Entrevista a Manuel Carvalho da Silva 2007-08-23 00:05
“Não há país onde seja tão fácil despedir”
Carvalho da Silva fala de flexigurança, da necessidade de êxito das reformas e das perspectivas para o próximo ano.
Helena Garrido e Paula Nunes (fotografia)
As reformas pode redundar “em fracassos grandes, provocando no país uma situação de ruptura e paralisia por muitos anos”, alerta Carvalho da Silva confessando que até tem medo de falar destas coisas porque nada está seguro nas mudanças que se estão a fazer na saúde. Por isso 2008 vai ser um ano decisivo. Numa longa entrevista o secretário geral da CGTP considera que a rigidez do mercado de trabalho “é uma mentira total” que tem prejudicado o País e à qual se agarram “empresários com sentido parasitário”. E dá o exemplo do bom funcionamento das multinacionais em Portugal. Quanto ao desemprego afirma que há o risco de chegar uma nova avalanche de pequenos comerciantes e industriais. Sobre a flexisegurança mostra-se céptico.
Na sua tese de doutoramento, ‘A centralidade do trabalho e a acção colectiva’ afirma que caso desapareça a centralidade e o valor do trabalho perde-se a estabilidade do Estado social. Existe esse risco?
A centralidade do trabalho não se perde, é um facto. O problema é o seu reconhecimento ou não. Negar a centralidade do trabalho é negar a essência da estruturação da sociedade actual, a vida concreta de cada cidadão. Há alguns estudiosos que dizem que, face à disponibilidade de riqueza e àquilo que são as necessidades da humanidade – a questão ambiental, energética e outras – era possível criar hoje postos de trabalho que correspondessem à dimensão da sociedade. O problema é que se nega muitas vezes a centralidade do trabalho para intensificar a exploração de quem trabalha. Durante muito tempo houve teorias sobre o fim do trabalho. Gosto muito de uma expressão de um director geral da OIT que há quatro anos num debate no Fórum Social disse que não era exactamente do fim do trabalho que se falava, era do fim do trabalho com direitos, digno.
Quando fala do fim do trabalho refere-se às teses de que as pessoas iam trabalhar cada vez menos e ter cada vez mais lazer?
Isso são deambulações, uma mescla de conservadorismo e pós-modernismo esquisito. As teorias mais profundas sobre o fim do trabalho são as que atentam contra o valor do trabalho e a sua centralidade na sociedade. Quando viajamos, no nosso país – mas já vi situações extremas em África – vemos que os cursos de água não estão limpos, o lixo que se acumula… Era possível criar milhares e milhares de postos de trabalho num novo campo de trabalho social, qualificado.
Quem é que criava esses postos de trabalho? A sociedade está apoiada em empresas que só criam postos de trabalho se reconhecerem a criação de valor…
Não é só criação de valor…
É mais lucro que valor?
Hoje, a acumulação de riqueza faz-se muito mais pela especulação do que por actividade produtivas.
Nem todos. A maioria das economias ainda se apoia na criação de valor.
Sim, das economias tem toda a razão. A economia real, se quisermos usar esta expressão, continua a sustentar a sociedade e a garantir os compromissos de a fazer funcionar. Mas a circulação de riqueza é muitíssimo superior à da circulação de bens e serviços. A dimensão do dinheiro que hoje, ficticiamente, cria dinheiro tem uma dimensão muito grande. Mas o problema de fundo é que o capital financeiro – fonte de acumulação de riqueza no mundo e uma das causas das desigualdades a que estamos a assistir - auto-dispensou-se de contribuir para o colectivo. Não paga impostos…
Pagam alguns impostos…
Um montante minúsculo em comparação com o contributo do capital produtivo. E isso é um problema porque o capital produtivo quer depois seguir a peugada do capital financeiro.
Nessa sua classificação não se gera um circulo? Criam-se mais valias com o capital financeiro que se aplicam no capital produtivo
Veja todos os sectores que convocam mais investimentos. O caso do sector automóvel, por exemplo. Exige investimentos volumosos e os accionistas, face aos montantes envolvidos, perspectivam ter enormes lucros. Tomam como comparação outros campos onde esse investimento volumoso podia estar a render mais, em áreas especulativas ou semi-especulativas. E começaram a descarregar responsabilidades para as sub-contratadas. O que gera isso? Pressões sobre os direitos dos trabalhadores e sociais e as empresas a quererem pagar menos ou nada para a segurança social.
Mas não é porque os trabalhadores criam menos valor?
A remuneração dos trabalhadores tem de estar ligada ao que se produz. Nunca a produção do trabalho foi tão elevada. As tecnologias e a evolução na organização do trabalho permitem rentabilizações que não eram imagináveis há uns anos atrás.
Mas a remuneração também é mais elevada que há uns anos atrás.
Sim mas a remuneração do trabalho em geral pesa muito pouco nas empresas. O peso relativo dos salários nos custos das empresas tem vindo a diminuir em todos os sectores, em termos médios. Quantas vezes se fala em reduzir custos salariais quando pesam 6 ou 7% dos custos totais. E os restantes 83 a 84% continuam na mesma, com tudo calado, porque têm a ver com outros interesses. Os custos da energia, de estrutura, de organização, de funcionamento da administração pública, de transportes, de acessibilidades são mais elevados sendo possível com pequenas medidas aumentar a rentabilidade de forma extraordinária sem estar ali a pressionar os trabalhadores. E porquê os trabalhadores? Porque são o elo mais fraco. Ainda há pouco tempo visitei uma empresa do sector automóvel com êxito, na zona do Tramagal. Os custos daquela empresa poderiam ser reduzidos cumprindo uma promessa feita há muitos anos que é uma ponte sobre o Tejo que evitasse que os camiões fizessem mais 30 quilómetros. Isto está prometido há 30 anos e teria um efeito mais positivo sobre a empresa do que cortar 2 ou 3% nos salários.
Considera que existe um risco para o estado social com essa negação da centralidade do trabalho?
