sexta-feira, maio 30

Em Julho e Agosto de 1936, o jornalista James Agee e o repórter-fotográfico Walker Evans conviveram com três famílias de camponeses dos campos de algodão do Sul dos Estados Unidos.





A ideia era relatar as condições de vida – absolutamente miseráveis – desses trabalhadores do campo no tempo da Grande Depressão. O texto e as fotografias foram depois recusados pela revista que pediu a reportagem, a Fortune. Não houve artigo, mas nasceu um livro: «Elogiemos agora os homens famosos».





A reportagem foi considerada um dos trabalhos mais importantes e influentes do século XX, frequentemente citado como um dos expoentes do jornalismo, praticado em nome de uma consciência social.





O livro honra, logo nas primeiras páginas, o fotojornalismo. Antes de qualquer prólogo, é de fotografias que se ocupam as mais de trinta páginas iniciais do livro. Sem legendas porque a verdade está lá toda.





James Agee chama a esta reportagem, a esta obra, «documento fotográfico e verbal».





Segundo ele, os instrumentos imediatos do documento são dois: «a câmara fixa e a palavra impressa». O instrumento predominante é a consciência humana individual e anti-autoritária. E esclarece: «As fotografias não são ilustrativas. Elas e o texto são iguais entre si, mutuamente independentes e totalmente colaborantes». Em nome da história e do futuro da fotografia, atesta Agee, assumir esse risco era uma atitude ética e necessária. Até porque esta reportagem, escreveu, é um «esforço de actualidade humana em que o leitor não está menos implicado que os autores e aqueles sobre quem eles falam».





Maio de 2008. O futuro é já hoje. Mas que futuro?





Texto escrito e imagem têm toda uma história de vida em comum, com altos e baixos é certo, mas em comum. Também em Portugal, a união de facto, com respeito pela independência de cada área criativa, foi funcionando.





Pode dizer-se que o «casal» presenciou, com profundidade e visão panorâmica, ao longo de décadas, várias das feridas e alegrias do mundo, tendo sobre elas um olhar e uma expressão própria, única. A relação entre narrativa e discurso visual teve dias épicos, respeitando um jornalismo íntegro, digno, que honra quem o fez e não desmerece quem o partilhou.





Mas houve também amuos, desconcertos, muitas faltas de cumplicidade nesta relação.





Em diversos momentos da história do jornalismo, sobretudo mais recentes, parece que texto e imagem caminharam alegre e inconscientemente para uma separação, numa atitude umbiguista das partes, pressionada e incentivada por várias causas internas e externas às redacções. E contra mim falo, porque todos, uma vez ou outra, fomos e somos cúmplices das opções do caminho.





Na verdade, o colete-de -forças do tempo, do espaço, do mercado e desse eufemismo que dá pelo nome de «sinergias de grupo», condicionaram sem piedade a expressão da palavra e de um olhar, atirando-o demasiadas vezes para os braços da ligeireza, da moda, da pose, da produção, da superficialidade e desse fenómeno típico da actualidade sempre apressada e ligeira: o «giro».





Hoje, tudo se pretende ser giro.





Mesmo a mais ignóbil das situações humanas, tem de ser retratada a partir de um ângulo «giro». Instalou-se a confusão entre emoção e informação. A concentração dos «media» e as preocupações imediatistas atropelam valores profissionais e impedem, muitas vezes, que o olhar dos jornalistas, escritor e fotógrafo, contraste situações, reflicta pontos de vista únicos, pessoais, íntegros, capazes de produzir uma narrativa original e fazer frente ao McJornalismo e aos «media» de conteúdos requentados.





Hoje, pede-se que saibamos tudo sobre digitalização de imagens e sons, câmaras fotográficas e vídeo, podcast e coisas que tais. Só assim, dizem alguns, teremos os jornalistas tecnicamente preparados para enfrentar os novos tempos.





Ninguém de bom senso ousará questionar as vantagens dessa evolução tecnológica. É necessária e, ainda que não fosse, é inevitável. Mas não será certamente por ingenuidade ou inocência que alguns pretendem, cada vez com mais insistência, redefinir as características e responsabilidades da nossa profissão, dando-lhe um nome adequado aos novos tempos, cada vez mais preocupados com a rapidez informativa - e de lucro, já agora. Começam a chamar-nos então «produtores de conteúdos».





