando o crime está, precisamente, nessa guerra injusta e absurda imposta pela ditadura, durante 13 anos, ao povo português e aos povos das colónias, com o seu indizível rasto de horrores, de violências, de abusos, com os cerca de dez mil mortos portugueses e não se sabe quantos angolanos, moçambicanos e guineenses, e de tantos e tantos feridos física e mentalmente para sempre. Foi a cegueira do colonialismo português e do regime que o sustentou a primeira e a principal responsável pela descolonização que foi possível levar a cabo em 1974/75.
E é intolerável que 30 anos depois, apesar de tudo nesta democracia que nos sobra, haja forças políticas que se permitam o discurso serôdio da apologia patrioteira da guerra com pouco mais do que o propósito rasteiro de arrebanhar alguns votos entre os antigos militares que a sofreram.
A direita de que vos falo não é uma abstracção retórica ou uma figura de estilo. Ela não só está no poder, como, com os seus um e pouco por cento que lhe dão as últimas sondagens, tem refém toda a política do Governo PSD-PP, dependente do apoio da extrema-direita para manter a maioria parlamentar. Ela é a cara da sua política de privatização da segurança social, de ataque generalizado aos direitos do trabalho, de despesismo megalómano em projectos militares sem sentido na defesa, de perseguição e prisão das mulheres que interrompem voluntariamente a gravidez e de oposição ao referendo sobre a despenalização, de estrangulamento do ensino superior público e da investigação, das políticas xenófobas e discriminatórias em matéria da imigração ou da impotência generalizada no domínio da justiça.
Esta minoria radical, populista e trauliteira puxou para a direita a direita portuguesa. Uns e outros levaram o país, o país que trabalha, que estuda, que ensina, que cria, a uma das piores crises da sua história recente.
Oxalá a convocatória ao debate cívico deste 30.º aniversário do 25 de Abril possa contribuir para desmontar a pressão para o esvaziamento ritual da efeméride ou até para a sua negação, implícitos nos propósitos ideológicos das direitas no poder. Também com esse debate, e trinta anos depois, estaremos discutir os destinos da democracia portuguesa.
Por FERNANDO ROSAS
Quarta-feira, 04 de Fevereiro de 2004
Há que reconhecer que eles já criaram uma imagem de marca, os "cavaglieri" lusitanos. Muito engomadinhos e pomposos nesse estilo de compromisso entre o vendedor de Alfa Romeos e o estagiário pretensioso de firma chique de advogados, com o seu convencionalismo postiço, esse verniz que mal tapa o caceteirismo instintivo e à flor da pele, eles são os herdeiros políticos e culturais da velha direita portuguesa de sempre. Emblematicamente agrupados, por acerto da história, nesse partido que o prof. Diogo Freitas do Amaral criou para uma tarefa que hoje confessa ter-se demonstrado inviável: reeducar democraticamente para a política parlamentar os descendentes das elites do antigo regime. Esse é o CDS/PP dos dias de hoje: o campo ideológico daquela direita lusitana que não esqueceu nada, nem aprendeu nada. E que também reconhecemos, em versão "hard", no excesso histriónico e no abuso antidemocrático do "Gauleiter" madeirense do PSD, João Jardim, ou, em versão "soft" de revista cor-de-rosa, no registo populista-delicodoce de Santana Lopes e seu séquito. São eles que comandam o actual Governo.
São eles, juntamente com outros dirigentes do PSD em registo mais discreto, que, neste 30.º aniversário da Revolução portuguesa de 1974/75, querem ajustar contas com a História. Pessoalmente, acho que têm boas razões para o fazer. O processo revolucionário originado no "25 de Abril" foi um momento histórico singular no século XX português: ele fez tremer e abalou nos seus fundamentos a arrogância de uma oligarquia longamente habituada ao privilégio, ao abuso e à prepotência impunes, vivendo próspera e placidamente à sombra de um regime antidemocrático que existia para a servir. O "25 de Abril" deixou entrever um mundo virado do avesso. E os oligarcas de hoje ainda não esqueceram, nem esquecerão tão cedo, o susto de ontem.
Essa direita, que não esquece nem aprende, escourada em alguma recente historiografia económica neoconservadora, vem contar-nos a lenda de uma economia que, nos idos de 60 e início dos 70, crescia euforicamente num processo de "convergência real" com a Europa (para o que a existência de um regime antidemocrático seria irrelevante, quando não vantajosa), até suceder a "tragédia" de Abril, interrompendo essa senda virtuosa do progresso. Escamoteiam o essencial: que esse foi um crescimento assente numa dupla e inexorável injustiça: a imensa injustiça social e regional na distribuição da riqueza e a injustiça política que proibia, reprimia e perseguia qualquer tentativa legal de expressão ou de associação visando a correcção ou a resistência a tal iniquidade. A Revolução portuguesa de 1974/75, é bom não o esquecer, foi, também, um singular momento histórico de inversão dos pesos da balança secularmente desequilibrado entre o capital e o trabalho.