Actualmente … Se é rompido ou fragilizado o compromisso entre o capital e o trabalho - em relação à distribuição da riqueza produzida, aos equilíbrios entre a disponibilidade para prestar o trabalho e as condições de vida e sociais - , toda a relação de trabalho é posta em causa assim como as bases do Estado social. Hoje os trabalhadores descontam x, a entidade patronal desconta y que contabiliza nos custos do trabalho. Quando isto passasse para uma responsabilidade distante do Estado, com a empresa a não ter de se comprometer aqui, nunca mais se apanha um contributo do capital. Por outro lado, a evolução dos direitos no trabalho partiu deste compromisso que ajudou a estruturar os direitos sociais. Não era possível termos chegado a conceitos de cidadania na Europa e nos países mais desenvolvidos se esta centralidade do trabalho não fosse ela própria suporte e indutor de outros compromissos sociais. Quando hoje se discute a flexisegurança, subdividindo o conceito em dois, quando falamos de segurança estamos a falar disto. Se fragilizarmos estes compromissos não haverá esse mecanismo de segurança. Mais ainda na em sociedades como a portuguesa onde assistimos a todas as fugas por todas as vias aos compromissos assumidos. E com um poder financeiro a ter uma força mais incisiva que qualquer outro poder.
O rompimento do Estado social não é o fim do mundo, podemos aproximar-nos de um modelo de tipo norte-americano.
Não podemos ver uma sociedade fechada nas suas fronteiras. A riqueza que circula dentro da fronteira dos Estados Unidos não tem a ver apenas com os americanos, mas também com as condições concretas de um país com uma determinada força económica, política, cultural, militar e de influência que fazem entrar dentro dos EUA muita riqueza. Se olharmos para a situação interna, a sua dívida pública, os equilíbrios na sociedade americana, verificamos que se não tivessem esta força, se fossem um país como Portugal, a situação seria de desastre absoluto. Se Portugal tivesse desigualdades tão profundas como existem nos Estados Unidos era um desastre. Obviamente que a sociedade americana também tem aspectos positivos. Mas isto não é transportável. Por vezes vejo com certa ironia como é que especialistas em economia fazem discussões comparadas sobre o PIB dos países e o que devíamos fazer para sermos como os outros.
Dentro do próprio capital não existe também uma reacção à tirania de resultados trimestrais, com a saída de empresas da bolsa adquiridas pelas ‘private equity’ a tentarem seguir uma estratégia económica e não apenas financeira?
Há muitos sinais de esperança, há muitas pessoas incomodadas com o que se está a passar e que procuram soluções. Mesmo entre os maiores defensores do capitalismo. Alguns dos teóricos do neoliberalismo em várias áreas já começaram a meter travões. O desequilíbrio e a irracionalidade estão a ir longe de mais. Mas há sinais positivos.
Como por exemplo?
Dou o exemplo de uma reunião que tive com trabalhadores e a administração de uma empresa no distrito do Porto. No final fiquei a conversar um bocado com o administrador. A empresa é uma multinacional e tem à frente um gestor experimentado que tem feito um trabalho interessante. Disse-me ele: ‘Como havemos de reagir a isto, quando vejo a referência de empresário no nosso país o Sr Berardo isto é um problema, o que é que ele contribuiu até hoje para o país’. E contou-me uma situação recente. Estavam a discutir o futuro de um conjunto de empresas quando alguém diz: ‘Isto não vale a pena, as pessoas dão mais atenção ao Berardo que a toda a actividade da Agência Portuguesa de Investimentos’. E ainda numa reunião na Alemanha um dos seus colegas de lá perguntou-lhe: “Então como vai o país da especulação ?’ Esta é a imagem.
Mas isso não se passa só em Portugal.
Sim mas em Portugal desbaratam-se muitos recursos Uma das coisas que mais me impressiona é a ligeireza e leviandade com que se assiste à destruição de empresas. Tudo em nome da modernidade. Não se dá atenção ao sector produtivo, aquilo que é a eficiência da actividade económica. E depois esses fenómenos, que não sou só em Portugal como diz, têm um efeito destruidor muito grande. Há falta de sinais…
Há falta de sinais de quem? Os decisores políticos dão também atenção a Berardo como a comunicação social?
Neste caso que estamos a falar o poder político deu um contributo significativo para a projecção da pessoas em causa. A forma como foi desenvolvido o negócio para o Centro Cultural de Belém foi uma grande ajuda. E não estou a dizer se o negócio foi ou não correcto. Não dou palpites sobre um assunto que não conheço.
Na sua opinião há da parte do Governo uma promoção da especulação?
Dos governos. O que contrasta com uma atitude de ligeireza em relação à economia. Qualquer processo de encerramento de uma empresa é colocado como natural, não apenas para a opinião pública mas também pela abordagem dos governantes. Não existe um sentido de responsabilização, de acompanhamento, de exigência. Cito muito o caso recente da Delphi. Assisti ao caso em Espanha. Aí vimos a sociedade mobilizar-se. O alcaide e o presidente da região deslocaram-se a Bruxelas, Durão Barroso disse que o caso ia ser analisado pela Comissão em conjunto com eles e seriam tiradas ilações para o futuro, o primeiro-ministro espanhol recebeu os trabalhadores, falou com eles e afirmou que levariam o processo judicial até ao fim e acompanharia os sindicatos nisso. Ao mesmo tempo em Portugal, onde a empresa tinha um volume de emprego superior, assistimos ao ministro [da Economia] a fazer promessas que não eram exequíveis, não vimos a mesma mobilização junto da União Europeia. E alguma vez o primeiro ministro, este ou outro anterior, ia receber os trabalhadores e dizer ‘força, vamos combater’ ou oferecer palavra de mobilização à população? Não. Há uma retracção, há um considerar inevitável, atacando os trabalhadores, dizendo que são eles que não percebem…
Mas não é inevitável? A reestruturação que se vive hoje no mundo…
Há coisas que são inevitáveis. A desindustrialização da Europa é um facto. Mas hoje um dos debates sérios na Europa é no sentido de que se recomponha e encontre mecanismos para se defender como região industrializada. Isso hoje é assumido, considerando-se que houve ligeireza, que não se tomaram precauções. Na Alemanha este debate é importantíssimo. É um dos países europeus que colocou mais travões e por isso é também uma economia que está mais segura.
Mas que tipo de travões?
Procuraram não desactivar tudo. A indústria naval, as indústrias tradicionais da Alemanha tomaram precauções, estão a fazer reformulações e a debater estratégias. Há uma grande atenção à economia real. Não é por acaso que a Alemanha é o primeiro exportador do mundo.
