quarta-feira, fevereiro 4

A Direita Lusitana e o 25 de Abril
Por FERNANDO ROSAS
Quarta-feira, 04 de Fevereiro de 2004

Há que reconhecer que eles já criaram uma imagem de marca, os "cavaglieri" lusitanos. Muito engomadinhos e pomposos nesse estilo de compromisso entre o vendedor de Alfa Romeos e o estagiário pretensioso de firma chique de advogados, com o seu convencionalismo postiço, esse verniz que mal tapa o caceteirismo instintivo e à flor da pele, eles são os herdeiros políticos e culturais da velha direita portuguesa de sempre. Emblematicamente agrupados, por acerto da história, nesse partido que o prof. Diogo Freitas do Amaral criou para uma tarefa que hoje confessa ter-se demonstrado inviável: reeducar democraticamente para a política parlamentar os descendentes das elites do antigo regime. Esse é o CDS/PP dos dias de hoje: o campo ideológico daquela direita lusitana que não esqueceu nada, nem aprendeu nada. E que também reconhecemos, em versão "hard", no excesso histriónico e no abuso antidemocrático do "Gauleiter" madeirense do PSD, João Jardim, ou, em versão "soft" de revista cor-de-rosa, no registo populista-delicodoce de Santana Lopes e seu séquito. São eles que comandam o actual Governo.

São eles, juntamente com outros dirigentes do PSD em registo mais discreto, que, neste 30.º aniversário da Revolução portuguesa de 1974/75, querem ajustar contas com a História. Pessoalmente, acho que têm boas razões para o fazer. O processo revolucionário originado no "25 de Abril" foi um momento histórico singular no século XX português: ele fez tremer e abalou nos seus fundamentos a arrogância de uma oligarquia longamente habituada ao privilégio, ao abuso e à prepotência impunes, vivendo próspera e placidamente à sombra de um regime antidemocrático que existia para a servir. O "25 de Abril" deixou entrever um mundo virado do avesso. E os oligarcas de hoje ainda não esqueceram, nem esquecerão tão cedo, o susto de ontem.

Essa direita, que não esquece nem aprende, escourada em alguma recente historiografia económica neoconservadora, vem contar-nos a lenda de uma economia que, nos idos de 60 e início dos 70, crescia euforicamente num processo de "convergência real" com a Europa (para o que a existência de um regime antidemocrático seria irrelevante, quando não vantajosa), até suceder a "tragédia" de Abril, interrompendo essa senda virtuosa do progresso. Escamoteiam o essencial: que esse foi um crescimento assente numa dupla e inexorável injustiça: a imensa injustiça social e regional na distribuição da riqueza e a injustiça política que proibia, reprimia e perseguia qualquer tentativa legal de expressão ou de associação visando a correcção ou a resistência a tal iniquidade. A Revolução portuguesa de 1974/75, é bom não o esquecer, foi, também, um singular momento histórico de inversão dos pesos da balança secularmente desequilibrado entre o capital e o trabalho.

A direita que vai cautelosamente destilando o discurso da reabilitação do passado e da demonização da revolução, essa mesma cujos antepassados recentes serviram a ditadura, sem estados de alma nem angústias democráticas, em lugares de topo no Estado ou no partido único, descobriu recentemente que só existia democracia em Portugal desde o início dos anos 80, quando a direita reciclada e coligada na AD regressou ao poder. Opondo essa sua democracia de projecto contra-revolucionário à revolução de Abril, espécie de prelúdio não democrático e "totalitário" da nova aurora conservadora.

Esquecem que a liberdade foi a primeira coisa a ser conquistada pela "desordem" desde o próprio dia 25 de Abril. Porque foi imposta pela iniciativa popular de massa, na rua, ao próprio movimento militar. Assaltando, desarmada, sob fogo, a sede da polícia política e impondo a sua dissolução e o julgamento dos seus responsáveis aos militares; atacando e destruindo as instalações da censura prévia; marchando sobre as cadeias da PIDE e obrigando à libertação incondicional de todos os presos políticos; conquistando as liberdades de associação e de expressão por modo próprio, muito antes da sua consagração na lei. No decurso do processo revolucionário, é sabido que essas liberdades estiveram, por vezes, sob a mira de tentações várias que ameaçariam a sua sobrevivência. Mas foi porque elas, em todas as circunstâncias, foram mais fortes e prevaleceram como conquistas inabaláveis, isto é, como realidades políticas civicamente conquistadas e não outorgadas pela generosidade de um poder previdente, que foi possível aprovar a Constituição e institucionalizar a democracia em 1976. E, já agora, que foi possível à nova direita regressar à governação com a primeira AD. É por isso que se pode dizer que a revolução, essa explosão multiforme de iniciativa popular, essa força telúrica que, muito para além dos directórios partidários ou militares, ousou partir à conquista do céu, tomar o destino nas mãos, ocupando as ruas, as casas devolutas, as terras do latifúndio, as empresas abandonadas, organizando-se por iniciativa própria e largamente espontânea \uF8E7 essa Revolução de 1974/75 foi a génese específica e distintiva da democracia portuguesa. E que é contra o que resta desse património genético que hoje se afadigam os próceres da direita portuguesa.

Mas talvez a bandeira mais apetecida desta direita regressista e nostálgica da gesta dos santos e cavaleiros seja a do colonialismo e da guerra colonial que exaltam sem pudor, condenando, isso sim, o "crime" nefando da descolonização. Quando o crime está, precisamente, nessa guerra injusta e absurda imposta pela ditadura, durante 13 anos, ao povo português e aos povos das colónias, com o seu indizível rasto de horrores, de violências, de abusos, com os cerca de dez mil mortos portugueses e não se sabe quantos angolanos, moçambicanos e guineenses, e de tantos e tantos feridos física e mentalmente para sempre. Foi a cegueira do colonialismo português e do regime que o sustentou a primeira e a principal responsável pela descolonização que foi possível levar a cabo em 1974/75.

E é intolerável que 30 anos depois, apesar de tudo nesta democracia que nos sobra, haja forças políticas que se permitam o discurso serôdio da apologia patrioteira da guerra com pouco mais do que o propósito rasteiro de arrebanhar alguns votos entre os antigos militares que a sofreram.

A direita de que vos falo não é uma abstracção retórica ou uma figura de estilo. Ela não só está no poder, como, com os seus um e pouco por cento que lhe dão as últimas sondagens, tem refém toda a política do Governo PSD-PP, dependente do apoio da extrema-direita para manter a maioria parlamentar. Ela é a cara da sua política de privatização da segurança social, de ataque generalizado aos direitos do trabalho, de despesismo megalómano em projectos militares sem sentido na defesa, de perseguição e prisão das mulheres que interrompem voluntariamente a gravidez e de oposição ao referendo sobre a despenalização, de estrangulamento do ensino superior público e da investigação, das políticas xenófobas e discriminatórias em matéria da imigração ou da impotência generalizada no domínio da justiça.

Esta minoria radical, populista e trauliteira puxou para a direita a direita portuguesa. Uns e outros levaram o país, o país que trabalha, que estuda, que ensina, que cria, a uma das piores crises da sua história recente.

Oxalá a convocatória ao debate cívico deste 30.º aniversário do 25 de Abril possa contribuir para desmontar a pressão para o esvaziamento ritual da efeméride ou até para a sua negação, implícitos nos propósitos ideológicos das direitas no poder. Também com esse debate, e trinta anos depois, estaremos discutir os destinos da democracia portuguesa.