A direita que vai cautelosamente destilando o discurso da reabilitação do passado e da demonização da revolução, essa mesma cujos antepassados recentes serviram a ditadura, sem estados de alma nem angústias democráticas, em lugares de topo no Estado ou no partido único, descobriu recentemente que só existia democracia em Portugal desde o início dos anos 80, quando a direita reciclada e coligada na AD regressou ao poder. Opondo essa sua democracia de projecto contra-revolucionário à revolução de Abril, espécie de prelúdio não democrático e "totalitário" da nova aurora conservadora.
Esquecem que a liberdade foi a primeira coisa a ser conquistada pela "desordem" desde o próprio dia 25 de Abril. Porque foi imposta pela iniciativa popular de massa, na rua, ao próprio movimento militar. Assaltando, desarmada, sob fogo, a sede da polícia política e impondo a sua dissolução e o julgamento dos seus responsáveis aos militares; atacando e destruindo as instalações da censura prévia; marchando sobre as cadeias da PIDE e obrigando à libertação incondicional de todos os presos políticos; conquistando as liberdades de associação e de expressão por modo próprio, muito antes da sua consagração na lei. No decurso do processo revolucionário, é sabido que essas liberdades estiveram, por vezes, sob a mira de tentações várias que ameaçariam a sua sobrevivência. Mas foi porque elas, em todas as circunstâncias, foram mais fortes e prevaleceram como conquistas inabaláveis, isto é, como realidades políticas civicamente conquistadas e não outorgadas pela generosidade de um poder previdente, que foi possível aprovar a Constituição e institucionalizar a democracia em 1976. E, já agora, que foi possível à nova direita regressar à governação com a primeira AD. É por isso que se pode dizer que a revolução, essa explosão multiforme de iniciativa popular, essa força telúrica que, muito para além dos directórios partidários ou militares, ousou partir à conquista do céu, tomar o destino nas mãos, ocupando as ruas, as casas devolutas, as terras do latifúndio, as empresas abandonadas, organizando-se por iniciativa própria e largamente espontânea \uF8E7 essa Revolução de 1974/75 foi a génese específica e distintiva da democracia portuguesa. E que é contra o que resta desse património genético que hoje se afadigam os próceres da direita portuguesa.
Mas talvez a bandeira mais apetecida desta direita regressista e nostálgica da gesta dos santos e cavaleiros seja a do colonialismo e da guerra colonial que exaltam sem pudor, condenando, isso sim, o "crime" nefando da descolonização. Quando o crime está, precisamente, nessa guerra injusta e absurda imposta pela ditadura, durante 13 anos, ao povo português e aos povos das colónias, com o seu indizível rasto de horrores, de violências, de abusos, com os cerca de dez mil mortos portugueses e não se sabe quantos angolanos, moçambicanos e guineenses, e de tantos e tantos feridos física e mentalmente para sempre. Foi a cegueira do colonialismo português e do regime que o sustentou a primeira e a principal responsável pela descolonização que foi possível levar a cabo em 1974/75.
E é intolerável que 30 anos depois, apesar de tudo nesta democracia que nos sobra, haja forças políticas que se permitam o discurso serôdio da apologia patrioteira da guerra com pouco mais do que o propósito rasteiro de arrebanhar alguns votos entre os antigos militares que a sofreram.
A direita de que vos falo não é uma abstracção retórica ou uma figura de estilo. Ela não só está no poder, como, com os seus um e pouco por cento que lhe dão as últimas sondagens, tem refém toda a política do Governo PSD-PP, dependente do apoio da extrema-direita para manter a maioria parlamentar. Ela é a cara da sua política de privatização da segurança social, de ataque generalizado aos direitos do trabalho, de despesismo megalómano em projectos militares sem sentido na defesa, de perseguição e prisão das mulheres que interrompem voluntariamente a gravidez e de oposição ao referendo sobre a despenalização, de estrangulamento do ensino superior público e da investigação, das políticas xenófobas e discriminatórias em matéria da imigração ou da impotência generalizada no domínio da justiça.
Esta minoria radical, populista e trauliteira puxou para a direita a direita portuguesa. Uns e outros levaram o país, o país que trabalha, que estuda, que ensina, que cria, a uma das piores crises da sua história recente.
Oxalá a convocatória ao debate cívico deste 30.º aniversário do 25 de Abril possa contribuir para desmontar a pressão para o esvaziamento ritual da efeméride ou até para a sua negação, implícitos nos propósitos ideológicos das direitas no poder. Também com esse debate, e trinta anos depois, estaremos discutir os destinos da democracia portuguesa.
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