Portugal poderá reestruturar-se para ser uma economia mais de serviços.
Economia mais de serviços com base em quê? Qual é o projecto, que debate existe, que visão estratégica foi apresentada ao país dizendo que Portugal está no caminho de ser um país de serviços com sucesso? Nada de concreto. Pelo contrário assiste-se ao encerramento de empresas com uma ligeireza enorme. Enquanto em Portugal se arrancavam oliveiras com uns subsidiozitos os espanhóis plantavam. Os espanhóis a desenvolverem a agricultura e nós a definharmos. Nas pescas a mesma versão. Aliás com as pescas até se passa uma situação caricata. O número de portugueses com a profissão de pescadores não diminuiu muito com a nossa entrada na EU. O que deixaram foi de ser pescadores em Portugal e passaram a ser na Galiza, no Golfo de Biscaya.
Mas nada disso depende do Governo, depende da iniciativa empresarial.
Não podemos andar à procura de justificações e a assistir ao desaparecimento das coisas. Veja-se quem são os responsáveis. Que houve políticas que facilitaram isto, isso é uma evidência. Se não tivesse havido esse facilitismo as coisas não se tinham desarmado. Tínhamos necessidade de toda a nossa metalomecânica desaparecer? Não é preciso hoje metalomecânica na Europa?
É mais barato produzir noutros países.
Se fossemos por essa teoria a Europa desenvolvida iria desaparecer. O que eu não acredito.
Não é desaparecer mas sim uma alteração do perfil da produção.
Claro que há. São caminhos possíveis encontrar novas fileiras de produtos, novas formas de produção e evoluções qualitativas nas empresas. Quando os estaleiros navais em Portugal foram profundamente reduzidos foi porque se perspectivava uma crise na reparação naval? Não é verdade. Ouvi aqui neste edifício José Manuel de Mello dar a explicação. Os assessores falavam da crise e de ser inevitável e ele dizia: Tenho agora a possibilidade de fazer aqui dinheiro e vou investir no sector da saúde porque esse me dá mais dinheiro.
A prazo é mais rentável, é a lógica do mercado. A Europa fará outras coisas, foi sempre assim, não?
Foi sempre assim mas não entremos absolutamente nessa onda se não vai tudo. Sabia-se que a reparação e a construção naval iam ter um boom de procura a prazo, com as alterações provocadas pelo desaparecimento da URSS e o crescimento da China.
O que se fazia até chegar esse boom?
Não havia prejuízos. Talvez o facilitismo em que se entrou no sector da saúde, com a privatização, tenha ajudado. Se não existisse essa porta aberta e houvesse aí um travão talvez não tivéssemos a destruição destas coisas.
… Ou talvez não tivéssemos a saúde no nível que temos hoje.
Neste momento? O que temos é a saúde num nível de desrticulação muito complicado. Quando acordarmos para os custos da saúde é capaz de ser um bocado tarde.
Neste momento a Saúde está a ser reestruturada.
Está, está… O problema é pegar nas palavras com os conceitos e discutir. Essa ideia de que hoje tudo muda e não há conservação, é uma tontaria. O conceito de conservação tem de ser tão valorizado como o de mudança. Há muita coisa que é preciso e possível manter. Há países que se mantiveram com siderurgias, com construção e reparação naval e que têm hoje ocupação e possibilidades de evoluir. Peguemos no sector tradicional têxtil. Temos empresas que se modernizam que são capazes que respondem aos desafios dos países emergentes e vemos outras que não.
É isso que não está a acontecer?
A responsabilização, a exigência de cumprimento de regras e o rigor podia ajudar a que muita coisa não se destruísse. Quantas empresas desapareceram no país nas últimas décadas por causa da especulação imobiliária? Já desafiei que se fizesse uma tese de doutoramento em torno de um caso concreto. Pegar por exemplo em Coimbra e ver porque desapareceram em torno da cidade uma série de indústrias. E íamos ver se teve ou não a ver com especulação imobiliária.
Se não houvesse especulação imobiliária se calhar desapareciam à mesma.
Há sempre possibilidade de outra hipótese. Mas o facto é esse: muitas daquelas empresas desapareceram porque havia negociatas por trás. Com desequilíbrio que isto provocou. Há um conhecido banqueiro deste país – não vou dizer o nome – afirma que nos últimos 25 anos a política de construção, obras públicas e rotundas permitiu algumas centenas de portugueses criarem fortunas colossais. E acrescenta, quando falo de fortunas falo de acumulações individuais de dinheiro de mais de cem milhões de contos. Isto foram opções, facilitou-se o caminho para que isto acontecesse.
Mas esse dinheiro pode ser investido, mesmo que seja em acções está a ser investido.
Sabe qual é o espaço onde o investimento do dinheiro é mais assegurado? É o da disponibilidade no comum dos cidadãos. Quando os cidadãos têm mais poder de compra, o seu anseio de viver melhor leva-os a provocar uma dinâmica de investimento incomparável a qualquer outra. Esta ideia de que vamos fazer crescer o país concentrando a riqueza…
…É a acumulação necessária de capital…
Claro… Acumulação de capital. E com o comum dos cidadãos a viver cada vez pior. É um conceito de desenvolvimento muito esquisito.
Não se trata de desenvolvimento mas de uma fase para o desenvolvimento.
É uma pressuposta fase, se essa acumulação viesse a ser colocada ao nível do comum dos cidadãos. Mas o que assistimos é que a uma acumulação se segue outra acumulação e outra e outra… E a redistribuição da riqueza está cada vez pior. Esse é o problema da sociedade.
Um dos aspectos que referiu é que o trabalhador é o elo mais fraco. Porque é que o sindicalismo em Portugal é tão frágil? Não tem também ele contribuído para que o trabalhador seja o elo mais fraco?
O que é o sindicalismo? Não há sindicalismo sem trabalhadores.
Mas temos trabalhadores.
Os trabalhadores têm o sindicalismo que são capazes de construir. Não há uma entidade exterior que constrói o sindicalismo. Os sindicatos são, em primeiro lugar, movimentos sociais, Por vezes há pessoas que se perturbam com isso. Claro que criaram uma dimensão institucional ao longo da sua história, têm esse reconhecimento e estruturam-se. Mas o sindicato é, na sua essência, a expressão dos interesses individuais e colectivos dos trabalhadores colectivamente afirmados.