Neste cenário, convém não lavar as mãos nem atirar a carga apenas para os jovens, muitas vezes vivendo situações precárias e de grande violência psicológica. Se assim sucede é também porque alguns de nós serviram de exemplo. Mau exemplo. E porque fomos os primeiros a usar o cargo e as funções em benefício, apenas, da nossa estabilidade e segurança. Esquecendo, pois, um ensinamento básico: quanto maior o cargo, maior a responsabilidade. Perante os outros, bem entendido.





Vivemos um tempo em que é promovido o imediatismo, em todas as suas vertentes. E esse imediatismo, como facilmente se percebe, é contrário à reflexão, assimilação e profundidade. Não confundir com a necessidade de captar o instante que, por vezes, define uma história.





Muitos disseram e escreveram que a luta das ideologias chegou ao fim. Anda aí, triunfante, a ideologia que promove o escândalo, o folhetim, a lamechice, a opinião indignada, bem pensante, politicamente correcta e sentimentalona. E que incita o cidadão a tornar-se, ele próprio, jornalista, só porque munido de telemóvel, câmara e carradas de protagonismo e insensatez.





O trabalho está orientado para a exibição. Tal como a religião e a política, nas palavras de Jose Luis Cebrian, fundador do jornal El Pais. A informação é puramente consumo. Ora, consumo de informação não é o mesmo que entender a informação como alimento básico da nossa formação cívica. Podemos consumir hambúrgueres e pizzas todos os dias sem que isso signifique exactamente estarmos bem alimentados. Escrever e fotografar sempre o mesmo, ainda que com muitas páginas ao dispor, não produz melhor conhecimento.





Não é sequer a Internet, a evolução tecnológica, a manipulação cobarde das imagens que representa uma ameaça ao jornalismo e aos jornalistas.





Quero crer que nenhuma técnica, nenhum acelerar da tecnologia, substitui as condições essenciais para se ser bom jornalista: vocação, talento, capacidade de relacionamento com o outro, responsabilidade social, criatividade, memória, bons livros, bons arquivos, cheiro da rua, carácter e humanidade. Coisas que não se ensinam nas escolas nem se aprendem nas faculdades hoje ditas de Ciências da Comunicação. E que sobrevivem à evolução tecnológica. Ou melhor, são o melhor trunfo para andar de mão dada com ela.





Discutir o presente e o futuro do fotojornalismo em Portugal é discutir o futuro do jornalismo, mas não quero proclamar aqui sentenças ou conclusões apressadas. Permitam-me, porém, que deixe alguns questionamentos, em jeito de provocação:





Está ou não o fotojornalismo a ceder ao primado da técnica em detrimento do domínio da linguagem fotográfica e jornalística?





O facto da geração do digital não ter mantido uma relação de cumplicidade com o laboratório e o papel prejudica a elaboração de um discurso ou de uma narrativa visual?





Quantos profissionais portugueses são hoje testemunhas de acontecimentos históricos ou enviados a conflitos internacionais? Perderam-se as narrativas do mundo com um olhar português?





Estamos a fazer a cobertura do mundo ou da nossa rua ou a informar sobre os «nossos» interesses políticos e empresariais no mundo?





O fotojornalismo - o jornalismo, no fundo - é hoje sinónimo de acomodação e medo de sair às ruas?





O jornalismo é um meio ou um fim? Estamos aqui para relatar e retratar as costuras da vida ou tratar da vidinha?



Com a junção dos jornais e revistas em grupos, com uma visão cada vez mais estreita dos acontecimentos e menos investimento nas narrativas de grande fôlego, que espaço resta para as histórias cruciais?





Como contrariar a linguagem burocrática dos jornais, de muitas notícias e temas, mas muito poucos pontos de vista?





Que futuro terão os fotojornalistas, intelectuais no sentido clássico, de saberes diferenciados, capazes de, como dizia Kundera, travar a cada dia e em cada página a luta da memória contra o esquecimento?





Há dias, um repórter-fotográfico habituado a zonas de conflito dizia: «As histórias que cobrimos são maiores do que nós, do que as nossas revistas e editores. É importante tratá-las com respeito e integridade pelo tema. O futuro do jornalismo está nas vossas mãos. Sigam os vossos corações, mesmo que estes se partam. Não desistam».





Nem tudo está perdido. A cada dia, surgem novos talentos, gente da geração digital aferrada a valores que não têm época porque são de sempre. Gente que não se transfigura, que não se prostitui e está disposta, mesmo na mais absoluta precariedade, a motivar os mais acomodados através de fartas transfusões de sonho, criatividade, empenho e dedicação. Gente que faz do jornalismo e do fotojornalismo causa.