E porque não são mais fortes em Portugal.
Os portugueses têm os sindicatos que são capazes de ter, os partidos políticos que são capazes de ter, os órgãos de comunicação social que são capazes de ter…
Não diz que têm o que merecem…
Para não ser ostensivo em relação mim próprio. Temos o que somos capazes de construir em função das condições concretas da sociedade. Se a sociedade está mal…
…Não parece estar assim tão mal. O seu diagnóstico é muito negativo, na distribuição de rendimento, na perda de direitos… Mas as pessoas não reagem. A sociedade tem mecanismos, como os sindicatos, para se reagir.
E vão reagir. Os sindicatos reagem, fazem acção, fazem movimentação. E temos estado cultural e uma situação de poder muito concretas que fazem uma interpretação dessa reacção. Há relações de força na sociedade que dizem: o protesto não vale, continuem a protestar.
Está a referir-se à greve geral?
E não só. Neste ano de 2007 já fizemos uma manifestação com uma expressão de descontentamento muito grande. Mas os poderes não a interpretam. E as pessoas estão limitadas na sua capacidade de acção por razões diversas. Quando vemos portugueses que emigram e se sujeitam às explorações que vemos noutros países, isso é sinónimo de um estado de desesperança muito grande no plano interno. E isto não me surpreende. Tivemos o fascismo, as pessoas viviam mal e sujeitavam-se. Muitas vezes é preciso insistir até que as coisas mexam.
Considera que os poderes estão a desvalorizar o descontentamento das pessoas?
Não tenho dúvidas que não existindo respostas graduais nem a preocupação de executar uma perspectiva reformista se vão acumulando descontentamentos.
Essa perspectiva reformista não existe? Estão a corrigir-se os desequilíbrios fundamentais da economia portuguesa…
Mas está a falar de quê? Das contas públicas? À custa de quê?
Com racionalização dos recursos.
Racionalização com pouca racionalidade ou nenhuma racionalidade. O que é a racionalidade?
Com menos recursos prestar melhores serviços.
Dê-me um exemplo significativo em algum sector.
Dou-lhe o exemplo da simplificação administrativa, redução da burocracia.
Devia ser a reforma da administração pública, da estrutura, da organização e do funcionamento.
E isso está a ser feito?
Não. O que aconteceu na administração pública foi a desvalorização dos trabalhadores, considerando-os como malandros. O que está a induzir uma perda de qualidade significativa e pode ter reflexos no futuro dolorosos e muito complexos. Além disso há a perspectiva de menos emprego e perda das condições de trabalho: Os funcionários públicos têm hoje salários reais que são menos 10% que há oito anos. Outro exemplo é o da reestruturação na justiça. Pois bem, se se impede a maioria dos portugueses de terem acesso à justiça, o problema está resolvido.
Mas é isso que está a acontecer?
Não somos nós que dizemos, são estudos muito concretos. Demonstram que hoje a maioria dos portugueses, se tiver de recorrer à justiça, não tem condições para o fazer.
As medidas que estão a ser tomadas pretendem que isso mude.
Não sou ingénuo. Como é que vai ser a mudança? Há dois problemas que são absolutamente cruciais na sociedade portuguesa e sobre os quais deveria existir reflexão. E já transmitimos isso ao primeiro ministro [antes do início de Agosto]. Um é a observação de que Portugal é um país cada vez menos coeso – ao nível social, territorial e outros – e está perigos a quebrar perigosamente dimensões de solidariedade que davam coesão ao país. E isto é um problema grave. E o outro é o da desvalorização do trabalho. Há inúmeras profissões que foram profundamente desvalorizadas e isso vai ter reflexos. Um amigo meu médico experimentado e de referência sempre trabalhou e gostou do Serviço Nacional de Saúde (SNS) No outro disse-me que a saúde parece um mercado de jogadores de futebol, com a contratação de profissionais mais destacados, nas diversas especialidades, para o sector privado. E as pessoas não resistem.. E diz-me ele, ‘estou saturado, sou maltratado no SNS, não vou abandonar o hospital mas pus de lado vínculos de obrigação e também vou para os contratos milionários’.
Mas isso pode melhorar a saúde.
Há sempre o pode. Mas observemos o concreto. O que é que vai acontecer com o SNS despido de qualidade? Quem vai pagar serão sempre os portugueses.
Pensa que os custos vão disparar?
Já estão a disparar.
Mas não tem acontecido, o Estado regula os preços e sendo o grande ‘pagador’ dos serviços de saúde pode pressionar os preços para baixo.
As pessoas começam a pagar taxas moderadoras.
Tem de haver uma comparticipação maior das pessoas nos custos da saúde.
Mas não só. Há um aumento da esperança de vida, uma conquista extraordinária. Além disso há perspectivas de conhecimento humano que levam a que se possa viver com saúde muito mais tempo. Os seres humanos como são todos inteligentes, o que vão fazer inevitavelmente é um investimento maior na sua saúde. E essa é a descoberta que o capital fez.
Mas isso pode contribuir para as pessoas melhorarem a sua saúde.
Pois pode. Mas como isto mobiliza muito dinheiro o capital privado vê aí uma fonte para ir buscar dinheiro.
Não tem nada de negativo.
Não, não tem! Os custos vão ser muito mais elevados. Os americanos são dos povos que mais pagam pela saúde no mundo. Não pagam as pessoas através dos seus impostos, pagam individualmente sem controlo.
É um esquema ineficiente o dos EUA. Mas, por exemplo, o SNS inglês melhorou.
Mas quem é que diz que melhorou? Há estudos a dizer que melhorou e há outros que dizem que está no desastre. Há trabalhos que consideram que a destruição do SNS no Reino Unido é um dos factores de maior desequilíbrio da coesão da sociedade inglesa. O que está em marcha, como diz, são mudanças profundas, o papel do Estado, o Estado social… tudo isso. Mas a evidência é que este desarmar do Estado social está a ser feito a favor de interesses privados.
Uma das críticas que se faz ao sindicalismo…
… Em todos os cantos do mundo se criticam os sindicatos. Um dos mais violentas ataques que vi aos sindicatos foi antes das últimas eleições na Alemanha. Alcunhavam de tudo os sindicalistas. Elogiavam-se os sindicalistas que aceitavam as mudanças nas grandes empresas. Passado uns tempos descobriu-se que esses casos exemplares estavam corrompidos.
Quer dizer que dizer mal dos sindicatos é bom sinal, é sinal de que não foram corrompidos?
Não podemos fazer essas leitura directa. Mas há alguma dose de verdade.
Não há uma excessiva colagem dos sindicatos aos partidos?
A fragilidade dos sindicatos não é muito maior que a dos partidos ou das instituições. Estamos inquestionavelmente em fase de grandes mudança, em que é preciso analisar e ver o que é preciso estabilizar para não existirem grandes desequilíbrios. Como as alterações mais aceleradas são na organização da economia e do trabalho, é natural que os sindicatos estejam perante problemas muito complexos.
E como é que se pode fortalecer os sindicatos?
Isso é a luta de todos os dias. Há desafios simples de definir mas difíceis de executar. Primeiro é preciso que o trabalhador perceba a sua condição concreta e seja capaz de agir a partir daí. O tipo de relação que existe hoje e a possibilidade de o trabalhador reagir perante a entidade patronal, privada ou pública, alterou-se muito. As multinacionais, como se diz, determinam não apenas o funcionamento mas também a própria definição das instituições no mundo. É preciso lembrar que 65 mil empresas a nível mundial dominam directamente dois terços da economia e determinam o funcionamento do resto. Tem de se continuar no debate do dia a dia, perceber em que mundo e situação se está. Tem de se agir também no equilíbrio entre a afirmação do interesse individual e colectivo. Depois perceber os poderes a que nos podemos dirigir, onde estão e como é que se podem identificar.
As pessoas consideram talvez que se defendem melhor individualmente que colectivamente.
O individualismo está institucionalizado. Não são as novas gerações que se tornaram individualistas. A estrutura da sociedade está organizada para explorar esse individualismo. Criaram a ilusão de que as pessoas se defendem melhor individual.
Considera que é uma ilusão?
No momento em que a sociedade humana caminhar, de forma definitiva, par o individualismo institucionalizado é o seu futuro que está em causa. Não tenho dúvidas quanto a isso. A luta pela clarificação entre o individual e o colectivo é a de sempre na sobrevivência da organização da sociedade.
A flexisegurança é uma solução para Portugal?
Ninguém sabe o que isso é.
É o modelo dinamarquês. Podemos usá-lo como referência.
Se tirarem daqui os portugueses, trouxerem para aqui os dinamarqueses e passarem a chamar-lhes portugueses, com as suas realidades culturais, os seus compromissos sociais com a sua opção económica e estruturação da sociedade… Nesse caso podemos ter o modelo de flexisegurança.
Uma das dificuldades que se aponta para a aplicação do modelo é a falta de cultura dialogante dos sindicatos portugueses.
Os sindicatos são bombos da festa. Desde o século XIX, quando se começou a equilibrar, nunca o desequilíbrio entre o capital e o trabalho foi tão forte a favor do capital. Não é surpresa que se ponham em causa os direitos colectivos e os sindicatos. Não é nova a ideia de que o patrão e o trabalhador são dois cidadãos em pé de igualdade e como tal devem. Não é preciso estudar muito para se perceber que a evolução no direito do trabalho e do sindicalismo são componentes decisivas do progresso das sociedades, em particular das europeias.
Na fase industrial, mas hoje estamos noutra fase…
Pois estamos, estamos numa fase em que alguns querem transformar na fase do neoliberalismo. Estamos de facto numa outra fase de organização do trabalho. Nessa altura, para o trabalhador, fazer greve ou não, ter trabalho ou não, significava escolher ter ou não pão para os seus filhos e por vezes até a morte. A conquista dos direitos do trabalho foi muito violenta e por vezes esquecemo-nos disso.
Essa dicotomia entre Trabalho e Capital faz sentido quando os trabalhadores também são accionistas das empresas?
A maioria das pessoas dependem de duas coisas que conjugadas têm um conteúdo explosivo muito complicado: por um lado o individualismo e por outro a dependência do consumo. Mas repare-se que se defende o individualismo mas com a pessoa a perguntar ‘que direitos tenho’, esquecendo-se que foram conquistados colectivamente. A maior parte dos indivíduos que defendem o fim das indemnizações em caso de desemprego tem na rescisão a cláusula mais importante do seu contrato de trabalho.
As indemnizações reflectem a capacidade de as negociar…
Claro, a operadora de caixa do Modelo tem uma capacidade espantosa de negociar essa cláusula com Belmiro de Azevedo. Apropriaram-se desses direitos e agora querem acabar com eles para os outros.
Mas ainda faz sentido esta dicotomia?
Claro que faz. Têm hoje possibilidades que não tinham [de ser accionistas], mas a essência da relação é entre capital e trabalho. Como não há dúvida que, apesar de mais complexas e diversificadas, as classes sociais continuam a existir. A globalização induziu um problema muito profundo. A divisão social do trabalho foi sempre estruturada com base no Estados. E hoje continua a ser fundamental. Mas como o capital está estruturado de forma vertical – o exemplo das multinacionais e não só –, há uma pressão imensa para se criar também uma divisão social do trabalho verticalizada. Em nome de ser possível fazer isto e aquilo na China ou no Paquistão, argumenta-se que não podem existir regras por países, que é preciso levar em conta o todo.
E tem lógica, há mais progresso económico com essa divisão.
Há um progresso profundamente desequilibrado.
Concorda que o proteccionismo é sempre pior que o livre comércio, a liberdade de circulação de capital, trabalho…
A liberdade de circulação é uma ficção. Teoricamente, e as experiências de organização das sociedades também nos confirmam isso, é preciso cuidado com o proteccionismo e com a interpretação daquilo que é o colectivo. Pode transforma-se num proteccionismo subvertido. Mas o que vemos hoje é uma perigosíssima desprotecção. Em nome do livre mercado e da livre concorrência vemos deturpações de muitas regras. A livre circulação das pessoas é uma ficção. Há pressões para que exista, os movimentos migratórios vão reforçar-se.
Como seria um modelo de flexisegurança à portuguesa? Os governos têm sublinhado que não há um fato para igual para todos, cada um tem de criar o seu fato.