Vicki Goldberg, repórter-fotográfica, disse: «Tudo o que o fotojornalismo capta faz parte das nossas vidas e não tem necessariamente de ser arte. Basta que seja verdade».





Edward Murrow, o histórico jornalista da CBS que enfrentou o McCarthismo e foi retratado no filme de George Clooney, Good Night and Good Luck, dizia que «para progredir, é preciso olhar para atrás».



Volto, por isso, ao sul dos Estados Unidos, ao ano de 1936, e às palavras de James Agee: «A câmara parece-me, depois da consciência sem ajuda e sem armas, o instrumento central do nosso tempo; por isso sinto tanta cólera ante o seu mau uso, que estendeu uma corrupção da vista tão universal que só conheço umas 12 pessoas vivas em cujos olhos possa confiar tanto como os das crianças».



Da recuperação da confiança num olhar assim não depende apenas o futuro do jornalismo e do fotojornalismo. Disso depende também a sobrevivência da integridade que devemos aos nossos leitores como seres humanos. Se não cuidarmos do que lemos e vemos, também como leitores exigentes, estaremos a contribuir para que se cumpra, sem recurso, uma velha sentença do escritor Mário de Carvalho: «O jornalismo cão há-de merecer um mundo-cão».

sexta-feira, maio 9

ASAE acusada de exorbitar competências
Especialista diz que governos portugueses não protegem produtos tradicionais
07.05.2008 - 09h02 Sofia Rodrigues

A ausência de excepções às leis comunitárias para os produtos tradicionais é da exclusiva responsabilidade de Portugal, acusou ontem uma especialista no Parlamento. Ana Soeiro, que esteve 30 anos ao serviço do Ministério da Agricultura e que fez o maior levantamento de produtos tradicionais em Portugal, critica os “sucessivos governos” de serem omissos por não terem feito uma simples comunicação a Bruxelas para se poder continuar a usar materiais tradicionais e manter práticas de fabrico de produtos típicos portugueses sem violar a lei comunitária.

Essas derrogações aos regulamentos comunitários permitiriam salvaguardar, por exemplo, o uso de panelas de cobre no fabrico de ovos moles, o fabrico de pão em unidades caseiras, ou a confecção de arroz de cabidela com aves abatidas em pequenas explorações agrícolas.

“Há omissão por parte dos sucessivos governos que não puseram em vigor as derrogações permitidas pelos regulamentos comunitários e que permitem o uso de madeiras, barro, cobre e xisto no fabrico de produtos tradicionais”, disse Ana Soeiro, durante uma audição parlamentar no grupo de trabalho sobre pequenos produtores e produtos tradicionais.

O grupo foi criado pelo PS para fazer um levantamento das necessidades deste sector, na sequência das muitas críticas à actuação da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) sobre os pequenos produtores.

A especialista deu vários exemplos de situações em que só é necessário fazer a comunicação para Bruxelas para que as excepções aos regulamentos comunitários entrem em vigor: isenção dos pequenos produtores às regras escritas para prosseguirem a sua actividade, regulamentação dos pequenos produtores para permitir que os restaurantes possam comercializar aves e coelhos criados e abatidos em explorações agrícolas e legislação sobre o licenciamento industrial para passar a contemplar as explorações familiares e permitir, por exemplo, o fabrico de pão caseiro.

“Estou saturada da desculpa de que Bruxelas é que tem a culpa”, disse Ana Soeiro, acrescentando que “aquilo que a UE exige é francamente pouco e fácil de fazer”.

Para além das deficiências que aponta à lei, Ana Soeiro também não isenta a ASAE de culpas. “Exorbita as suas competências e o aconselhamento está fora das competências de uma polícia criminal”, afirmou, concordando com uma afirmação anterior do deputado do CDS-PP Hélder Amaral no mesmo sentido.

Uma outra crítica tem a ver com uma omissão “gravíssima” no turismo rural, obrigado a oferecer ao cliente produtos regionais, mas que não pode dar uma galinha ou laranjas criadas na própria produção. Ana Soeiro deu um exemplo caricato: “Se um turismo rural em Boticas [Vila Real] quiser oferecer uma galinha, tem que vir a Viseu abatê-la, porque é o matadouro mais próximo”.

Soeiro enunciou ainda a falta de regulamentação sobre empresas de consultoria alimentar que considerou estarem “impreparadas” e de estarem a vender aos agentes económicos detergentes e material de limpeza cuja toxicidade é desconhecida. “Pode ser mais perigosa que qualquer amêndoa, chouriço ou queijo que comamos de um produto tradicional”, disse a especialista.