Essa expressão de que cada país é uma realidade sendo um princípio verdadeiro pode ter duas interpretações diametralmente opostas. Uma é se estamos a ver a sociedade na perspectiva de harmonização no progresso. Outra é se estamos a ver na perspectiva da inevitabilidade da harmonização no retrocesso. Na perspectiva do que está inscrito nos tratados europeus, de harmonização no progresso, temos de reestruturar salvaguardando os direitos essenciais no trabalho e sociais e tendo em conta a realidade da Europa e dos países emergentes do mundo inteiro onde milhões de pessoas, embora explorados, estão a ter trabalho pela primeira vez. Ou entramos numa prática de flexisegurança em que hoje corta-se aqui por causa da Roménia e amanhã corta-se ali porque no Paquistão é possível explorar mais… e vamos por aí abaixo. A segurança de que estamos a falar transforma-se em protecção mínima, em que as pessoas ficam individualizadas e entregues a si. E a coesão vai por aí abaixo. Já tenho visto invocar que cada país é uma realidade para defender opções diametralmente opostas.
E no caso português, vamos para harmonização no progresso ou no retrocesso?
Não teremos Estado social se o capital se recusar a dar o seu contributo.
Mas isso está relacionado com a flexisegurança?
Um das teorias dos patrões é que é preciso descarregar as responsabilidades de tudo o que são encargos. O documento dos patrões [portugueses] sobre legislação laboral abrange tudo o que possa diminuir os custos do trabalho, por eliminação de horas extraordinárias, de remunerações acrescidas em caso de fim de semana…E, ao mesmo tempo, reclama que seja o Estado a tratar da segurança, que se o trabalhador ficou desempregado não têm nada a ver com isso. Chegam ao ponto – e já ouvi o mesmo em França – de questionar o pagamento de 14 meses de trabalho. Como se quem negociou isso, do lado do trabalho e do capital não soubesse na altura que o ano tinha 12 meses.
As empresas podiam distribuir esses dois meses pelos 12 e tinham menos pressão sobre a sua tesouraria…
Qual quê. Isso podia ter acontecido no passado que era muito mais difícil fazer jogos de distribuição financeira que fizessem essa diluição. Hoje é muito mais simples. E esses compromissos existiram porque era uma forma de retribuir uma parte que era produzida pelo trabalho.
É possível ou não a flexisegurança em Portugal?
Neste momento os salários dos trabalhadores crescem menos que a economia. Há um distanciamento crescente em relação à média europeia. No salário mínimo nacional, há dez anos, a nossa diferença face a Espanha era diminuta. Neste momento caminhamos para uma diferença de 300 euros, face a um valor que em Espanha se aproxima dos 700.
Mas Espanha cresceu mais que Portugal. Também nos distanciámos em termos de rendimento per capita...
Distanciámo-nos em termos de rendimento per capita mas se analisarmos o crescimento da economia portuguesa e dos salários, a nossa perda é maior que nos outros países. Nos direitos dos trabalhadores a tendência também é para a sua diminuição. Analisemos agora a parte da segurança. O ensino está a ficar mais seguro? E a saúde? O emprego em geral está a ficar mais ou menos seguro? E na segurança social, temos perspectivas de ter melhores ou piores pensões? Por aqui se vê a componente segurança.
Este modelo de flexisegurança corresponde a passar do apoio ao emprego para o apoio às pessoas, não?
Começou com o triângulo dourado. Agora estamos no quadrilátero prateado. Concluiu-se que não bastavam política activas de emprego e protecção de desemprego. Que era preciso uma quarta componente, um compromisso entre as partes. Mas nós vemos o que se passa em Portugal. Quais são os compromissos que se cumprem? Então com os trabalhadores é espantoso. Este Governo, em relação à administração pública, em campanha eleitoral não disse nada quanto à diminuição de direitos. Começou a governar, chamou os sindicatos e disse que ia reestruturar, para nós aguentarmos porque em 2007 já ia haver um novo sistema de avaliação e de carreiras. Em 2006 não negociou e em 2007 não aplicou. E chegou a 2007 e queria fazer outro acordo dizendo que se ia negociar para funcionar 2008. E os sindicatos disseram que isso já tinha sido prometido em 2007. Depois ainda chega um secretário de estado que diz não, agora vamos negociar em 2008 e talvez em 2009 tenhamos carreiras…
… e chegou o primeiro-ministro e disse que seria 2008.
Sim, o primeiro-ministro diz 2008 mas não diz como. O ano de 2008 é o mais sensível desta legislatura. Voltando aos compromissos, temos um acordo de formação profissional e outro de higiene e segurança no trabalho de 1991 e não se cumpriu. Estamos agora com este plano todo de formação. Até dei a cara pelas Novas Oportunidades. Mas se não houver mudança no perfil do emprego, isto não vai dar em nada. Haverá é uma frustração acrescida. Por isso digo que 2008 é muito importante. A CGTP apresentou a Cavaco Silva, no primeiro Quadro Comunitário de Apoio, uma proposta de formação com programas muito idênticos ao que vemos agora nas Novas Oportunidades. Mas, nessa altura, o poder económico quis os dinheiros da formação. E isto atrasou-se 20 anos. Depois como não há pressão em termos de modelo de desenvolvimento, encontramos muita gente que se questiona sobre a utilidade da formação. Nós andamos numa batalha a convencer as pessoas que é importante.
Mas está a ser um sucesso.
É verdade. Durante um ano a CGTP fez uma campanha em várias empresas, que culminou com uma conferência, para convencer as pessoas a fazer formação. Estes sinais são essenciais e positivos. Mas não é suficiente.
O ano de 2008 vai ser o da prova das reformas que se estão a fazer?
Vai. Estamos aproximar-nos de um ano muito importante. Foram iniciadas mudanças em muitas áreas. Toda a gente sabe na saúde era necessária uma gestão mais eficaz, mas não está provado que se tenha caminhado para isso. Nas escolas, estamos de acordo que o caminho é o alargamento dos horários. Mas não se muda de modelo de um dia para o outro e pondo em causa as instituições e práticas criadas. Nada disto está assegurado. Até tenho medo de falar de algumas desta coisas porque nada disto está seguro. Tudo isto pode desestabilizar-se e as reformas redundarem, na sua essência, em fracassos grandes, provocando no país uma situação de ruptura e paralisia por muitos anos. Esse é o problema.
Conhece bem o país das empresas. Existe o risco de o desemprego aumentar em Portugal?
Esperemos que não. Os sinais são contraditórios. Há nichos da economia que estão equilibrados mas a maioria continua numa situação complicada. Andando pelo país continuo a ver que as ameaças de desemprego são muito grandes. Há múltiplos problemas no desemprego. Se persistirem as precarizações, o desemprego vai aumentar e vai agravar-se como problema social.
Se a legislação laboral for no sentido de maior flexibilização nos despedimentos abre a porta a mais desemprego?
Abre. No contexto português é inevitável.
Mas se não o fizer abre a porta a falência de empresas, face à rigidez ...
Não. Mas qual rigidez? Essa palavra choca-me tanto. É uma mentira total que o mercado de trabalho em Portugal seja rígido. E a insistência nessa mentira…
O despedimento exige que se paguem indemnizações…
Mas não há nenhum país onde o despedimento por causa de reestruturações seja tão fácil como em Portugal. E as reestruturações não requerem despedimento individual mas sim colectivo. Uma empresa que tenha até 50 trabalhadores, é enquadrável no despedimento colectivo três trabalhadores num período de três meses. E os trabalhadores portugueses não são nada rígidos, são dos mais maleáveis no trabalho, o que é reconhecido por gestores estrangeiros em Portugal. São poucos os povos que têm a disponibilidade dos portugueses. Basta até olhar para os nossos emigrantes.
O caso da Autoeuropa, por exemplo.
A Autoeuropa e muitos outros casos. Há experiências muito melhores de capacidade de adaptação. A Continetal Mabor, por exemplo. É um prejuízo para o país esta insistência de que Portugal tem um mercado de trabalho rígido, quando isso não é verdade. Há é alguns empresários com um sentido parasitário que se agarram a isso.
E a flexibilização dos horários de trabalho?
Hoje não se fixam as oito horas. Para onde caminhamos na organização da sociedade se as pessoas passarem a não ter horário definido? Quando se fala de instabilidade familiar, ainda por cima com a estrutura de serviços sociais e de transporte que temos. Esta ideia de que os horários de trabalho têm de se submeter a paradigmas da gestão e da economia é uma tontaria. Agora adaptabilidade de horários de trabalho, há imenso.
Considera que não é necessário rever a legislação laboral?
Com a actual legislação há gestores que fazem adaptabilidade de horários de trabalho, que criam climas de relações de trabalho excelentes. A Continental Mabor trabalha 24 horas. Criaram-se turnos, trabalhadores que são compensados para terem colmatar um pico de produção mas são remunerado. E a empresa teve 2,8% de absentismo, o melhor a nível mundial, assim como o melhor ao nível da produtividade. E isto é feito com as leis portuguesas em vigor. Mais flexibilização é facilitismo para quem não se quer esforçar a fundamentar as opções que toma e pretende cilindrar as coisas com facilidade na gestão dos trabalhadores. E por outro lado aumenta o desemprego.
Se não aumentar o desemprego as empresas vão à falência.
Mas vão à falência porquê? Quantas vezes a empresa despede para no lugar do trabalhador colocar lá outro completamente precário? Temos muitas situações de empresas que apostaram tanto na precariedade que não têm futuro, os produtos começam a perder qualidade. A precariazição excessiva leva à quebra da qualidade dos produtos, à falta de competitividade, um debate que se está a ter na Europa. É um desastre se aprofundarem a precariedade do trabalho por legislação ou por incapacidade dos empresários ou bloqueios de outro tipo. É preciso também olhar para a situação do emprego. Justifica-se que Portugal tenha o maior número de metros quadrados por habitante de grandes superfícies, com uma relação que é o triplo de países desenvolvidos? Alguma coisa está mal. Pode estar a chegar uma avalanche de desempregados, que eram pequenos comerciantes e pequenos industriais e que vão gerar na sociedade outro tipo de problemas. E também de quadros, pois se não há evolução no modelo de desenvolvimento vamos assistir a uma perda relativa de trabalhadores qualificados.
Gostaria de se manter à frente da CGTP?
Não é uma questão de gostar ou não. Estou empenhado neste projecto, vou dar o meu contributo e logo se vê qual a avaliação que se faz. Não sou um sindicalistas em início de carreira.
“Nestas férias, queria ler o ‘Equador’, com atenção”
As férias dividem-se entre praia e família. O filme da sua vida é ‘África Minha’ e o continente africano uma paixão.
Como vão ser as suas férias?
Ainda não sei bem. Vou tentar gozar três semanas. Uma na costa alentejana, numa habitação de família. Vou ver se vou à zona de Sagres uns cinco dias. E depois visitar a família quatro dias.
Quais foram as férias da sua vida.
Não tenho uma referência especial. A não ser quando estava na guerra colonial e vim cá de férias. Eram as férias da liberdade.
A guerra colonial marcou-o especialmente?
Bastante.
Que livros está a ler?
Neste momento não estou a ler livro nenhum. Andei a consultar muitos livros para a tese [de doutoramento]. Neste momento estou a ler um texto para fazer um prefácio para o livro de um amigo. Dei uma vista de olhos mas ainda não li o ‘Equador’ de Miguel Sousa Tavares e quero ler. Tenho ouvido tantos comentários. Queria lê-lo com atenção. E estas férias quero ler um ou dois romances com calma. Já o disse à minha mulher. Ainda não decidi quais. Ou até reler.
Tem algum livro que seja o da sua vida.
Há um livro que cito na minha tese, de Ferreira de Castro, a ‘Lã e a Neve’, porque me marcou. Há um outro muito controverso, que na altura me foi significativo, o ‘Pavilhão de Cancerosos’ de Alexandre Soljenitzine.
Televisão, vê?
Por vezes. Não vejo muito.
Gosta mais de ler?
Gosto de ler. E às vezes ao fim do dia, quando fico livre, tento ver o noticiário.
Não vê as séries?
Uma ou outra. Mas se me perguntarem o nome não sei.
E ao cinema, vai?
Quando posso. Vou amanhã… Mas não sei qual o nome. Não ligo aos títulos. Leio um livro e se me perguntarem o título não sei.
Tem algum filme que o tenha marcado especialmente?
Gostei muito do ‘África minha’.
Esteve em África na guerra colonial mas fala muito de África.
É. Talvez seja o berço da humanidade. Acho que ali se sente uma força muito especial, aquela terra, aquele cheiro, o ambiente…
Mas conhece bem?
Viajei bastante para Angola, conheço a Guiné, Cabo Verde, alguns outros países africanos, como a África do Sul, onde vivi uma aventura interessante.
E música?
Gosto muito de música mas tenho o mesmo comportamento, não fixo nomes. Viajo muito de carro e oscilo entre a Antena 2 [música clássica], para me concentrar se estou muito cansado, e os noticiários da TSF e a RFM, que é talvez a rádio que oiço mais por causa da variedade da música.
Jornais, lê?
Obrigatoriamente mas também por gosto.
Também lê em férias?
Um ou dois.
Tem um jornal preferido?
Não.
Desliga-se da realidade quando vai para férias, desliga o telemóvel…
Não uso exageradamente o telemóvel. A minha agenda de telefone é muito reduzida, não criei esse hábito.
Não manda sms?
Só em situações especiais.
Não é um viciado da rede.
Não, não sou um viciado da rede nem dos contactos. Ao longo da vida já me cruzei com tanta gente… Não encontra na minha agenda números de telefone de governantes, nem actuais nem passados. Há um ou outro. Neste governo tenho um amigo pessoal de há muitos anos e sempre que vai para o Governo deixo de o tratar por tu e trato-o por sr. Ministro o que o aborrece.
Quem é?
Não digo. Ministro é ministro.
É muito formal?
Não. Mas é preciso manter a identidade dos espaços de cada um.
E Internet, usa?
Como toda a gente. Uso um portátil. O mail e para fazer pesquisa. Mas não muito, porque uma pessoa acaba por se perder.
Como fez as suas pesquisas, para a tese? Foi às bibliotecas…
Devo ter consultado umas 40 mil páginas de documentos, sem contar com os livros. Tive amigos que me ajudaram. É indispensável a documentação.
Ainda é preciso ir aos papéis…
Aos papéis e às pessoas. A Net permite-nos circular por muita coisa. Tenho amigos viciados. Tenho um amigo que às três, quatro da manhã me envia textos para eu ler. Estes meios de comunicação são extraordinários, mas há ali muito lixo também.
Usa a Internet para ler jornais?
Às vezes, mas gosto mais do papel. Ao fim de semana principalmente vou ver os títulos.
É sindicalizado?
Naturalmente… seria um absurdo.
Qual é o seu sindicato?
Sou sindicalizado desde há muitos anos no Sindicato das Indústrias Eléctricas do Norte. Fui sócio do sindicato a partir de 66. Foi aí que comecei a trabalhar por conta de outrém. Depois fui sócio do Sindicato dos Metalúrgicos de Braga em 72 e 73 e voltei para o das indústrias eléctricas. Desde que pertenço aos órgãos sociais sou presidente da assembleia geral.
Tem muitos patrões seus amigos?
Há companheiros de juventude que se tornaram grandes empresários.
O que pensou quando viu sindicalistas da CGTP abraçarem Joe Berardo na assembleia geral da PT?
Da CGTP e outros. Também foram mencionados alguns com conotações erradas, não houve muita honestidade nisso. Foi um acto emocional. Eu conhecia bem o processo e o que significava para as pessoas aquele desfecho. Compreendo essa expressão.
Vê-se a fazer outra coisa que não seja a actividade sindical?
Obrigatoriamente. Não tenho heranças e como nunca fui bem remunerado não deu para fazer um pé de meia. Tenho uma filha pequena. Fiz uma opção de vida que só me deu uma alternativa: trabalhar para sobreviver.
E o que gostava de fazer?
Não sei. Independentemente de continuar na CGTP, ou não, - vamos ver, já são muitos anos -, quero fazer outras coisas. Há 12 anos decidi fazer o [antigo] exame ‘Ad- Hoc’ e ir para universidade. Ocupei muito do meu tempo com coisas que me exigiram muito trabalho. Fiz um curso com frequência efectiva de aulas, fui dos cinco alunos mais assíduos. Optei por uma escola [ o ISCTE] com aulas à noite e que começavam mais tarde. Por vezes acabava uma reunião às seis da tarde no Porto e tinha de estar em Lisboa às oito. Depois preparar e desenvolver a tese…Fiz esse esforço significativo.
Vai publicar a tese em livro?
Sim.
O próximo ano vai ser de nova vida?
Sim, pode ser. A única coisa que aceitei até agora foi fazer parte do corpo de investigadores de uma universidade, como associado.
Em situação de stress é a pessoa mais calma da sala?
Nem sempre mas em geral não sou dos que se irrita mais nem dos mais calmos.
Nas reuniões da concertação social?
Não, até dizem que uso muito é a ironia, quando estou sem situações de significativa tensão. Era muito calmo em criança, os meus irmão são todos muito calmos. Desequilibrei-me um pouco com a guerra colonial.
Alterou a sua personalidade.
Não a personalidade mas aspectos do comportamento, do ponto de vista emotivo
PERFIL: Manuel Carvalho da Silva
Manuel Carvalho da Silva, 58 anos, é desde Dezembro de 1999 secretário geral da CGTP-In depois de assumir desde 1986 o cargo de coordenador da central sindical. Nascido numa família de pequenos agricultores em Viatodos, Barcelos, tem três filhos, dois rapazes já adultos e uma menina de quatro anos.
A sua vida académica começa na Escola Industrial de Braga, onde fez o curso de montador electricista. Ainda entrou para o Instituto Industrial mas, diz, a vida não propiciou que prosseguisse por esse caminho. Começou a trabalhar como electricista. Entre 1970 e 1972 cumpre o serviço militar na guerra colonial em Cabinda. Faz depois formação em organização do trabalho e enveredou por essa área.
Há 12 anos, já na CGTP, resolve entrar para a Universidade fazendo o então designado exame ‘Ad-hoc’. Entra no ISCTE onde se doutourou em Julho com uma tese intitulada ‘A Centralidade do Trabalho e a Acção Colectiva’ que vai ser editada em livro. O que quer fazer com este doutoramento? “Não sei, não sei o que quero ser quando for grande, não imagino’. Irónico na resposta a muitas questões como revela a entrevista, Carvalho da Silva revela ter convicções inabaláveis mas pragmáticas. Não se sabe se vai manter a liderança da CGTP.
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